terça-feira, 30 de abril de 2013

Qual cavalo, menino?

foto: A&M ART and Photos

Não tenham pressa da minha presença, talvez um dia, talvez, regresse, talvez, um dia, decida levantar voo e andar, e andar, até encontrar o planalto das rochas encarnadas, não, pressa não, porque um dia, eu, regressarei dos finos cortinados de espuma,
uma camisa furtada do estendal da vizinha Amélia, as calças, são do cigano Mário Zé, especialista em auto-rádios e carros de pequena cilindrada, e eu, desiludida, contigo, comigo, connosco, e os velhos sapatos pertenciam ao primo Justino,
A cabeça balança entre as mãos frígidas dos lilases argumentos sem palavras de amor, palavras de dor, ou
não às palavras,
Havia dentro de nós circos, roulotes e malabaristas, o meu pai era trapezista e a minha mãe, entre os intervalos de bailarina esfomeada, tinha um pequeno número de ilusionismo, e
nunca me esqueci do sucesso número dela, quando me colocava dentro de uma caixa de cartão, batia as palmas, e eu
Desapareceste da minha vida naquela fatídica manhã de Sábado junto ao Tejo acabado de assassinar-se, os motivos, ainda hoje desconhecidos, morte incógnita, mas presente entre nós, e tu
Eu desaparecia, ela abria cuidadosamente a caixa de cartão, remexia, remexia, virava de um lado, mostrava o outro, e o rapaz
Desapareceu de casa de seus pais, digo, desapareceu da roulote onde vivia com os seus pais um rapaz do sexo masculino, cerca de seis anos de idade, cabelo castanho e olhos verdes, vestia calções e uma camisola antiquada, calçava umas velhas sandálias de couro, e levava na mão esquerda, sim, penso que sim, espere, não sei, quase que tenho a certeza, e levava não mão esquerda um cavalo
cavalo?
Perdão, um caderno de capa ondulada e escuro, sem imagens, apenas com palavras semeadas numa tarde de vento quando os bancos de jardim ainda tinham ripas de madeira, não podres, ripas de madeira a sério, e já agora pergunto-me – Onde raio fui eu buscar o cavalo? - há cada coisa, em cada hora, a cada momento, numa rua deserta da cidade, uma feira de velharias, uma boina de um soldado da EX-URSS, compro, não compro, pensei
deve ter piolhos,
Não comprei, depois, mostraram-me os cachimbos, compro, não compro, não comprei
lembrei-me da quantidade de saliva – Do tipo... um milímetro por segundo! - desisti
Pensei,
Vou comprar um livro,
que livro – Que tipo de livro deseja? - respondi, talvez de AL Berto
Ela, Como? Quem?
pensei, que raio, nem ela conhece o AL Berto...
Desisto, desisto, e desisti, hoje sou feliz, finalmente apareci dentro de uma das caixas de cartão que a minha mãe fez um dia, num lindo espectáculo, desaparecer, cresci algures, e o meu pai hoje não trapezista, reformou-se e vive desafogadamente com uma linda reforma da Caixa, não, não aquela de cartão onde a minha mãe me fez desaparecer, é a outra caixa, e a minha mãe, hoje, abre a janela da roulote e conta o número de comboios machos que passam em frente à árvore dos telhados bolorentos, porque os comboios fêmeas, ela, deixa-as seguir, sossegadamente, como se fossem o vento numa noite de cavalos...
cavalos?
Quais cavalos, menino?
Uma tarde, numa linda tarde, estava eu com uma das mãos prisioneira de uma das barras de ferro do portão de entrada, o quintal era enorme, tinha mangueiras, e ao fundo, nas traseiras da casa, havia um galinheiro, tínhamos galinhas, patos e pombas, às vezes, passeava-se por lá um velho triciclo, outras, escondia-se debaixo da sombra, e, e nessa linda tarde, repentinamente e no intervalo entre o depois do lanche e a chegada do meu avô, vi passar em frente a mim...
Como não sabe quem foi o poeta AL Berto?
Uma menina vestida de branco, montando um lindíssimo cavalo branco,
Tem ao menos alguma coisa do Pacheco?
ele, o cavalo olhou-me, e desde então, pertence-me, e anda dentro de mim até que um dia
Qual Pacheco? O Luiz, minha senhora, o Luiz,
que não, não sabe dessas coisas, ora agora..., um cavalo
Qual cavalo, menino?

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Desenhava-te no espelho da montra do senhor Ernesto

foto: A&M ART and Photos

Percebia-se, pelas tuas nádegas de algodão, que a noite entranhava-lhes como pássaros na algibeira de um mendigo, dormiam em caixas de papelão, pobrezinhos, escreviam sobre as ombreiras do ensonado dia, “caixas simples cartão”, porque era chique, porque estava na moda, porque ao fundo da rua sentia-se o ressonar da lua, e a transpiração de saliva dos pulmões de aveia, não tínheis pequeno-almoço, preçário, cardápio ou subsídio diário, uma sandes de pouca coisa, ou quase anda, chorava no interior de duas finas fatias de pão, sem saberdes que lá fora, ao longe, de uma escada em madeira, desciam os anjos e os gemidos silêncios da verdura que cobrem os campos da aldeia, como pedras, lajes de granito, lápides em cimento, e aos poucos, de poucos, apagariam-se-lhes todas as letras da literatura pura e nua, entre desenhos e sílabas, entre candeeiros de vidro e lâmpadas de papel,
gostava muito de ti,
Desenhava-te no espelho da montra do senhor Ernesto, em traços finos, colocava-te sobre os olhos um fio doirado de cabelo, dava-te lábios com sabor a chocolate, tinha-te na boca como oxigénio essencial à minha respiração, ouviam-se coisas mortas, objectos despedidos, canas de pesca, carretos e chumbeiras, bóias, anzóis e as pesadíssimas botas de borracha, e mesmo assim, ouvia-te
gosto de ti,
Percebia-se, pela ausência de cubículos para todos, que nem nus somos iguais, uns, mais diferentes do que outros, e havia sempre um que ficava sem onde pernoitar na fria noite de Janeiro, aqui, porque lá, bastava-lhe cobrir-se com um ramo de palmeira, havia um largo, eles abraçaram-se longamente e esqueceram-se que eram uma rocha à beira do rio, do largo, mais acima, uma duas palmeiras adormeciam já devido às distantes horas que estavam previstas para regressarmos, nem um único som, uma única palavra, nada
só e só o beijo da despedida,
Só e só, e não muito mais, como anos depois, as palmeiras continuam adormecidas, mais velhas, claro, mas ainda estão vivas, não há muito tempo, estive com elas, almoçamos juntos, e recordamos noites, noites, noites que eu mesmo já tinha esquecido, falaram-me de uns pássaros que poisavam nos nossos ombros, e também de umas flores, se não estou enganado, isto é, se não fui enganado por elas, de umas flores amarelas, ou cinzentas, ou
gostava muito de ti,
Ou incolores, como os beijos, ou indolores, como as ondas do Oceano que ficávamos a olhar até desaparecerem sobre os telhados de Lisboa, o cheiro do rio entrava dentro dos nossos corpos escondidos em caixas de papelão,
“caixas simples cartão”
E hoje, quando estou no largo, debaixo das velhas palmeiras, ao longe a lua em movimentos descoordenados, sem luz de candeeiro, dos minguados olhos que o sol deixou sobre a mesa-de-cabeceira, e derramadas sombras construindo imagens na esplanada dos arbustos com braços negros e pernas encarnadas, perguntava-te pelas cartas perfumadas, e tu
queimei-as, porquê?
Apenas pelo perfume, porque pelas palavras perdia o sentido das letras, deixei de amar palavras, frases, livros, cadernos, poemas, “... e toda a merda comestível...”, só e só pelo perfume, só e só quando desce a noite e de barriga para o ar, eu deitado, olho o tecto, vejo estrelas azuis, estrelas pretas, estrelas... como chuva friorenta em Primavera, e só e só, tenho saudades do perfume
das amoreiras em flor, das mimosas, de deitar-me no chão e fazer desenhos imaginários no céu nocturno da cidade, a cidade proibida, com calçadas, ruas, ponte e pontões, “putas” e “cabrões”, a cidade dos barcos com ferrugem, a cidade das casas comestíveis depois da sobremesa, e homens com alegria, e homens em bebedeira em fila Indiana para ter acesso a uma merda de uma caixa de papelão,
“uma linda caixa em fino cartão, três assoalhadas, uma varanda para o Tejo, casa de banho completa, e ascensor, e muitas cartas, cartas de amor, todas elas, perfumadas...”
E eu dava-lhe a mão, e passávamos a noite dentro do ascensor, em subidas, em descidas, e às vezes
parávamos, e esquecíamos-nos que algum dia estivemos debaixo de duas velhas palmeiras a construir o beijo mais literário de sempre, o beijo poético
E às vezes,
o beijo fatídico,
E às vezes adormecias nos meus braços...

