Mostrar mensagens com a etiqueta Texto. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Texto. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 13 de março de 2024

 




Fodido está o Gonçalves porque comprou uma burrinha por cinco euros,

E ainda teve de oferta um velho arado, que sempre servirá para lavrar este texto.

Quando o Gonçalves chegou a casa com a burrinha e com o arado, deparou-se que a burrinha não tinha documentação

Nem carta de condução.

Pensou: o cigano fodeu-me.

E como fodido já ele estava, não quis saber mais da burrinha nem do arado,

Sentou-se numa cadeira junto ao alpendre, puxou de um cigarro e

Começou a fazer fumo de contas porque tinha sido enganado pelo cigano; ele tinha ido à feira para comprar um livro de poesia,

Não uma burrinha e ainda por cima carregar ao lombo com o velho arado.

 

O Gonçalves queria comprar o livro de poesia de um tal de Fontinha, Poemas Dispersos, que de desperdício só têm o sabor,

Foi à barraca da tia Alice,

Que não,

Que não tinha nem nunca tinha ouvido falar de tal coisa ou coisinho com chapéu de poeta.

Com licença, continuação de boa tarde e que seja o que o rio quiser,

Quando galgar as margens.

 

O Gonçalves nunca saberá lavrar um texto, pelo qual, não precisará mais da burrinha e do arado; brevemente irá colocá-los à venda por dois euros e meio, estando disposto a baixar até aos dois euros.

 

(orgasmo literário)

segunda-feira, 11 de março de 2024

A metamorfose dos pássaros

 

Um dia serei apenas poeira, e tu, um dia, serás a luz das minhas palavras; e antes que eu seja poeira, questiono-me se as minhas palavras, hoje, são mesmo palavras ou, pequenos devaneios, como dizem aqueles que não sabem, desconhecem, o prazer das palavras.

Os pássaros nascem pássaros e, não sabem voar. Eu não nasci pássaro, mas voava sobre o mar de Luanda, escrevia sobre o mar de Luanda, e hoje, pareço um pequeno rochedo à espera de que a maré se dissipe no pôr-do-sol.

Os pássaros têm a paixão nos lábios, eu tenho a paixão nas asas, em papel colorido, como os papagaios que a minha mãe construía nos finais de tarde, debaixo das mangueiras.

E os pássaros que nasceram pássaros, hoje são os sonhos que habitam em mim, como habitam os cheiros, como habitam as cores, como habitam os teus olhos, nas minhas palavras. Louco, eu? O que seria da loucura se não existissem pássaros que voavam nos céus de Luanda…

Depois, nasce o beijo entre dois simples olhares, olhares que se perdem no luar, enquanto no céu, os pássaros dos sonhos, esses, vagueiam sobre o mar, depois, nasce o beijo entre as minhas mãos e as tuas mãos, mas… serei sempre poeira.

Poeira…

Enquanto carrego sobre o meu frágil corpo a nuvem escura da saudade, esses mesmos pássaros, que não sabem o que é a saudade, gritam e choram, como eu, nas noites recheadas de insónia. Mas os pássaros sabem o que é a paixão.

A paixão dos pássaros.

De mim, apenas, a paixão das palavras…

E seremos dois corpos separados por um espelho; o espelho do medo.

 

 

 

(orgasmo literário)

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

As horas de dormir

 As horas de dormir, pareço que finjo, quando acordo embrulhado nas palavras do adeus, uma pequeníssima gota de silêncio absorve a madrugada, agarro-me ao teu corpo suspenso no cortinado da insónia e, há sempre uma criança que brinca na enxada da tarde.

Soltam-se as amarras de todos os barcos, acordam dos oceanos todas as tormentas e, sabe-se lá, quando vem a terra a solidão de um dia sem memória. Os homens sofrem, quando do granítico silêncio, as palavras do poema, inventam-se, rodopiam nas redondezas da cidade, quando um grito silencioso cai sobre todos os jardins.
A fragrância das flores adormecidas, as horas de dormir, pareço um fantasma dançando sob a tenda do circo imaginário, há palhaços de calcário, meninos de farrapos, junto ao mar, em cio, o corvo, as pirâmides embebidas em shots de nada e, no final da tarde, começa a descer a noite porta adentro.
Ponho à janela na esperança de olhar o sol, quando a noite está doente, cansada de brincar, quando depois de se evaporar a tarde, o teu corpo docemente se alicerça nas minhas mãos, as horas, os silêncios depois das horas e, dizes-me que a cada fim de tarde há uma janela que se encerra.
Tenho na minha mão o teu perfume, a cânfora manhã do sítio inanimado quando sei que lá fora um pingo de inveja sobeja das multidões em fúria. Discretamente, aos poucos, desenho-te na sombra dos livros ainda não escritos, gatafunhos acomodados às tristes margens deste rio sem nome, uma cabeça transparente, imunda, no nojento corpo das cidades da mendicidade e, imagino-me à procura de uma fina folha de papel onde escrever o meu testamento.
Tenho medo que amanhã não pertenças mais à cidade.
Que amanhã sejas apenas uma estátua de areia junto ao mar, trazes contigo as fotografias, as flores dos livros perdidos e, sabe-se lá porquê, as horas de dormir, são pedacinhos de silêncio nas tuas mãos.