(ficção não revisto)
“Alguém vai dizer: ficção o caralho...!”
@Francisco Luís Fontinha

domingo, 28 de abril de 2013

Sabia-te quando terminavas nos sonhos

foto: A&M ART and Photos

(ao Rei dos Sonhos)


Sabia-te quando terminavas nos sonhos e caminhavas no corredor da saudade, ouvia-te dançar sobre o mosaico porcelana da piscina em forma de rua, perdida, tu, corrias em direcção às escadas de acesso da rua dos pequenos beijos de porcelana, dormias entretanto, profundamente, pensava eu, quando olhava nos teu olhos cerrados as imagens reflectidas de uma louca e antiga máquina de slides, o picotado desenhado numa fina película de plástico retirada a um saco incolor de supermercado, finíssima, ela não maior do que um carro de linhas, que servia de carreto que com uma manivela de arame fazia rodar as imagens em frente de uma lâmpada, dormias, dormias, ainda dormes, e eu, permanentemente às voltas com a manivela a inventar imagens picotadas numa tira de plástico com uma agulha esquecida juntamente com o dedal da minha mãe,
a inventar imagens desde 1976,
Fundiam-se-lhe lâmpadas que só posteriormente percebíamos a escuridão das equações diferenciais que tínhamos para resolver, elas, como eles, poisavam sobre a mesa da sala de jantar, ficavam lá, perdidas, fazíamos-las esquecidas, e às vezes, poucas, só com a ajuda de drageias, elas, as equações (macho e fêmea) acordavam do sono incrédulo que Deus nunca acreditou e aos berros
preguiçosos,
preguiçosas,
Sabia-te quando terminavas, acordavas, abrias as janelas do teu corpo, e deixavas entrar a luz que o espelho do guarda-fato absorvia da velha máquina de slides, havia imagens dentro de ti, e só quando te acariciava os seios, e só quando te beijava os lábios de sonâmbulo cravo vermelho, e só
que desenhos mais esquisitos, como corredores, pássaros, migalhas de aço e sobras de vento,
E só quando deitava a minha cabeça nas tuas coxas, sentia eu, sentias tu, as imagens todas, as de ontem, as de antes de ontem, e as imagens de infância, saíam do espelho do guarda-fato, sentavam-se um pouco sobre a mesa-de-cabeceira, apenas para nos contemplarem, e só depois, começavam a entrar em ti, e no fim, eu entrava também, e tinha como missão, encerrar a porta, hermeticamente, e dentro de ti, saltava, brincava, dormia, como tu
a inventar imagens desde 1976,
Como tu, dentro de uma piscina, caminhando a passos apressados como se a rua estive quase a fechar-se, e a carapaça de tartaruga aos poucos, em pequeninos milímetros de cada vez, até todo o tecto baixar, e tu, desapareceres, em corrida, dentro de água com o cheiro a saudade, com o silêncio dos cobertores suspensos nas pálpebras tuas, que dormias, sossegadamente como um anjo louco, de caligrafia como pequenas mandíbulas de areia, como eu, desesperado procurando por ti, dentro de água, dentro de uma caixa de sapatos
onde funcionava uma pequena máquina de slides,
Com refrigeração,
a fundir lâmpadas desde1983,
E tubos de néons sobre a porta de entrada, “sabia-te quando terminavas nos sonhos e caminhavas no corredor da saudade, ouvia-te dançar sobre o mosaico porcelana da piscina em forma de rua, perdida, tu, corrias em direcção às escadas de acesso da rua dos pequenos beijos de porcelana, dormias entretanto, profundamente, pensava eu, quando olhava nos teu olhos cerrados as imagens reflectidas de uma louca e antiga máquina de slides, o picotado desenhado numa fina película de plástico retirada a um saco incolor de supermercado”, e uma campainha de serviço, um gajo feio, como eu, devidamente fardado a preencher os impressos para a atribuição de subsídios para a construção de máquinas de slides, e eles
apenas com uma caixa de sapatos, uma lâmpada, duas pilhas de volte e meio, alguns fios eléctricos, um pedaço de vidro que fazia de lente, e cerca de cinquenta centímetros de plástico com cerca de seis centímetros de largura, e um carrinho de linhas, e claro, a manivela em arame... e um pedaço de pano que apelidamos de lençol,
Com refrigeração?
e desenhos pacientemente desenhados com uma agulha,
A fundir lâmpadas desde1983,
pacientemente eu, a perder parafusos desde Janeiro de 1966.

(não revisto; parte deste texto não é de ficção e aconteceu com o meu amigo de infância - infelizmente já falecido - JÚLIO)
@Francisco Luís Fontinha

Amargos poemas da morte

foto: A&M ART and Photos

Há fogo nos teus olhos minguados pelo silêncio da chuva
quando o meio-dia de um suicidado relógio
cai sobre as pequenas lágrimas de granito
como se os amargos poemas da morte
tivessem vida e começassem a transpirar sílabas furtivas,

Há fogo nos teus olhos
como janelas cristais dentro de hipercubos
como lábios de areia
da lareira dos sonhos
as tristes paisagens dos teus seios de amêndoa,

Há tanta coisa dentro de ti
meu cansado amor sem teres a destemida coragem de me olhar
escrever ou pintar no muro recheado de ervas e sanzalas imaginárias
os poucos sonhos que as minhas mãos deixaram no teu rosto argamassado
pelas geadas marés do vidro em planícies embalsamadas pelo desejo da paixão,

Há fogo nos teus olhos minguados pelo... da chuva
que te esqueces das poucas palavras que ainda vivem dentro de mim
como uma roseira bravia e ensanguentada pelas nuvens em demanda...
há meu amor
madrugadas fingidas em noites acordadas tuas fantasias,

E que não sabias
que há árvores à nossa espera num jardim invisível
onde passa um rio em corridas apressadas
adormece no mar
do fogo teus olhos minguados pelo silêncio da chuva.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

sábado, 27 de abril de 2013

De aço envergonhado

foto: A&M ART and Photos

Haverá mares suficientes para eu me esconder, sendo eu, um barco sem motor, com uma velha vela, sempre, e sempre, à espera, à espera que acorde o vento, à espera que acorde o meu corpo de aço, me levante, abra a janela da maré, e oiça o teu coração,
e falta-me a coragem para dizer que te amo, alga silenciosa dos rios amordaçados,
Haverá assim ventos suficientes para te trazerem até mim? E se tu nunca apareceres, e se tu, não sei, se tu uma rocha que vive no fundo do mar, como saberás, eu não sei nadar, e se mergulhar, certamente, e pelas leis da física, jamais voltarei a olhar a luz nocturna das ruas de Lisboa, pensar que dos néons há galerias de arte que esperam visitantes, e há caves a transbordar de suor, e há sótãos a apodrecer, sobre a cidade, quando regressa o vento, quando tu desapareces para posteriormente, ao outro dia, ver-te sentada numa esplanada, como se não me conhecesses, como se nunca tivéssemos dormido juntos, inventando sonhos juntos, desenhando desenhos, não juntos, porque tu, apenas me olhavas embrulhados nos pincéis e nas tintas e nas telas e nas minhas loucuras, sempre eternas, sempre desérticas, como as Primaveras, como as dália e as margaridas, sobre a terra, à espera pelo regresso do vento, de vela pronta
zarpar,
Prometer, imaginar ser amado dentro de um cubo de vidro, apaixonado, eu, um barco sonolento, de aço, envergonhado, não adianta semear flores numa laje de cimento. não adianta escrever, ler, não adianta amar fingindo viver, não adianta caminhar,
não adianta fingir ser feliz quando somos a pessoa mais infeliz do universos, não adianta, não adianta mentir fingindo que estamos bem, quando todos os caminhos, todos os rios, e todas as luzes morreram numa noite de insónia,
Não adianta acreditar, sonhar, não adianta ter esperança...
Também tenho o direito de gritar e parar de fingir que está tudo bem,
“tão triste eu quando acorda a noite e cresce e cresce sobre as angustias do jardim um deus louco com uma perna de pau, tão triste eu quando as tuas mãos ausentes percorrem o meu corpo sitiado entre grades imaginárias de aço inoxidável e fios de seda e terminam viagem nas minhas mamas; primeiro regressa a noite,
depois ausentas-te juntamente com a noite e voas de árvore em árvore até mergulhares nos uivos dos meus olhos castanhos, depois, tão triste eu quando acorda a noite, depois a tempestade suspensa no corredor, passas apressadamente e não me olhas, depois, depois caiem todas as nuvens sobre este mísero divã e do relógio depois, depois as minhas mãos começam a envelhecer, a envelhecer depois o cortinado, a janela sem vidros, a envelhecer este quarto de pensão enfeitado de área de serviço, depois o relógio tomba silenciosamente no pavimento e morre o tempo,
tão triste eu. Acorda o chocolate na minha boca e imagino-te sentado no divã a fingires que do outro lado da rua vive um rio com barcos, que do outro lado da rua, tão triste eu, do outro lado da rua...
tão triste eu Meu Amor ausentada de ti.”
E conheci uma rosa que roubei do jardim numa noite de Agosto inventado num livro que poisava na mão de uma menina, os silêncios da noite ausentes de estrelas e alecrim, havia no ar o perfume do desejo, havia o perfume da noite submerso na paixão da literatura e da poesia, eu e a menina morremos, inventados no livro onde envelheceu a rosa e ainda hoje habita, tristemente só, tristemente inventada das palavras escritas apressadamente antes de acordar a noite,
não adianta acreditar, sonhar, não adianta ter esperança...
Não acredito em reencontros porque quando se perde alguma coisa é para sempre ou então, ou então essa coisa não foi perdida,
se eu escrever numa folha de papel e a amarrotar e a esconder dentro de uma gaveta, um dia, mais tarde poderei reencontrar esse manuscrito,
Mas se optar por a rasgar e destruir o reencontro será impossível,
“Poema em cio”

Desesperadamente
as minhas palavras
coladas no vidro da morte
em pedacinhos amargos
a boca do poema
em cio
mergulha ele dentro do silêncio
no desejo dos barcos entre as estrelas de papel
e a noite de fingir
assisto ao fim da noite
quando das vaginais madrugadas
ouvem-se os uivos das acácias em flor

desesperadamente
as minhas palavras
nos meus pequenos desejos de silêncio amargo
caminhar dentro do mar
antes de acordar o pôr-do-sol

dos vidros da morte
as minhas mãos em crustáceos de glicerina
os cogumelos da vaidade em sombras sibilas
e a laranja do amor
aos poemas loucos
as migalhas do aço inoxidável
nos olhos do deus do cio
desesperadamente

(Desesperadamente
as minhas palavras
coladas no vidro da morte)

e a morte vive no meu corpo
desde o dia que acordei poema em cio
e todas as janelas da poesia não tinham visibilidade para o mar
e todos os barcos
e todos os barcos ouviam-se dentro das estrelas de papel...


Percebes agora porque haverá sempre mares suficientes para eu me esconder, sendo eu, um barco sem motor, com uma velha vela, sempre, e sempre, à espera, à espera que acorde o vento, à espera que acorde o meu corpo de aço, me levante, abra a janela da maré, e oiça o teu coração... e depois
dir-te-ei que te amo loucamente, sem medo, sem medo de perder.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

A cidade dos rios

foto: A&M ART and Photos

Não encontro esses olhos mergulhados em pedacinhos
de som da cidade dos rios
não encontro os cabelos do vento suspenso num livro de poemas
entre mãos e tristezas tardes onde ancora o silêncio provocado
pelos teus beijos de cianeto,

Não encontro transeuntes na tua cidade
com mãos para me acenarem
com pernas
se possível
para me pontapearem quando me transformo em canino rafeiro...

Não encontro as charruas que escrevem nos montes bravios
sílabas vestidas com água fresca
e enxadas que provocam na solidão
feridas e dor e sonhos em frente às montras de uma livraria
sem saberes que te sentas nas planícies dos cisnes,

Não encontro a fogueira dos teus lábios
sobre a lareira da tua boca
fechada
ausentada de mim
como as horas de Sábado depois de partir a noite,

Depois
depois de ficares aprisionada a um banco com ripas de madeira
a inventares no calendários das cidades
nomes de ruas e ruas com edifícios que têm nas pálpebras pequenas migalhas de cimento
como o cianeto dos teu beijos antes de me abraçares...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Gaivotas com pequenas pinceladas de neblina

foto: A&M ART and Photos

Sob o cinzento céu passeavam-se as gaivotas com pequenas pinceladas de neblina que os barcos a vapor semeavam nas ruas da cidade, havia algumas árvores, tristes árvores, havia uma mulher com os braços cruzados que sonhava com o mar e com o vento que transporta as gaivotas, as gaivotas que poisam sobre as árvores prateadas, quando todas as luzes se apagam como quando os espelhos cessam de projectar imagens, lágrimas que caiem da mesa-de-cabeceira e rolam sobre as tábuas indolores do soalho, alguma parte dele, apodrecida, outra, voando como as gaivotas, sob o cinzento céu de Abril, e outra
doente
E da terra inclinada, projectam-se contra o tronco débil das pequenas árvores, rochas e objectos de pequeno porte, os vidros das janelas que ajudam a proteger do silêncio as pequenas árvores, partem-se, estilhaçam-se e derramam-se como líquidos vaidosos sobre a neblina porcelana dos vestidos das bonecas das meninas que brincam debaixo das oliveiras, pequenos torrões de açúcar aguardam pela sinfonia melódica das cantigas endiabradas que aos poucos se vão ouvindo do pátio da escola primária, um rapaz de calções
doente, com pequenas pedras da calçada, parte os vidros da escola, joga ao espeto com um ferro pesado e aguçado, um dia quase que ficou com o pé esquerdo prisioneiro no recreio da escola, furou-lhe a bota e só abrandou quando quase atingiu o centro da terra, aí, percebeu a razão de não caírem as árvores, os edifícios das cidades, que em casos especiais, quase chegam ao céu, e tudo à sua volta
Estranho, os calções baloiçavam entre duas cordas de nylon, um travessão de madeira servia-lhe de assento, e depois de um ponto final, um novo paragrafo e perdoar-lhe
amar-te-ei?
E o cinzento céu a misturar-se com o solitário vapor dos barcos de cartolina, e porque as gaivotas de papel com pequenas pinceladas de neblina não sentem o cheiro da nafta horrenda que se ouvia nos portos de embarque, o miúdo de calções, quase em pequenos vómitos, subiu as escadas do paquete abandonado, enorme, com tantas janelas que quando tentou contá-las, desistiu, porque eram muitas, porque ainda não sabia contar,
porque o cheiro envenenado da nafta parecia madrugadas em bolor no tronco das pequenas árvores da menina com os braços cruzados,
Amar-me-ás?
Porque o cheiro envenenado
Amar-me-ás? Perdoar-lhe como os marinheiros perdoam às marés o sombreado dos cais e dos soníferos para a constipação e dores de cabeça, e a diarreia, e para todas as desilusões do amor depois de adormecer a tempestade, depois de adormeceres, deitares a cabeça sobre uma almofada de xisto, e sonhares que
se amanhã fosse Sábado... pegava no vapor e zarpava... abria a janela, borda fora com o diário de bordo, passava pelas pequenas árvores onde uma mulher com os braços cruzados brinca com as meninas das bonecas vestidas com a porcelana fina, e depois
De chegar à cidade, percorrer todas as ruas como as procissões de aldeia, fazia-me à literatura, imaginava imagens em espelhos de guarda-fato que deixei numa pequena casa em Vila de Migalhas, construía personagens do tamanhos das pequenas árvores, com corações sofridos, com braços cansados, com pernas distantes das temperaturas íngremes que os velhos termómetros de mercúrio desenhavam nas ardósias da contemplação de uma fotografia em plena Primavera,
doente
Amar-me-ás?
amar-te-ei?
E a bailarina, enquanto não descruzar os braços e folhear o livros dos sonhos, não poderá nunca responder
Amar-me-ás?
Não sei, ainda não sei...
e eu
amar-te-ei?
Só depois do cinzento céu se alicerçar nas pequenas árvores, e eu, tu, elas, e elas, deixarem de brincar, despirem a fina porcelana e inventarem novas imagens nas ruas da cidade encharcadas com o velho vapor do barco de cartolina
e eu, um rapaz de calções
doente, com pequenas pedras da calçada, parte os vidros da escola, joga ao espeto com um ferro pesado e aguçado, um dia quase que ficou com o pé esquerdo prisioneiro no recreio da escola, furou-lhe a bota e só abrandou quando quase atingiu o centro da terra, aí, percebeu a razão de não caírem as árvores, os edifícios das cidades, que em casos especiais, quase chegam ao céu, e tudo à sua volta,
Depois de subirem as escadas, tocam suavemente o céu.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Desenho de Francisco Luís Fontinha