 

07/02/2024

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

O prometido beijo

 Voávamos entre a sombra do desejo e o beijo adormecido. Tínhamos dentro do corpo o silêncio que a noite depositou junto à praia das areias brancas. Ouvíamos o uivo dos lobos que regressavam da montanha, olhavam-nos e sentavam-se junto a nós.

Pegava num pequeno livro de poesia e lia-lhes poemas dispersos, diga-se, apenas os lobos a percebiam. Puxava de um cigarro embrulhado em solidão e, permitindo aos olhos alguma lubrificação, pequenas lágrimas de incenso se despregavam do rosto e acabavam por morrer no pavimento íngreme da eira.
Estava sol. Dentro dela, sem o saber, crescia um pedacinho de ninguém, uma coisa de milímetros, como se fosse apenas mais um poema. Havia gaivotas à nossa volta, num dos retractos, aparecia uma nuvem de pura lã virgem, que em pequeníssimos círculos, se dirigia para o mar. Talvez depois de acordar, esse minúsculo ser fosse apenas um fio de nylon esquecido num qualquer sonho, de uma qualquer manhã, sem remetente.
Desciam os pássaros o musseque. Uma Bedford amarela, puxada por um pequeno cordel, inventava ruelas e caminhos térreos, logo que depois, aparecia o velho Alberto e, nunca dando o ar da sua graça, lamentava-se da poeira causada pela mesma. O sonho, condutor da dita Bedford amarela, nunca se cansava do árduo trabalho, e de vez em quando, num pequeno caderninho, apontava cada silêncio que lhe aparecesse pelo caminho.
Eram chuvas sem medida.
Chegava a casa e, sobre um pedaço de ferro e zinco, um menino esperava-o; e todos os dias, ao final do dia, o menino recebia o prometido beijo, diga-se que, nunca era igual; o de ontem não é igual ao de hoje e, o de hoje jamais será igual ao de amanhã. Há quem lhe chame de amor, mas o menino, chamava aos beijos: pedacinhos de insónia, camuflada pelo perfume das acácias.
Pela manhã, erguiam-se todos os pássaros e acordavam todas as flores, dos pequenos charcos que restavam da tempestade anterior, poucos ou nenhuns já existiam; quase todos eles, mortos.
Voávamos entre a sombra do desejo e o beijo adormecido e, acreditávamos que o dia seguinte, aquele que ainda não existia, certamente ia ser melhor do dia que estava prestes a terminar. E assim, aprendi a enganar os dias, e ainda hoje o faço, até que um punhado de flores tomba sobre o meu corpo e, uma gaivota voe em direcção ao mar.
Eis o teu retracto.
Eis a tua morada.
Porque eram chuvas sem medida.

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Enterro

 Está frio aqui, pá, e, no entanto, durante aproximadamente trinta e seis horas vou ter de aturar todos estes gajos e toas estas gajas, que sinceramente, detesto-os.

Porque estão eles no meu enterro?

Foda-se, nem um cigarro posso fumar, esqueci-me de os trazer, pá, paciência,

É a vida, pá,

É a vida, amigo Gomes,

Olha, olha… olha aquela cabra que não se cansa de chorar, já viste isto, meu?

Foda-se,

Estou as passar-me da cabeça,

Detesto estas merdas, detesto-os a todos e a todas, e ainda por cima vestiram-me um fato, gravata, sapatos pontiagudos, foda-se, pá,

Eu não queria nada disto, amigo Gomes, nada disto.

Olha, olha... olha aquele cabrão com uma coroa de flores…

Ó meu, devem ser caras?

Tudo está caro, pá, até o haxixe.

Foda-se meu, estou fartinho desta merda. Porque nenhum filho da puta coloca um fardo de palha em cima do caixão, e

Cinzas, meu grande amigo; cinzas.