Encarnadas lágrimas que o silêncio inventa

foto; A&M ART and Photos

Da caverna envergonhada onde se esconde a saudade, oiço as encarnadas lágrimas que o silêncio inventa no rosto da menina sentada no banquinho de madeira junto às roseiras brancas, e bravias, e do teu corpo nublado desenham-se sobre as mesas de granito os carris ilimitados, alguns, que me transportarão até ao Douro, outros, vão deixar-me a meio-caminho, o dúctil, a escancarada melodia sobre as marés de sémen pensando serem as vozes do destino em revolução, havia greve dos poetas e ficcionistas, havia músicas com palavras, e palavras sem músicas, e comboios que fingiam caminhar sobre os carris de aço, os próprios e verdadeiros carris do iluminado jardim das agonizantes bolhas de bolor que se faziam crescer nas dobradiças dos pilares embainhados que se ouviam das
cavernas
Das tuas nádegas, também elas, em greve, de fome, de zelo, de palavras,
hoje não se escrevem palavras, pedimos desculpa pelo incómodo,
“Por motivos de greve, hoje fechados”
Uma escarpa com lençóis de purpura fina sobre uma mesa de vidro, um pequeno livro, aberto, numa página sem numeração, sem significado nenhum, um beijo surge da capa do livro, aberto, sobre a mesa de vidro, um beijo com três cores, um beijo que iluminará a caverna envergonhada, aquela, de há pouco, onde se esconde a saudade,
a minha saudade,
A voz que precisa de alimento, as coxas do vento que precisam de uma vela, um mastro, ou
a gaivota do tio Joaquim,
Ou uma velha Caravela, só, só e só, e companhia limitada, nenhuma, só e falida, falida como os porcos bravos das pocilgas nocturnas, invisíveis, quando das viagens a S. Pedro do Sul, e chegava lá, não cansado, não triste, desiludido, chegava lá feliz, contente, como se o ar que se respirava em Carvalhais fosse mais leve do que o ar respirado em Alijó, e mais pesado, do ar que eu estava habituado a respirar em Luanda, e mesmo assim, mal saía do carro, beijava os meus avós, e corria loucamente para a eira, abria a porta do espigueiro ou canastro, e com a paciência de um desiludido com as nuvens destes longínquos Oceanos, começava a contabilizar as espigas loiras do milho, desistia, e sentava-me sobre o granito da entrada, e ao longe, conversava com dois espantalhos que o meu tio Serafim tinha construído para afastar os pássaros do cereal, e na altura, eu
não percebo porque fazem isto aos coitados dos pássaros,
E coitados uma ova, são espertos, e começaram a aprender a viverem com os espantalhos, e quando me apercebia, via-os sobre eles, ia até lá, e todos “cagados”, como as estátuas, ou como os homens iguais a mim, que quando se passeiam pela rua, debaixo de árvores, e
com tanto metros quadrados de superfície tinham logo de “cagar-me em cima de mim estes filhos da puta” mas é este o meu destino, há pessoas que nascem para serem doutores em seis semanas, há pessoas que nascem para serem ricos em apenas cinco lições, e há pessoas, como eu, que nasceram para servirem de sanita aos pássaros, e mesmo assim, confesso-te que gosto deles e que me fascinam,
Da caverna envergonhada onde se esconde a saudade, oiço as encarnadas lágrimas que o silêncio inventa no rosto da menina sentada no banquinho de madeira junto às roseiras brancas, e bravias, e do teu corpo nublado desenham-se sobre as mesas de granito os carris ilimitados, alguns, que me transportarão até ao Douro, e só agora percebo que a menina sentada no banquinho de madeira, és tu...
mas... afinal quem tu és?
E talvez sejas apenas um desenho mergulhada em palavras e copos com vodka como aqueles que deixamos sobre uma mesa num bar em cais do Sodré, claro
ainda tu eras menina, e ainda eu, não sabia que era eu,
Assim éramos nós antes de inventarem estas coisas todas que nãos nos servem de anda.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

A Floresta do Medo

foto: A&M ART and Photos

As palavras estonteantes que prenunciavas na minha ausência
e eu sem o saber acreditava em sonhos de infância
e cidades de vidro
e noites com lâmpadas mágicas vestidas com livros de poesia
e manhãs de quinta-feira pobres ou doentes ou quase nada,

De mim
quando sinto o meu corpo rolar sobre as rochas de insónia
e mergulhar no líquido viscoso dentro de uma conduta de cerâmica
oiço-os e sei que me perseguem
como cães raivosos provenientes das catacumbas do prazer,

Às palavras sem o destino perfume dos cinzentos fetos despidos como as ervas daninhas
quando caminham pela floresta do medo
sei que eles me perseguem
e que nunca me encontrarão porque há muito me sinto morto
longe deste silêncio disfarçado de felicidade...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 24 de abril de 2013

As cubatas da saudade e os musseques com homens de pano, com mulheres de palha...

foto: A&M ART and Photos

Eu pensava que os dias eram pequenos aeroplanos sobrevoando as cubatas da saudade e os musseques com homens de pano, com mulheres de palha, com meninos em forma de triciclo, e sempre que me erguia, ouvia, sentia, vinha até mim uma nuvem encarnada com olhos verdes, sobre ela, brincava um menino com um papagaio de papel e de cor amarelo, e eu sem saber o que fazer, puxava o cordel, e caía o céu sobre nós, as estrelas transformaram-se em papeis tão finos e pequenos que,
mal se conseguiam observar quando atingiam o pavimento térreo do largo dos morcegos nocturnos, havia mãos entrelaçadas, havia suspiros misturados em suor e lábios diluídos em pequenas bocas de sobremesa, depois do jantar, o cigarro perfumado, construído devidamente para o efeito, e uma borboleta em batimentos de asa fazia com que no terceiro andar direito, onde apenas dormia a minha vizinha Amélia, caíssem todos os objectos que jaziam sobre a cristaleira, coisa estranha, a minha, a vida de mim, como as mãos de ti penduradas nas mãos de ela, e claro que nas mãos dela, mas hoje, a mim, apetece-me escrever “nas mãos de ela”, e das mãos de ela
Nasceram pássaros, pequenos objectos em puro cristal, pratos em porcelana, barrigas de aluguer, flores de papel e janelas com cortinados de vidro e no lugar dos vidros, pequenos quadrados de tecido, de preferência, escuro, preto, assim, quase nunca se nota a sujidade, e nas tascas perdidas pela cidade, uma finíssima toalha em plástico ornamentava uma mesa caquética, que quando se pegava nos talheres, e como às vezes, estes, eram tão finos que se dobravam sobre o próprio estômago de aço, e tínhamos de recorrer às nossas mãos para dilacerar meio frango no churrasco em menos de quinze minutos, e era nessas alturas que sentíamos a mesa em pequenos tremores de terra, depois iam aumentando... até o líquido dos copos do jarro de alumínio, se derramar, e aos poucos, caminhar sobre a horrenda decoração estampada na toalha de plástico, e era quando vinha a menina Joana, trazia sempre um pano entalado entre a cintura e o cinto que segurava-lhe as calças de ganga, que nós fazíamos apostas para adivinharmos de que cor era, e como sempre, eu perdia, porque nunca acreditei que ela tivesse a cintura esbranquiçada, como eu tenho todo o meu corpo, e o restante, fosse num tom castanho com sílabas de madrugada, e o frango, como sempre, uma delícia...
e de mãos dadas lá íamos caminhando solenemente junto ao mar, nuas, sem pudor ou medo que o feitiço da paixão e do prazer provoca nas pessoas, nas flores, ou mesmo nos pássaros, e um dia pensei como seria uma cena de amor entre duas moscas, num sótão, apenas com uma divisão, a um dos cantos, um pequeno divã, e em toda a volta do compartimento uma longa estante recheada de livros, onde apenas havia o vazio da clarabóia, imaginava as moscas como nós, nuas, dávamos as mãos, e eu poisava-lhe a minha mão sobre o ombro dela, ela a princípio, em pequenos movimentos de asas, como a borboleta, olhava-lhe nos olhos, como tu, olhas-me e desejas-me, e gemidos de silêncio rompiam a escuridão da pequena solidão de vidro, deitava-me de barriga para o ar, às vezes, sentia as asas dobradas como pequenas folhas de cartolina, tu, docemente, colocavas-me a mão debaixo de mim, e voltavas a fazer com que as minhas asas, fossem novamente asas, e não papel grosso amarrotado, como os dias que não saíamos, como as noites que nos amávamos sem percebermos que do outro lado do telhado, um parvalhão com um mata-moscas na mão, perseguia-nos, sem perceber
Que o amor
quando quer,
Acontece.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 23 de abril de 2013

O senhor Amanhecer

foto: A&M ART and Photos

Não consigo diferenciar-te na paisagem do misterioso senhor amanhecer, és uma sombra, uma pequena janela de iodo misturada dentro de um copo com água-mineral, não cruzo os braços, encerro os olhos com a ajuda do punho de ferro em pulsações ritmadas, pegavas nas vitaminas, tomavas-as diluídas em água da chuva, quando acordava a seca, não vitaminas, não árvores com pequenas migalhas de flores miseráveis onde brotavam sílabas com lágrimas de incenso, olhava-te e sentia-te perdida na margem direita do rio sem destino, perguntavas-me como se escrevia um poema, e eu, respondia-te inventando histórias com palavra zincadas em molho alicerçado nos paralelos antes do patamar com acesso a uma porta de entrada, um vazio com paredes de vidro, húmidas nos cantos devido às uniões em borracha,
(hoje precisava-te)
Inventas palavras, mentiras secretas, coisas estranhas sempre a acontecerem em teu redor, uma árvore que cai, uma casa que fica doente, vómitos e diarreia, ou
(a calçada com o braço esquerdo suspenso no peito, provavelmente, uma entorse, ou)
A próstata, ou a diabetes, os olhos a diminuírem de tamanho, cor, como diminuíam os dias até vinte e um de Dezembro, depois, as dobradiças a necessitarem de um simples banho com óleo, o reumatismo, as artroses, lá fora, amanhã, uma voz ensurdecedora – Cinco Euros, meus amigos e amigas, apenas Cinco Euros pelo chá e ofereço este magnifico relógio de pulso, para a diabetes, para o reumatismo, para a próstata... Cinco Euros – e eu, tentado, e ela
(parvalhão, ainda acreditas nisso?)
E ela quase engolida pela paisagem do misterioso senhor amanhecer, és uma sombra, uma pequena janela de iodo misturada dentro de um copo com água-mineral, não cruzo os braços, encerro os olhos com a ajuda do punho de ferro em pulsações ritmadas, pegavas nas vitaminas, tomavas-as diluídas em água da chuva, quando acordava a seca, não vitaminas, não árvores com pequenas migalhas de flores miseráveis onde brotavam sílabas com lágrimas de incenso, e um silêncio de espuma saía-lhe de dentro, como se habitasse no ventre embalsamado pelo gesso das paredes obliquas até chegarmos ao tecto das ressacas ambíguas, dormentes, ferozes, como o exercito de abelhas do senhor amanhecer,
(diziam-me que foste a mais bela que alguma vez apareceu junto à margem direita do rio sem destino, hoje acredito que sim, ontem, pensava que eras a mentiras de mim voando entre dois ponteiros de um relógio, este, não de pulso, este algures pendurado na parede da sala, dia sim, anda, dia não, dorme, não o oiço, não telinta as horas, os quatros-de-horas e as meias-horas, levo-o às urgências dizem-me que é
(tristeza, saudades e afins)
É louco, e que com umas drageias nunca mais se lembra da tristeza nem da saudade... nem da paixão, do amor, do prazer e da fome, felizes aqueles que podem tomar estas drageias, felizes aqueles
(parvalhão, ainda acreditas nisso?)
Aqueles, felizes, os que vivem sonhando com sombras misturadas com trincos de madeira, cadáveres de sorrisos balançando nos gonzos empenados quando descem dos algerozes as coisas estranhas que acompanham a noite, vivem nela, são ela, são... direito, esquerdo, levante o braço – Eu? - sim, o senhor, o senhor amanhecer, quarenta e sete anos, profissão desempregado, não dorme, deixou de sonhar, come pouco para prevenir enfartes e outras doenças, e vive, fingindo que vive à beira de um rio com o nome de
(sem destino)
De princípio acreditava nas amendoeiras em flore, nos socalcos e nas videiras, hoje, hoje apenas emagrece lâmpadas incandescentes para reciclagem, vive com duzentos e vinte volts e anda uma gaja baixinha, magra, de cabelo entrelaçado como faz o vento aos pinheiros desgovernados, na peugada dele,
(não acredito)
Coitada dela, da infeliz
(diz-se apaixonada por ele, loucamente apaixonada).

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Em destaque – Sapo Angola
Blogue Cachimbo de Água