Ó Gomes, faltava cá este, o padre Jorge. Foda-se, e eu que nem cerimónia religiosa queria…

Porra, pá. Porra.

Ele é muito fixe, mas prefiro apenas tomar café com ele no café do Jorge,

Diz-lhe amigo Gomes, diz-lhe…

Ó Gomes?

Diz, pá,

Quem são estes quatro filhos da puta que carregam o meu caixão até ao carro funerário?

Sei lá, pá,

Vieram de Lisboa…

Só me faltava mais esta…

Olha pá, vou tomar banho e daqui a pouco bebemos um copo.

Já sei, pá, és sempre a mesma merda, apreces às vinte e três e cinquenta e cinco e queres ir embora às zero horas…

Foda-se, és sempre a mesma merda.

Cala-te e não percas o caderninho onde desenhei e cataloguei os teus ossos…

Até já, amigo.

 

 

 

15/11/2023

terça-feira, 14 de novembro de 2023

O poema da saudade

 Este barco não consegue parar,

Pelas dezasseis horas e trinta minutos, junto à ponte, o corpo dela mergulhava numa poça de sangue do tamanho de uma moeda, ao longe, o apito do comboio a anunciar a vinda da outra margem, baixo-me, pego-lhe na mão e dou-me conta que ainda tinha pulso, e percebo que lentamente, ela ainda respirava,

Pedi ajuda.

Gritava enquanto ligava para o 112, atenderam-me e depois de muitas perguntas, a maior parte delas, eu não sabia responder,

Oiço um forte suspiro mais parecendo um sismo, e deixo de ouvir, deixo de ouvir os barcos, o comboio, deixei de ouvir a minha própria respiração, depois,

Ela morreu.

Este barco não consegue parar, o comandante, homem de meia-idade, com aproximadamente um metro e oitenta centímetros de altura, percorria o convés, de um lado para o outro, fumava cachimbo e trazia na mão uma pequena folha em papel.

O vento trazia-nos a noite e dela absorvíamos as tristes palavras do luar, ela assobiava, ele, de mãos nos bolsos e de passo apressado para enganar a escuridão, ao passar junto ao bar de oficiais, uma sombra desfere-lhe um murro no estômago,

Seu cabrão, só as putas é que andam com as mãos nos bolsos…

Percebi que tinha chegado ao Inferno.

Ela morreu.

Deixa meia-dúzia de pertences e um filho que mantinha escondido num quinto andar de um quarto de pensão, o puto, de seu nome Alfredo, quando começou a desenhar-se na sua mão a noite e vestido de solidão, chorava e gritava pela mãe,

A mãe, de engate em engate, procurava a última côdea de pão que só a noite lhe conseguia dar,

Que tens, Alfredo?

O puto, ouvindo a voz da dona da pensão, calou-se e começou a desenhar nas paredes bolorentas e de gesso do quarto de pensão, as lágrimas do silêncio, e no pavimento,

Desenhou a saudade.

Este barco não consegue parar, trago na mão o poema da saudade, e aproveitando a pausa para encher o cachimbo, dou-me conta que uma criança brinca no convés com um boneco,

Como se chama, ele?

Chapelhudo.

Chama-se chapelhudo.

 

 

14/11/2023

sábado, 14 de outubro de 2023

Flor de fumo

 

A meio da noite, meu amor, a meio da noite acorda a luz no teu corpo, a meio da noite, meu amor, a meio da noite, deita-se a luz no teu corpo, abraça-se a luz às minhas mãos, que poisam no teu corpo as primeiras sílabas da manhã,

A meio da noite, meu amor, a meio da noite acordam os pigmentos de cor, com que pincelo o teu ombro, a meio da noite, ele sonolento, tão sonolento como as predizes da madrugada,

A meio da noite,

Meu amor,

A meio da noite acorda a luz no teu corpo, ergue-se o livro esquecido no chão, poesia de uma afegã, a meio da noite, os teus olhos, meu amor, a meio da noite vestem-se de estrelas, e passeiam-se nos meus lábios, quando o meu beijo desce suavemente sobre o teu ventre, a meio da noite, o incêndio, a fogueira da noite, que a meio da noite enrola no teu cabelo, e voa sobre um ninho de cucos, perdidos na noite,

Meu amor,

A meio da noite, fogem de mim as diáfanas águas da ribeira dos sentidos, que a meio da noite, trazem as pedrinhas com que construo a minha noite, quando a meio da noite,