segunda-feira, 22 de abril de 2013

A mão inclinada

foto: A&M ART and Photos

O cubo corporal suspenso numa árvore de papel, a pele mistura-se dentro da sombra desenhada com as lâminas de barbear, escrevo folhetos, folhetins, panfletos, em promoção conseguia-se uns descontos confortáveis, três panfletos por cinco contos, barato, fazíamos sempre uma excelente compra, e se algo corresse mal, claro, sempre por culpa dos ciganos – A quem compraste, pá? - claro, a um cigano que andava a passear pela rua – Qual rua? - uma, qualquer, uma rua sem asas, em voos de liberdade condicionada, uma corrente de aço prendia-nos aos ventos do deserto, os barcos, havia, folhas de alumínio, tão grandes, grandes, enormesss, do tamanho da noite
(sem estrelas, e faço-o propositadamente para que os corpos mergulhados no cubo invisível, a carne embalada no berço das poucas coisas possíveis e imaginárias, ripas de madeira, sem pintura, quatro pregos, pregos em aço, não dos outros, em carne e osso, na moldura a fotografia dos teus olhos, apenas, negros, negros olhos, penumbra de ti quando descem as calçadas de Lisboa pelo teu corpo travestido, e antes de caírem no pavimento abriam-se-lhe das cabeças ocas com pilares de areia, o cubo, e o rio...)
Do tamanho do homem com braços de noite, com pernas de noite, com um esqueleto de noite, abraçados, apaixonados, dentro, fora, encarcerados, com grades de madeira, lá fora as crianças da escola pintavam o mar no tronco das árvores, e cá dentro, havia entre nós uma mistura fria, havia um líquido esbranquiçado que nos untava, oleava, e depois, depois vinham os dias, primos das calçadas de Lisboa, primeiro a Ajuda, depois uma outra qualquer, não interessa, e depois via-se o rio a sair da algibeira de uma mulher com cabelo preto, olhos castanhos e corpo esguio, como uma enguia saltitando as margens junto a Cais do Sodré – Amor, estou quase a chegar – e
(sem estrelas, e faço-o propositadamente para que os corpos mergulhados no cubo invisível, a carne embalada no berço das poucas coisas possíveis e imaginárias, ripas de madeira, sem pintura, quatro pregos, - Sim, meu amor, sim! - o inacreditável parvalhão esperava pacientemente pelo reencontro das fotografias de Lisboa com as fotografias de um local esquisito, distante, e quando lhe perguntavam – Onde fica isto? - ele apenas encolhia os ombros, silenciava-se e acreditava que ela um dia regressaria do vazio sonho sem almofadas, subia-se uma escada íngreme, apertadinha, e quando chegávamos ao sótão, a senhora teia de aranha – Noites de insónia, terceiro andar frente – e de mão dada, descíamos, descíamos, e acabávamos por ultrapassarmos as paredes velhas em gesso e quando acordávamos, estávamos num jardim público, e junto a nós o nicho de Nossa Senhora de Fátima, perguntavas-me – Amor, o que fazemos aqui – e como sempre, não respondi, ou não sabia responder)
E uma mão inclinada, provavelmente com uma inclinação de dezassete graus, e pacientemente, poisava no meu rosto,
(extraias-me a raiz quadrada, calculavas-me a integral tripla do meu coração, depois, traçavas aleatoriamente rectas sobre o meu corpo, até que
“O cubo corporal suspenso numa árvore de papel, a pele mistura-se dentro da sombra desenhada com as lâminas de barbear, escrevo folhetos, folhetins, panfletos, em promoção conseguia-se uns descontos confortáveis, três panfletos por cinco contos, barato, fazíamos sempre uma excelente compra, e se algo corresse mal, claro, sempre por culpa dos ciganos – A quem compraste, pá? - claro, a um cigano que andava a passear pela rua – Qual rua? - uma, qualquer, uma rua sem asas, em voos de liberdade condicionada”
até que nos deitávamos sobre um cobertor almofadado, um tanto preguiçoso, e em conjunto, resolvíamos todos os problemas de matrizes, e em conjunto calculávamos a massa dos corpos em repouso, pegávamos no peso quase sempre nos esquecíamos da força gravítica, e eu poisava em silêncio a minha mão sobre os teus castanhos olhos e – Pede um desejo! - ao que tu respondias – Quero-te a ti! - e claro, nem a raiz quadrada, nem as matrizes, e claro, nem as integrais triplas, faziam sentido nas nossas vidas)
E uma mão inclinada, provavelmente com uma inclinação de dezassete graus, e pacientemente, poisava no meu rosto, era a tua dúctil mão com sabor a cereja embrulhada em papal de chocolate, havia palavras no interior do papel
(eu amar-te-ei sempre)
E com o tempo,
Há muito tempo,
O papel derreteu com as temperaturas elevadas da cidade, e as palavras, elas, diluíram-se com a chuva miúda do último Outono ausentado do cubo empanturrado de corpos, nus, brancos, liquefeitos... como a terra molhada depois das chuvas, e o capim balançava dentro de um pedaço de saudade...

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

domingo, 21 de abril de 2013

A cidade de Deus

foto: A&M ART and Photos

Esta é a minha cidade inventada por Deus
que me esconde quando acordam as tempestades
e o mar sobe até ao quinto andar
e há uma porta em forma de cacimbo
com o cheiro a capim doce e a terra húmida,

Há em mim esta cidade
preenchida nas telas brancas
com espaços vazios
sombrias depois dos alicerces teus cabelos
mergulharem na penumbra do feitiço da noite,

Procuro a saída e percebo que nesta cidade
na rua onde habito desta cidade
não tem portas de emergência
não tem escadas de incêndio...
nem as palavras poéticas das melodias dos cigarros em festa,

Esta cidade é uma “merda” de cidade inventada
tem muitas portas
tem muitas janelas
mas nenhuma delas
me dão acesso ao amor dos jardins junto ao rio,

Nesta cidade perdido ando como um vampiro
ou um ramo de árvore depois do pequeno-almoço
quando a sorte desaparece e as pequenas lâmpadas do estômago fingem-se apagadas
esta cidade com esqueleto de vidro e aço e granito
e pingos de silêncio dos suicídios das gaivotas cinzentas...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Quadradinhos de vidro

foto: A&M ART and Photos

Janelas, quadradinhos de vidro, sobre a rua míngua, deserta, húmida, janelas com flores e cubos de chocolate, janelas de solidão que pacientemente, esperam, que desça a noite sobre os automóveis abandonados, tristes, alegres, cansados, janelas sem vidros, buracos, vazios, vácuo, janelas em frenesim comendo amêndoas e bebendo vinho,
(janelas com grandes de ferro, havia um quintal com árvores e arbustos, havia pássaros, abríamos as janelas, sentíamos os cheiros, os sons, os batimentos sôfregos dos pássaros envenenados com drageias que faziam-nos dormir sem sonhar, janelas com grades, abertas, caía a chuva sobre os primeiros dias de Maio, e alguém em círculos, no longínquo corredor da morte – Tem horas? - e eu, timidamente, com medo, desaperto a bracelete do meu relógio de pulso, tiro-o cuidadosamente e ofereço-lho, dizendo-lhe
Que seja a última vez que me perguntas as horas,
e até hoje nunca mais usei relógio, confesso que a princípio não foi fácil, mas depois, depois habituei-me a ser um dos tantos desorientados, que se regula pelo sol, e quando não há sol, vivo normalmente como vivia, olhando para as janelas, verificando se faltam vidros, procuro as formas, os feitios, os sentidos, e às vezes, perco-me, perco-me no centro das rochas como as grainhas esquecidas sobre os muros de xisto que acompanham a estrade encurvada até ao cais onde partem, chegam, não um, não dois, não barcos, mas mais do que cinco autocarros da carreira com destino indefinido, onde numa placa está escrito “Serviço Ocasional”, e até hoje
percebi,
Que seja a última vez que me perguntas as horas)
Janelas quadradas, janelas triangulares, janelas rectangulares, janelas circulares, e simples janelas como olhos de diamante, imagens, pensamentos, sonhos e omissões, janelas, janelas
(janelas sem corações)
Janelas delas, e deles, abraços e janelas, e prazeres, e janelas que procuram uma cidade para viver, e uma rua para brincar, janelas com seios e púbis, janelas em gemidos quando acorda o dia... e o raio do cortinado ficou preso no fecho éclair da claridade que se abate sobre a mesa-de-cabeceira, - Andas tão estranho, meu querido! - anda, anda
(é por culpa das janelas)
Anda ele e ando eu, andamos, e tínhamos um quarto que felizmente, interiormente, não tinha janela, não havia imagens, nem sonhos, nem brincadeiras de miúdos, um quarto onde resolvemos desenhar e pintar
(janela)
E um crucifixo, que por ora está só, sem ninguém, mas logo que possível, mas logo que seque a tinta e nos seja possível abrir a janela, talvez, alguém para preencher o vazio do crucifixo com cheiro a verniz,
(culpa das janelas invisíveis, janelas que constroem a solidão a partir de pedaços de sombra, e dos autocarros da carreira que antes chamavam-lhes machimbombos, e hoje, apenas imagens, fotografias aprisionadas dentro de compartimentos sem janelas, buracos, vazios, infelizes, entradas para o infinito céu de compartimentos com grades de insónia, e sobre a dita mesa-de-cabeceira o fecho éclair liberto do cortinado, a liberdade, de ter uma janelas, com vidros, sem vidros, apenas um vazio, para olhar, pensar, sofrer, ou sonhar..., ou claro, simplesmente... para te sentares)
O cheiro da madeira, e o hálito de vinho que o homem da esquina encarnada usava e às vezes sobejava, o silêncio de um cheiro, a saudade de uma janela com mil sabores, com mil e novecentos caracteres, com um espaço e meio, cerca de trinta páginas, que depois do vento, foram-se como foram os vidros, as teias de aranha e toda a mobília, e ficaste tu, a construir a cidade, trouxeste as árvores, fizeste os pássaros, e colocaste, cuidadosamente... todos os vidros das janelas em paixões de areia molhada, que o mar deixa ficar no pavimento ensonado dos fins de tarde
(percebi)
Antes de acordar a noite.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Loucas imagens da fina areia mergulhar

foto: A&M ART and Photos

Estranhas imagens que o corpo absorve
depois de regressar a tempestade
e a fina areia mergulhar
nas profundezas mãos de sabão,

Estávamos loucos quando imaginámos sombras nas janelas do amanhecer
e via-se perfeitamente um cortinado de amargura
rompido e ensanguentado
desértico do amor apodrecido,

Descia a noite
e as imagens negras voltavam às tuas mãos
havia uma ressonância de cigarros
embainhados debaixo do tecto das gaivotas que diziam-se perdidamente apaixonadas,

Perdidamente
perdidas entre vãos de escadas
e portas emagrecidas
… portas com corações de oiro e olhos madrugadas.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

sábado, 20 de abril de 2013

Invento a tua mão

foto: A&M ART and Photos

Procuro um trilho seguro entre duas linhas paralelas, do aço longitudinal poisa o nevoeiro como a poeira fina das lágrimas do meu rosto, pego na minha mão e coloco-a transversalmente na face rosada, escura, sou absorvida pela neblina, e metros depois, desapareço entre as tábuas apodrecidas que abraçam a linha férrea que me irá transportar até ao “O Cais das Merendas – Lídia Jorge”, li-o ainda eu era adolescente e apaixonei-me pelas palavras dela, pelas histórias, e foi há tanto tempo, tempo demais, o suficiente para chamar a “Clarissa – Érico Veríssimo” e afagar-lhe o cabelo com os meus dedos de insónia, finos, compridos, leves como o vento, cinzentos, e até às vezes, encarnados como os botões de rosa do jardim público com bancos em ripas de madeira, finas, e em letra de imprensa “Cuidado – Pintado de Fresco”, e como eu distraidamente, como tu, sentámos-nos, demos as mãos, e quando nos erguemos, a minha saia tinha as marcas das ripas e as tuas calças de ganga
(três sombras como uma grade de sofrimento, três ripas de madeira que aprisionavam invisivelmente as minhas nádegas de areia)
Três linhas rectas, carris, sem saída, e sobre mim uma fina camada de neblina que não me deixava ver os carris, começa a descer a noite, escrevia o teu nome na minha boca, e tu, não vinhas, e tu, talvez perdido entre ruas e edifícios defeituosos, com muitas janelas e vidros partidos, e quando acordava o sol, ouviam-se-lhes as saudades da areia branca,
(três sonhos dentro de três desejos que esperavam por três tristes tigres, e à nossa volta, três ruas, apunhaladas por três homens com uma cabeça de marfim, e depois, viam-se três, também elas tristes, três lindas flores com pétalas em vogal de incenso e sílabas com molho de palavras voláteis dos dias engasgados nas bocas de três alegres, estes sim, alegres rapazolas vestidos com mantas embalsamadas pelo silêncio e pela pobreza, e triste, também, triste não é ser pobre, triste é ser ignorante e acreditar que tudo à sua volta gira em círculos de saliva, há um pequeno gaguejo sísmico, há um pequeno latido, um lamber de botas... e já está, a vida só é triste quando se é ignorante, e ser-se pobre não é dramático, ser-se pobre ou filho de pobres, não é vergonha, é um enorme orgulho, vergonha... é realmente ser-se ignorante, porque a única coisa que o dinheiro não compra é a vida, e a inteligência)
E nós sabíamos que as areias brancas estavam tão longe de nós, como estes carris, que quanto mais caminho sobre eles, mais compridos são, longínquos nas manhãs de Outono, entre poeiras e tinta acrílica sobre o olhar da linda Mariana, e nós sabíamos que apenas os perfumes que sobejavam das clareiras em bolor conseguiriam sobreviver à saudade...
(três lindos carris em aço procuram esposa, máximo sigilo)
E procuro-me no trilho seguro entre duas linhas paralelas, do aço longitudinal poisa o nevoeiro como a poeira fina das lágrimas do meu rosto, pego na minha mão e coloco-a transversalmente na face rosada, escura, sou absorvida pela neblina, e metros depois, desapareço entre as tábuas apodrecidas que abraçam a linha férrea que me irá transportar até aos teus braços,
(onde andarás agora...!)
E sussurradamente invento a tua mão dentro da minha mão...

(não revisto, quase ficção)
@Francisco Luís Fontinha

Ficcionado eu de ti marinheiro

foto: A&M ART and Photos

Ficcionado eu na tua mão sideral em pedaços imaginários
de cristal e finos objectos de luz,
há uma lareira que se extinguiu dentro do teu peito de caverna inventada
pelas palavras de uma árvore perdida na montanha,
há ruas que nunca tiveram saída,
tu sabias,
e nelas continuaste a caminhar
como... se passeasses sobre o silêncio mar,

Ficcionado eu nos teus seios de pano
que serviram para embrulhar luares e noites de prazer,
há nessas mesmas ruas,
aquelas que nunca tiveram saída e tu caminhavas,
relógios de pulso e canções de amargo amor,
e tu sabias
que eu era uma simples sombra
como um copo moribundo na mão de uma mulher pintada de negro,

Eras a noite
e aparecias-me quando as luzes da insónia cessavam,
morriam,
eras a noite que sempre tive medo
e cobria-me com o cobertor cinzento...
para que não desses por mim,
ou descobrisses que o meu esqueleto em vez de ossos
tinha ficcionado uma pomba branca cansada de voar.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha


Em destaque – Sapo Angola

sexta-feira, 19 de abril de 2013

A roulote da alegria

foto: A&M ART and Photos

Andávamos de terra em terra, andávamos de luar em luar, éramos dois mutantes fugitivos aos arautos das marés de inverno, sonhávamos, desesperávamos-nos quando encalhávamos sobre as fragas frágeis das aldeias em flor, e tínhamos medo do dia seguinte, e quando acordávamos, continuava tudo igual ao dia de ontem, amanhã, dizem, amanhã é Sábado, levantarmos-nos não muito cedo, o duche, o pequeno-almoço, e uma torrada para o REX, tomar café, de preferência DELTA RUBY, e depois de enganar-me com as sombras de cigarros apagados desde Maio de 2012, regresso a casa, ligo o portátil e escolho o Ubuntu como Sistema Operativo, fartei-me do Windows e das suas birras, parecendo às vezes certas mulheres, chatinhas, tão chatinhas que as prefiro a elas do que a ele, mas enquanto existir o Linux não o trocarei por outro qualquer, porque há coisas inconfundíveis, incontornáveis, amores eternos, amores como o das pessoas, amores
(sou a favor do software livre e aberto a todos)
E depois de tantos amores, e depois de portátil ligado, vou à minha caixa do correio, - Levanto-me, abro a porta da biblioteca, passo pelo corredor, atravesso em bicos de pés a sala de jantar, mergulho num pequeno Hall e depois de ultrapassar a cozinha, entro definitivamente no quintal, e cerca de quinze metros depois, abro a caixa, e correio... nenhum – quem é que tinha o atrevimento de me escrever, digam-me – Quem? - só o “Fisco”,
(andávamos de abraço em abraço, andávamos de gemido em gemido)
Faço uma visita breve ao meu blogue, talvez escreva alguma coisa, depende dos sábados e do estado da caneta Parker de tinta permanente, até à data nunca ame deixou ficar mal, escreve sempre aquilo que quero e desejo, e Às vezes, até me obriga a escrever aquilo que não quero, mas ela é assim, e assim me vai acompanhar até ao fim
(fim de mim, fim de ti, ou fim de um texto qualquer ou poema)
Copiam tudo, aqueles sacanas, e de “O Medo” de AL Berto, na mão, abro-o, e verifico que é uma edição de Outubro de 1991, Contexto-Círculo de Leitores, e com o número de edição do Círculo de Leitores 3138, nada disto importa, apenas que este livro vale algum dinheiro – Talvez cento e vinte euros – mas a minha curiosidade está na contracapa onde vive um pequeno texto meu, de 9 de Maio de 1994, em Vila Real e digo ser esse o dia mais feliz da minha vida,
E reza assim,
“Não tenho medo
de estar só...
não tenho medo de morrer,
mas... sinto medo de estar vivo!
E se eu morrer,
Que seja sozinho;
tenho medo da multidão,
e sei que não estarás ao meu lado!