Sobre ti, lábios de luz, sobre ti, silêncios de ti,

A meio da noite,

Acorda,

Ergue-se o livro da poetisa afegã…

Que perdeu a noite,

Que nunca teve noite, como eu, quando procuro no teu corpo o poema mais belo do céu nocturno em “Flor de Fumo”,

E querida Nadia Anjuman, a meio da noite, porque te assassinaram, quando possivelmente as tuas noites eram como são as minhas noites, sonhar com poesia, respirar poesia, snifar poesia…

A meio da noite, uma flor se aproxima de ti, se deita no teu colo, e recorda-me a infância com muitos meios da noite, eu olhava as estrelas, pedia um desejo,

E voava,

Sobre ti a meio da noite,

Porque te assassinaram?

Flor de Fumo…

 

 

14/10/2023

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Regresso

 Perguntavam-lhe o que ele queria ser quando fosse grande,

E ele,

Costureiro.

Como ele ainda não sabia o significado de estilista, respondia que queria fazer vestidos para o chapelhudo,

Criança parva, aquela.

Um dia quando acordou, olhou pela janela e decidiu que queria ser guardião de barcos, que felizes eles eram, quando se cruzavam, apitavam e beijavam-se…

O mar agitava-se, às vezes, outras, outras parecia um lençol de linho deitado sobre a tua pele, até que descia a noite e levavam-me para o camarote.

Cheirava a Nafta e eu gostava daquele cheiro, daquele silêncio da meia-sucata, alguns envenenados pelo tempo, ali parados, parados a olharem-me. Deitava-me. De barriga para o ar, olhava o tecto e desenhava círculos de luz com o meu olhar,

E ele nem percebia porque acordavam os mabecos durante a noite a chorar…, quanto mais que ia para Portugal, para a Metrópole. Raios.

E depois de desenhar os pequenos círculos de luz, imaginava a lua a descer, a descer, até poisar sobre a minha cama, pelo óvulo da janela, o mar, o salgado mar das tardes de poesia junto ao rio, enquanto me deixa ir pela preia-mar e só acordava numa qualquer pensão recheada de piolhos e afins,

Criança parva, aquela.

Um dia, qualquer dia, percebeu que valia mais ter ficado no mar.

Era frio. Às vezes, às vezes o cobertor não dava para os três, e mesmo assim, queria fazer vestidos para o chapelhudo, descia a calçada, e virando à direita, aterrava num qualquer aeródromo com cadeiras de ferro, e mesas de ferro. Ficava ali até acordar o dia… até o dia se fartar de mim.

Um dia, qualquer dia, quando se ia deitar descobriu que queria ser o silêncio,

Já sei o que quero ser quando for grande,

Quero ser o silêncio.

E eu expliquei-lhe que nunca poderia ser o silêncio porque ninguém pode ser o silêncio e que o silêncio é quando Deus está… em silêncio.

Não percebeu, o miúdo.

Parvo, este miúdo.

Aos olhos da neve sou um pedaço de alegria embebida em quadradinhos de ausência, já aos olhos dele,

Criança, parva.

Criança, parva.

O rio fartava-se dele, pedia-lhe desculpa, despedia-se e só ao outro dia, por volta das onze é que regressava, eu, lá, esperando que ele voltasse.

Talvez me pagasse o almoço.

Olhava-o, pedia-lhe um cigarro, e conservávamos sobre coisas banais, coisas simples, coisas de mim e de para um rio; o cobertor parecia uma folha de papel vegetal, e sentia os meus ossos em pequenos rangeres como gonzos loucos sitiados e revoltados numa qualquer clinica psiquiátrica.

Durante muito tempo acreditava que tinha deixado lá o sono em detrimento de trazer outras quaisquer bugigangas. Depois um parvalhão ofereceu-me um par de botas, pesadas, pesadíssimas como chumbo. Chorei.

À meia-noite ouvia o sino e acreditava que ao outro dia, um qualquer dia, todos os pássaros seriam livres.

Todos.

Estilista.

Quero ser estilista.

 

 

21/09/2023

domingo, 17 de setembro de 2023

Código binário

 Escrevo no teu peito o postulado da equação de Deus, na revolta dos teus seios em direcção ao exército da insónia, recordo a primeira equação da equação de Deus, e como poderei esquecer, se a escrevi no teu seio esquerdo, e como poderei me esquecer da integral do desejo, depois de elevar a raiz cúbica da paixão, à decima quinta potência de Zeus, perceber que pouco ou nada restou, a não ser, que tudo, mas tudo mesmo, é apenas a unidade.

O uno.

O uno divisível, que mesmo dividido em milhões de pedacinhos, será sempre o uno, o homem, o filho de Deus.

Escrevo no teu peito e de alguma coisa me vou esquecer.

Esqueci o teu nome, quando o escrevi milhares de vezes no folheto do meu coração, esqueci os teus olhos, o teu cabelo, sem cabelo, do vento, ao vento, entre mim e as primeiras lágrimas da manhã

Depois, traçamos uma recta de (A) até (B), e da equação dessa recta multiplicamos a integral solucionada na tarde passada,

Pifou, o gajo.

Escrevo no teu peito, SOCORRO, como se estivesse a ser perseguido pela revolta das enxadas do nosso querido Douro,

Oiço-os, sinto-os, lá longe, muito longe

Todos aqueles que morreram no Douro.

Escrevo no teu peito o postulado da equação de Deus, percebo que é complexa, percebo que este meu pobre computador nunca conseguirá encontrar uma solução, a não ser…

Voar sobre o mar.

E morrer no mar.

Escrevo no teu peito a sinceridade da noite, que aos poucos se entranha nos ossos, como lâminas de geada, como saliva misturada com aparas de madeira, o lápis sobre a mesa, a folha movimenta-se, eu escrevo no teu peito, o lápis esconde-se na minha mão, e tu,

Dormes sobre mim.

Escrevo no teu peito a maré que regressa, do Deus que se afasta, e me persegue enquanto não lhe resolver a equação,

Pifou, o gajo.

Voar sobre o mar.

E morrer no mar.

Escrevo no teu peito o postulado da equação de Deus, na revolta dos teus seios em direcção ao exército da insónia, recordo a primeira equação da equação de Deus, e como poderei esquecer, se a escrevi no teu seio esquerdo, e como poderei me esquecer da integral do desejo, depois de elevar a raiz cúbica da paixão, à decima quinta potência de Zeus, perceber que pouco ou nada restou, a não ser, que tudo, mas tudo mesmo, é apenas uma sombra abraçada à unidade; somos apenas Zeros e Uns. Somos código binário.

 

 

17/09/2023

(Ficção)

sábado, 16 de setembro de 2023

Os barcos da infância

 S. Martinho do Porto, Janeiro de 1989,

 

Deste quarto, dentro deste quarto, olho o mar e pinto o mar nos meus olhos, antes de adormecer. Deste quarto, onde me escondo, não sabendo porque me escondo, neste quarto pinto o sol no tecto, no tecto deste quarto, e sinto neste quarto, dentro deste quarto, o assobiar dos barcos da minha infância.

Neste quarto, de onde oiço o mar, pincelo o meu olhar com estrelas-do-mar e silêncios de alegria, depois, depois peço ao guarda deste quarto, peço ao senhor António, que liberte todas as serpentes, que dormem neste quarto e não gostam de poesia, como todos os que detestam poesia, que são muitos, que são alguns, não pertencem a este quarto, de onde eu, pela janela deste quarto, sinto o cheiro do mar, e depois,

E depois nada. Fico dentro deste quarto.

Vou à janela deste quarto, puxo por um cigarro, acendo-o preguiçosamente, eu oiço-os

Entre gritos, ao lado deste quarto,

Sem perceberem que dentro deste quarto,

Habito eu, o poeta suicidado por uma bala de medo numa tarde junto ao Mussulo.

Então senhor António, as serpentes?

Sei lá eu das serpentes, menino,

Sei lá eu.

E de dentro deste quarto, nem eu, nem eu, senhor António,

Nem eu.

Neste quarto, de dentro deste quarto, oiço o sorriso das girafas, brincando no capim como se fossem crianças pinceladas de saudade, neste quarto, dentro deste quarto todos os papeis são loucos, todas as palavras são loucas, neste quarto, de dentro deste quarto, todos os Sábados, junto ao rio…

Então o senhor António pensava que as serpentes não sabiam ler?

Sei lá eu, menino,

Sei lá eu,

Nem eu, de dentro deste quarto,

A bala sorriu e caiu no pavimento lamacento. Dentro deste quarto, neste quarto, aos Sábados, oiço o mar, desta janela sem sorriso, enquanto o senhor António se vai travando de amores com as serpentes,

E o menino,

O menino, deste quarto, de dentro deste quarto, deste quarto, dentro deste quarto, olha o mar e pinta o mar nos seus olhos, antes de adormecer. Deste quarto, onde se esconde, não sabendo porque se esconde, neste quarto pinta o sol no tecto, no tecto deste quarto, e sente neste quarto, dentro deste quarto, o assobiar dos barcos da sua infância.

 

 

 

16/09/2023

Luís

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Cartas

 Antigamente escrevia cartas, hoje, escrevo silêncios.

Sempre quis ser artista; a minha mãe talvez acreditasse que eu um dia fosse estilista, pois passava tardes inteiras, em Luanda, a desenhar e a costurar vestidos para um parvalhão de um boneco, que ainda hoje desconheço a razão de o ter baptizado com o nome de chapelhudo, e sendo eu contra os nomes das coisas e das pessoas, pergunto-me

Porquê?

Porquê chapelhudo…

Não o sei.

Como deixei de saber tanta coisas,

A tarde fugia, e eu corria e conseguia apanhá-la junto à capelinha, metia-a no bolso, e sorria, e foi aí que aprendi a desenhar.

Antigamente escrevia cartas, hoje, hoje queimo cartas e lanço-as ao vento, e o vento as leva para o mar.

O meu pai nunca duvidou que eu um dia viesse a ser artista, e não se enganou, de arte em arte, fui artista maior da parvoíce e estupidez, graças a Deus e à insistência da minha mãe com ele, cá estou eu,

Noutras artes.

Antigamente escrevia cartas, hoje, procuro a tarde que fugia e eu corria, corria…

E agarrava-a junto à capelinha.

E voavam, voavam,

Como silêncios envenenados.

Quase fui trapezista, sim, trapezista, não fosse a minha paixão pela cachopa trapezista, e que queria que eu a acompanhasse de terra em terra, num qualquer circo ambulante,

Não fosse essa minha paixão, desfalecer, quando olhei para o céu,

E ela,

Ela voava, voava…

E pensei,

E voa, e voa…

E prefiro ser poeta.

Antigamente escrevia cartas, hoje, hoje pinto trapezistas nas telas, desenhos os papagaios que a minha mãe me ensinou, escrevo, escrevo para o vento, e para o mar.

Antigamente escrevia cartas, hoje, hoje não escrevo cartas, mas sinto raiva, das cartas escritas.

Antigamente escrevia cartas, hoje, hoje conto as cartas que escrevi.

 

 

 

21/07/2023

sábado, 1 de julho de 2023

A primeira lágrima da manhã

 A coitadinha da moeda de vinte e cinco escudos, só, só na algibeira do magala, sem que ela tivesse percebido que dentro em breve estaria abraçada a uma pequena ranhura de uma cabine,

Os cortinados negros, inventando a noite, quando ainda era tarde, final de tarde, junto ao rio, ao longe,

Um petroleiro de sono, uma jangada em cio procurando engate, que me convidava às vezes,

E eu aceitava,

Que outras tantas mais vezes,

Me ignorava,

E eu…, ficava a olhar…

O Tejo,

Que eu às vezes, que eu às vezes, recusava,

Nesta triste vida de comandante deste navio,

Deste gigantesco petroleiro,

Ouvia-se no silenciar da noite inventada, o som da moeda de vinte e cinco escudos em pequenas descidas acentuadas,

Depois,

Depois uma mulher despia-se, aos poucos, uns… aproveitavam o silêncio para se masturbarem, outros nem por isso, e os outros…

Contemplavam,

O quê?

Um pedaço de carne esquecido debaixo de um pinheiro, o puto foi entregue à Ermelinda, e que, lá anda...

Contemplar,

O quê?

Contemplar uma mulher só, mais cansada da vida, de que a vida cansada dela, e, no entanto, comtemplavam-na…

Contemplar,

O cigarro e o cheiro intenso a sémen,

Às vezes, às vezes ouviam-se pequenos gemidos, dentro destas lâmpadas silenciadas que um louco qualquer desenhou na geada.

Às vezes, às vezes percebia-se no olhar desta mulher, percebia-se a fome, a porrada invisível que um chulo qualquer invisível lhe dava, muitas vezes, às vezes, até nos seios se percebia a tristeza desta mulher,

E, no entanto,

Apenas com vinte e cinco escudos…

Às vezes,

Às vezes, às vezes dos seios destas mulheres, desciam lágrimas de cansaço, desciam lágrimas de saudade,

Saudade da infância,

Saudade dos amigos da escola,

Saudade das ruas antes de nascer o sol.

E, no entanto,

Contemplavam-na,

Contemplar, o quê?

Contemplar duzentos e seis ossos, alguns já em mau estado de conservação, as pintinhas nos braços e afins, da agulha,

Que chutavam heroína,

Que fumavam heroína…

E mesmo assim, havia quem as contemplasse por uns míseros vinte e cinco escudos.

E ao fundo da cabine, o Tejo, o cheiro do Tejo, e enquanto se preparavam para bater mais uma…,

Encerrava-se o óculo, ficava escuro, ficava escuro dentro da cabine e do outro lado do Tejo, um navio escondia-se da tristeza.

Contemplar,

Contemplar uma mulher sofrida, às vezes quase criança, outras quase nem uma coisa nem nunca seria outra coisa, que não fosse,

Criança,

E mulher.

E contemplavam-na,

Tal como o beijo contempla os lábios, ou…, quando a maré entra pela janela, e ela, aquela mulher inventada, por apenas vinte e cinco escudos…

Contemplavam acreditando que do outro lado do Mundo, um apito perdido…, procurava a primeira lágrima da manhã.

 

 

 

01/07/2023

Francisco Luís Fontinha

Na estrela do teu olhar

 

Conto as estrelas, são tantas, meu amor, são tantas as estrelas e cada uma com um desejo nos lábios, conto as estrelas e depois penso…, quantas estrelas tem o teu olhar,

Muitas, poucas, assim-assim, tanto me faz…

Conto as estrelas que brincam nesta misera folha em papel, conto o silêncio destas paredes, destes pequenos nadas que existem dentro de mim,

No fundo, sou um nada…

Um nada que escreve…

Versos ao nada.

Conto as estrelas da minha infância, conto as estrelas das primeiras paixões, conto as estrelas que existem nos teus lábios, tal como existem nos lábios das estrelas,

O desejo,

Conto as estrelas e perco-me no teu sorriso de perfume adormecido, embrulhado nas minhas palavras, quando das tuas lágrimas…

Acorda um pedacinho de sorriso.

Conto as estrelas da tua mão, conto as estrelas do teu cabelo, conto as estrelas…, as infinitas estrelas do perfume dos teus lábios.

Conto as estrelas que me afligem, mais as estrelas que não me desejam, e percebo que este pequeno nada, que sou, esconde-se dentro de uma pedra cinzenta, com olhos verdes, e cabelo pigmentado de beijos.

Conto as estrelas que há em mim, e sabes, meus amor…

Dou conta que em mim não existem estrelas.

Conto novamente as estrelas do silêncio e da solidão, abro a janele, fecho a janela…

E pergunto-me se estarei realmente…

Louco.

Conto as estrelas das amarras e do medo, conto as estrelas de todas as prisões invisíveis…, e de todas as flores comestíveis,

Conto as estrelas da paixão,

E dos pequenos e simples guardanapos de papel,

Conto as estrelas do meu fracasso…, e tantas, meu amor, tantas estrelas…

Onde posso escrever…

Quase anda.

Conto as estrelas destes livros espalhados pelo chão, que odeio, que me odeiam…, que se diga, meu amor, começo a ficar farto de livros e de livros dos livros…, com poemas, espalhados pelo chão…

Conto as estrelas de todas estas paixões e não paixões destes mesmos livros, e percebo,

Que tal como eu…

São apenas uns coitados,

Dos tristes coitadinhos.

Conto as estrelas… sei lá, meu amor…

Já nem sei o que são estrelas.

Conto as estrelas das minhas palavras, e deixei de ter palavras…, quanto mais estrelas…, conto as estrelas desta melodia que oiço, e perco-me nas estrelas do teu silêncio, antes que que acorde a manhã…, e me roube todas as estrelas da noite.

Se eu fosse um louco, um pequeno louco de nada, um triste louco, um louco…, de louco, queria ser uma estrela, na estrela do teu olhar.

 

 

01/07/2023

terça-feira, 27 de junho de 2023

Tractatus Logico-Philophicus

 

Com quinze ou dezasseis anos comecei a consultar o “Tractatus Logico-Philophicus” de Ludwig Wittgenstein, o que eu procurava, ainda hoje não o sei, sei que passava noites quase abraçado a esse tratado sobre tudo, e nada do que eu precisava tinha.

Também, como referi à pouco, ainda hoje não sei o que procurava.

Consultava “Amor” e quase que levava com uma resma de equações matemáticas, de tratados e almas mortas de Gogol, e se é para ir para a fogueira, vamos então todos…

Também ainda não sei quem são e quantos são; alguns,

Tal como parte do manuscrito de “Almas Mortas” …

A minha mãe,

Fernando… marca uma consulta ao nosso filho, olha que ele não anda bem…

E claro que sim,

E depois de milhares de cartas escritas pelo Senhor Fernando António Nogueira para a sua grande amada,

A doce Ophelinha…

Não interessa…, deixei de receber cartas.

Quanto a mim, prefiro o Senhor Álvaro de Campos…, a tabacaria, a pequena dos chocolates, o Esteves…

Coitado do Esteves…, onde andará ele!

Deu-me trabalho, mas consegui convencer a minha mãe, que aquele calhamaço não era perigoso, e quase era irmão gémeo da Bíblia que ela tinha em cima da mesa,

Olhou-me,

Franziu o sobrolho,

Apelidou-me de Francisco…

E eu,

Já estou fodido; vou apanhar nos cornos.

A coisa passou, e eu todas as noites à procura no “Tractatus Logico-Philophicus” de qualquer coisa…,

E sabes, meu amor,

O senhor Álvaro de Campos tem algo de misterioso, não sei…

Tal como o que procurava naquele livro,

Nada.

Os anos passaram, ele acompanhou-me quase sempre, até quando fiz o serviço militar na Calçada da Ajuda,

Que de ajuda,

Nada,

Como aquilo que eu procurava.

Talvez procurasse um pássaro, talvez procurasse a insónia de uma pequena estrela de silêncio…,

E ainda não encontrei neste “Tractatus Logico-Philophicus” nada sobre Alhetas, que o calor que entra mais o calor gerado é igual ao calor que sai mais o calor acumulado…

E eu, meu amor,

De tanto calor…

Já nem sei se hoje é segunda-feira ou se amanhã é quinta-feira…, no entanto, recordo todas as palavras do Senhor Álvaro de Campos, e eu, de Tabacaria em Tabacaria, que deixei de comer chocolates para não ganhar peso, lá está ele,

O Esteves,

Coitado do Esteves,

E, no entanto, pareço o Esteves, à procura de um cigarro e que o vento me leve,

A minha mãe…

Estás bem, meu filho?

Já conversamos, quando eu regressar da lua...

Desenhava um abraço no meu rosto, e ficávamos horas a conversar sobre coisas; ela, que Deus era/é um ser maravilhoso, que ia sempre proteger-me de tudo e de todos…, coisa assim e coisa assado, e eu, eu perdia sempre porque não conseguia explicar o que existia antes da grande explosão na teoria do Big Bang, dava-lhe um beijo, e ia até à galáxia mais próxima.

Às vezes penso, e se tudo isto não existir.

E formas apenas um pedacinho de sono, em pequenos círculos…, na ponta de um elástico…, nas mãos de Deus?

Enquanto isso, ele…

Consulta o “Tractatus Logico-Philophicus” …

O Senhor Mário de Sá-Carneiro dispara o revolver na sua própria cabeça,

Aos vinte e seis anos…

Apetecia-me pedir ao Pacheco algumas das suas Pachecadas, e ir por aí…

Ir por aí a declamar os poemas de AL Berto.

E sabes, mãe…!

Está tudo no “Tractatus Logico-Philophicus”, de Ludwig Wittgenstein.

 

 

 

 

 

27/06/2023

domingo, 18 de junho de 2023

Carta aos pássaros

 

Meus queridos,

 

Podia Deus extinguir agora mesmo o Universo, porque eu, porque eu não me levantava desta pedra cinzenta,

Onde me sento,

E penso.

O que me interessa a mim o Universo…

Quero lá eu saber do Universo…

O que me interessa a mim do meu vizinho, vizinha, ou do filho de ambos, ou se há crianças com fome…

Deus que cuide deles, se ele quiser.

Levantei-me cedo, fui até ao campo colocar as armadilhas perfumadas, talvez ainda hoje consiga apanhar algumas pétalas de qualquer coisa…, ou apenas, ou apenas pedaços de lenha, e agora, e agora engano o tempo com algumas lâminas de silêncio que por aqui brincam.

Podia ser pior, meus queridos.

Podia ser pior…

Mais logo, mais logo não farei nada, como amanhã, como depois de amanhã, fazer o quê, meus queridos?

A não ser, pensar.

Mas pensar em quê?

Se o pensamento é apenas um momento repetitivo…

Não.

Mais logo, mais logo não farei nada, como amanhã, como depois de amanhã, fazer o quê, meus queridos?

Nem pensar?

Nem pensar, meus queridos.

Nem pensar…

 

 

 

Francisco

18/06/2023