Claro que eu percebo estas palavras e porque as escrevi naquela data, mas já não importa, e copiam tudo, aqueles sacanas, copiam os poemas, copiam-me os textos, copiam tudo, aqueles estúpidos pássaros de bico amarelo e negros como a noite, recordo-me em miúdo de ver um em casa do meu avô, dentro de uma gaiola, e já na altura, ficava confuso ver alguém com asas dentro de um pedaço de rede, sem liberdade, apenas porque canta lindamente,
(e se um dia, um louco, fizer o mesmo comigo, isto é, construírem à minha volta uma rede invisível, onde me aprisionam, apenas porque escrevo, apenas porque gosto de ler, apenas... porque sou eu)
Andávamos de terra em terra, andávamos de luar em luar, éramos dois mutantes fugitivos aos arautos das marés de inverno, sonhávamos, desesperávamos-nos quando encalhávamos sobre as fragas frágeis das aldeias em flor, sem flores, sem janelas, depois, depois voaram-nos as palavras e os bancos de jardim com meninas de livro na mão, sentadas, cruzavam a perna, e de saia meio de chita, meio de qualquer coisa, esqueciam-se que eu era um pássaro esquecido dentro de uma gaiola numa aldeia do Concelho de S. Pedro do Sul,
(- Tens saudades minhas, meu querido amigo? - e só sei que era Sábado, e que depois de escrever qualquer coisa, deixava o portátil ligado, música em sons melódicos para os fantasmas da livraria, e antes do meio-dia, todos os Sábados, dirijo-me à barbearia do senhor António, desfazem-me a barba e venho descontraidamente almoçar, com o meu querido AL Berto sempre à minha espera, sobre uma secretária de madeira)
Uma das meninas levantou-se do banco onde estava ancorada, colocou o livro debaixo do braço, o olhar dela cruzou o meu, e hoje, hoje acompanha-me todos os dias e todas as noites dentro da roulote da alegria.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Diluído em azuis e castanhos

foto: A&M ART and Photos

Porque gemiam as gaivotas se o mar parecia um campo de milho, calmo e sereno, diluído em azuis e castanhos, meninos com infâncias destruídas, meninos sem infâncias prometidas, e no entanto, sabíamos que um dia íamos experimentar os chocolates com frutos silvestres, que um dia íamos experimentar as cavernas encolhidas nas rochas no cimo da montanha com o coração de riacho, as penas eram de sobreiro e de olhar terno, frágil, magoado, um olhar existente em construções falsas acompanhadas por lágrimas de cereja, e as pernas, tenho uma vaga sensação que eram de granito, e havia uma escada de acesso à caverna, entrávamos, amplamente arejada, uma enorme entrada, e sem janelas, e depois, continuava por um corredor, curvilíneo, até desaparecer na escuridão da noite, não tínhamos móveis, e dormíamos no chão, não tínhamos nada, e éramos tão felizes, como a pequena fogueira que ardia noite e dia, como se fosse uma porta de entrada em madeira robusta, que apenas servia para afugentar os animais mais endiabrados, mas
(que animais fariam mal a duas apaixonadas sombras?)
Ao longe ouvíamos o sombrear da lua quando caminhava sobre a copa das nuvens, tão finas, tão belas e tão doces, diziam-nos que eram de açúcar, mas por infelicidade, mas porque o destino nos tramou quando resolveu juntar-nos numa noite de Setembro, nunca tivemos o tempo necessário para verificarmos se realmente as nuvens eram de açúcar, mas que cheiravam bem, lá isso cheiravam, e que quando chovia, sentávamos-nos cá fora, e sentíamos as gotas de água da chuva junto ao canto do lábio inferior, e aí sim, percebíamos que era doce, mas nunca tivemos a certeza que fossem de açúcar..., como também, nunca tivemos a certeza de nada do que vivíamos ou viveremos na posteridade das sebentas com as páginas brancas, sem imagens, desenhos, e palavras, e ao
(animais)
Longe tínhamos terminado de acender os candeeiros a petróleo, nas mochilas apenas alguns cadernos, alguns livros, e lápis de carvão, e todas as noites, enquanto olhávamos a labareda da velha fogueira, olhava-lhe os olhos e imaginava um rebanho de ovelhas saltitando nas terras férteis e indomáveis de Favarrel, ainda conseguia imaginar o tio Serafim em corridas loucas e à pedrada contra a estrelada, e esta, quando regressava a casa, tardíssimo, mancava, e o velho
(que tem a ovelha, rapaz? - Caiu da parede abaixo, meu pai – e o velho dizia-lhe que no dia seguinte a estrelada ficava no curral, e o Serafim contente, saltava de alegria, porque depois da escola já não ia com as ovelhas para o pasto...)
E o velho tudo fazia para que o filho fosse agricultor, e o Serafim comportava-se como um artista, cantava fado, contava histórias, andou pelas ruas de Lisboa e quando regressou a casa convenceu toda a gente que tinha estado no Brasil, e durante dois ou três anos, ninguém, ninguém sabia do paradeiro do cantante que saiu de casa propositadamente para viajar até às terras de Vera Cruz..., ficou por lá encantado com os cheiros e com os sons
(do Tejo)
E com as mulheres de lá, onde durante a noite se escondia em tasquinhas perdidas em ruelas, e de dia, de janela encerrada, e de cortinado puxado até aos confins do Inferno, ressonava canções com sabor a vinho e sonhava com barcos que se faziam passear pela Terra Nova na peugada do fiel amigo; o eterno bacalhau,
“Porque gemiam as gaivotas se o mar parecia um campo de milho, calmo e sereno, diluído em azuis e castanhos, meninos com infâncias destruídas, meninos sem infâncias prometidas, e no entanto, sabíamos que um dia íamos experimentar os chocolates com frutos silvestres, que um dia íamos experimentar as cavernas encolhidas nas rochas no cimo da montanha com o coração de riacho, as penas eram de sobreiro e de olhar terno, frágil, magoado, um olhar existente em construções falsas acompanhadas por lágrimas de cereja, e porque transpirava o espigueiro recheado de espigas de milho, e porque tinham os melros medo do escuro, quando alguém por engano, desligava o interruptor do dia, vinha a noite, trazia com ela outras amigas, bebíamos, comíamos e fumávamos, sem que nunca tenhamos percebido, sem que nunca tenhamos admitido, que, ontem, na caverna, não tínhamos móveis, e dormíamos no chão, não tínhamos nada, e éramos tão felizes, como a pequena fogueira que ardia noite e dia, como se fosse uma porta de entrada em madeira robusta, que apenas servia para afugentar os animais mais endiabrados, mas os animais ferozes, éramos nós, eu, ela”
(e sentíamos as gotas de água da chuva junto ao canto do lábio inferior, e aí sim, percebíamos que era doce, mas nunca tivemos a certeza que fossem de açúcar..., como também, nunca tivemos a certeza de nada do que vivíamos ou viveremos na posteridade das sebentas com as páginas brancas e os títulos a negrito, poucas palavras, as datas mais importantes, o nascimento, e o último a morrer, ficará encarregue a reescrever a história e a data final de quando terminar a fogueira, tudo dentro da caverna cessará de respirar, e apenas a cinza da fogueira ficará como testemunha do amor de dois apaixonados, risíveis, ternos e com saudades do apito do comboio em corridas loucas na linha de Cais do Sodré até Belém, saía, puxava de um cigarro, e)
Como cresceu o milho,
(e sentava-se no parapeito da janela imaginária para o Tejo)
E não só o milho, o rapaz também está crescido, e a própria cidade, parece obesa, oca, sombria, uma cidade dentro de outra cidade, que, que hoje já não existe...

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha