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sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Os teus lábios são agora chocolate!

O chocolate quase água sabor a lírio na minha boca. Imagino a selva invisível da minha infância dentro de um livro quase

Quase, pão migalha, pão derramado sobre a mesa, do silêncio três cadeira, em silêncio.

A minha boca saboreia-o como se ele fosse uma pequena palavra sobre os lençóis da cama

- amo-te

Ao longe um apito, meu amor, ao longe o paquete que me trouxe e ao que sei

- calma tu vais conseguir

Sei que as árvores pertencem às sombras porque aquele barco pertence à fechadura número três da primeira rua do segundo andar,

Direito.

E aos poucos ele derrete-se como a seda sobre o teu corpo, depois do banho. Imagina se agora te beijasse

Os teus lábios pincelados de chocolate…

(e quando penso em chocolate lembra-me o poema “Tabacaria” do senhor Álvaro de Campos, e não há melhor coisa do que comer chocolate)

Os teus lábios são agora chocolate!


sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Milagre

Não sei se vossemecês acreditam em milagres, do tipo três crianças a comtemplar uma senhora vestida de luz sobre um chaparro.

E hoje vai acontecer um verdadeiro milagre.

Quanto às crianças nada a dizer, e as ovelhas?

Se as crianças andavam com as ovelhas no pasto será que também estas contemplaram a senhora vestida de luz?

Alguém lhes perguntou se sim se não?

Hoje é um bom dia para acontecer um milagre…


PRIVATE INVESTIGATIONS


quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Segundo a dona Deolinda

Segundo a dona Deolinda que ainda tem orgasmos e é também quase cartomante, e diz ela para os aquarianos neste lindíssimo dia de sol pós geada que:

 

Devido a um trígono entre o portão de entrada, já com alguma ferrugem, e a oliveira junto à janela já quase lareira que o dia vai ser recheado de maleitas, dor nas costas e também poderão ocorrer pequenas trovoadas de cocó.

 

A tarde será óptima para conquistas e jogos florais, mas nunca esquecer antes do jantar,

Pôr a mesa, devidamente com a etiqueta que uma mesa merece, ajudar a esposa nas pequenas tarefas após o jantar, e depois sentar à lareira a ler…

 

E,

Tenha muito cuidado quando mexe em aparelhos eléctricos, tais como:

Torradeira;

Cafeteira;

Máquina do café;

Vibrador;

 

E antes de regressar ao leito surpreenda a sua amada com uma viagem à torre Eiffel.

 

Tenham um feliz dia de quinta-feira.

sábado, 16 de novembro de 2024

Mentiras

Nem o comboio passa nesta sala, descarrilhasse, me abalroasse e me atirasse

Sei lá eu para onde queria que o comboio me atirasse…

Tão pouco passeiam barcos nesta sala,

E vi tantos, tantos barcos a passear no quintal de Luanda, debaixo das mangueiras.

Nem eu sou mais o comandante daquele petroleiro enorme, muito grande, que sempre que eu queria,

Me levava,

E me trazia.

Da terra à Lua,

E às vezes,

Da Lua até uma pequena maresia.

Nem a lareira desta sala me aquece, nem há estrelas no tecto desta sala, no silêncio desta sala

Oiço uma gaivota desgovernada, um cacilheiro já muito velhinho,

Pedindo esmola no Rossio.

Nem esta sala é um poiso, nem é um abraço,

Nem esta sala parece, quando na realidade,

Eu é que pareço aquela migalha sobre a mesa,

- Luís

Sim pai,

- É de dia ou é de noite

Nem esta sala, tanto faz pai, os pássaros são sempre os mesmos, as árvores, idem

Reparei hoje

Que são as árvores da noite passada,

- Espiava-te ao longe, tu

Tu fumavas o teu cigarro, estavas sentado num banco ripado, como tantas vezes eu te vi, sentado num banco ripado

E eu tinha medo, medo

E guardava-te das garras ferozes que novamente se podiam prender a ti,

Tu, timidamente, olhavas-me, meio acabrunhado, meio com medo

Meio 

Meio abandonado, mas eu ao longe apenas com o olhar protegia-te,

Deixa lá isso agora, pai

Brevemente estarás em casa, irás de promessa à Senhora dos Prazeres

E com um jeitinho,

Serás avô.

Nem o comboio passa nesta sala, descarrilhasse, me abalroasse e me atirasse

Sei lá eu para onde queria que o comboio me atirasse…

E eu aos poucos fui me licenciando em Mentiras, mentia ao meu pai, que tudo estava bem

Mentia à minha mãe,

Fazendo-a acreditar

Que sim, quase tudo bem…

- Vês, ainda tu desdéns dos meus santinhos 

Claro que não, mãe

É um milagre,

De Deus.

E eu mentia, até a mim mentia, fazendo-me acreditar

Que tudo era mentira; e eu, acreditava.

Mentia ao meu pai quando lhe sorria, quando na verdade

Eu não queria sorrir.

Mentia ao meu pai quando o olhava e pensava 

O que faço eu a este corpo, que a cada dia que passava

Lhe faltava um pedaço.


E eu,

Eu mentia!


A solidão

(a solidão mede-se pelo estalar dos móveis, durante a noite…

António Lobo Antunes, in O Tamanho do Mundo)


Uma espingarda dispara uma bala contra a janela, lá fora, uma porta que procura uma entrada, um vidro em busca de uma qualquer saída, nem que seja uma bala disparada contra a cabeça do suicida, dorme meu amor, dorme

Espero-te dentro deste apeadeiro em sono, pego num livro, pego

Acaricio-o na ânsia que ele me abrace e me escute e fique em silêncio, simplesmente a olhar-me, mas nada mais do que isso

Hoje apetecia-me voar sobre os telhados sombreados que apenas o silêncio consegue descrever, a tua mão, pouco a pouco, parece um invisível fio de luz, canso-me de ti

E canso-me da luz. Tínhamos os nossos corpos, apenas, sós

Perdidos numa cama lamacenta, pelo tédio, pela saudade,

Pelo esperma,

Tínhamos dois corpos despidos, ausentes de tudo e de todos,

Os milagres da natureza. E tínhamos um espelho, um espelho que nos espiava.

Tínhamos uma janela de que em nada nos servia, apenas para que o aposento não cheirasse tanto a porcaria. Tínhamos um filho para criar, um filho para educar, tínhamos, sobre uma mesa apodrecida, um ramo de flores,

E tudo parecia tão belo,

E tudo,

Mas tudo mesmo, tínhamos na parede um crucifixo que nos espiava também, também éramos espiados pelo espelho,

Aumentavam os teus seios, os teus lábios mais carnudos

E vermelhos,

As tuas mãos mais doceis e macias, tínhamos 

Aumentavam também as tuas nádegas, tínhamos também pendurado no tecto uma coisa estranha, que de tudo o que parecia,

De candeeiro não seria, certamente

Mas iluminava o teu corpo nu, e eu imagina-te completamente nua, como estavas

Nos braços do homem que nos espiava da parede,

Vê lá meu amor; imaginava-te nua nos braços do Cristo ali esquecido, ali vencido, tendo como único passatempo,

Ao final do dia,

Contabilizar quantos corpos se fundiram naquela cama, quantas fogueiras desejando apenas o lume da voz, apenas uma única palavra, escrita no teu seio.

E ao final do dia Cristo entregava o relatório a uma senhora baixinha com óculos, que a sua única função era de apenas,

Receber vinte e cinco euros, com direito a uma toalha.

Às vezes eu saía de dentro de ti tão apressadamente que, só quando chegava à rua é que percebia,

Em vez de ter trazido o meu corpo, o teu corpo vestia. Depois eram as trocas, eu saía de dentro do teu corpo,

E tu,

Saías de dentro do meu corpo, e passávamos a ser novamente dois corpos

Abraçavas-me

- amo-te loucamente

Tínhamos os nossos pais, tínhamos as nossas fotografias, uma casa para arrumar, que quase sempre

Estava desarrumada. Que quase sempre, estava vazia.

- desenhavas no meu corpo o desejo pergaminho de uma tarde de Verão, e quando colocavas a tua mão sobre o meu seio meio envergonhado, sentia que do outro lado da rua alguém procurava pelas estrelas da noite anterior, um bêbado fazia-se à estrada, um candeeiro de rua, quase e quase

Apenas uma sombra junto ao rio. Quando percorrias todo o meu corpo como se ele fosse uma seara de vidro sobre a mesa do jantar, e eu tão feliz, e eu sentia-me tão desejada, tão amada.

E tínhamos.

Depois ninguém sabia onde me procurar, depois ninguém sabia onde me encontrar, depois vinha uma gaivota 

- depois as mentiras, depois os esconderijos, os silêncios, depois os cigarros deixaram de conversar, depois a janela que apenas servia

Para que aquele aposento não cheirasse a porcaria, sempre encerrada, sempre em lágrimas, sempre a pobre daquela janela

Depois uma bicicleta que subia as escadas, que depois descia as escadas, que depois corria tanto até se esquecer de ser dia, e vinha a noite

- abraçavas-me, beijavas-me tanto que eu acreditava 

Depois as árvores procurando os pássaros pelas ruas da cidade, um carro que passava,

Uma porta

Que quase sempre,

Se fechava.

Depois, depois tínhamos

- qualquer coisa estranha na mão que mais parecia uma espada, mas claro, nunca o poderei confirmar

Depois, depois

A solidão mede-se pelo estalar dos móveis, durante a noite, 

E é tão estranha, meu amor, é tão estranha a noite

A noite, são estranhas todas as estrelas, é estranho e confuso, o luar

E o mar.

E a cada estalar dos móveis sinto esta solidão inventada que apenas me serve para 

Talvez, para nada.


(ficção)


sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Aqui está a loucura, a verdadeira loucura.

Acredito que quase ninguém me lê, mas para os poucos que ainda me lêem, que após me lerem,

Pensam; este gajo só pode estar louco. E acredite o único leitor que tenho,

Que nem sou louco, e não sou tolo.

Um dia poderei ser tudo, mesmo homossexual ou um simples travesti de aldeia, agora

Louco e tolo é que não. É que não mesmo

E se o único leitor que me lê acha que aquilo que escrevo é loucura, então meu caro e único leitor,


Aqui está a loucura, a verdadeira loucura.


Um dia os meus pais vestiram-me de louco, levaram-me a uma cidade louca, que na altura já fervilhava durante a noite louca, nessa cidade louca existia uma sala louca, lá dentro

Um louco médico, antes de entrar

Obrigaram-me a fazer um pacto com o diabo, a partir de agora

Pensei logo eu, vai deixar de haver madrugada

E que a partir de agora,

Só e só a madrugada

E só a verdade

Serão loucas.

Não percebi lá muito bem, entrei sentei-me tinha muito frio era Maio os meus pais sentaram-se um vidro rangia uma luz que piscava,

E que às vezes,

Também tal como eu, tremia.

O médico louco, olhava-me. Eu louco, comecei a olhar o louco do médico

Francisco,

Sim, doutor louco

Quando foi a última vez?

Aí é que eu fiquei louco. Não sabia se ele loucamente 

Se referia

Há quanto tempo eu não pinava

Ou há quanto tempo eu não fumava e sofria, 

Então Francisco?

Bom… quanto a pinar, confesso que já não pino há muito tempo,

E voar, Francisco? E voar sobre os telhados…

Bom, voar voar…

Ontem à noite voei sobre os telhados. 

E todos nós loucos ficamos calados, como loucos

Queres tu dizer, louco e único leitor.

Depois claro, um louco de um enfermeiro

Também me olha e começa a tirar-me as medidas

Eu louco, acabrunhado e tão pequenino, nada disse

Sorria loucamente.

Vamos Francisco?

Depois alguém abriu a porta da carruagem, entramos e um louco corredor com muitas loucas portas e janelas loucas

Oiço chamarem pelo meu nome. Hesitei. Porra

Ainda agora entrei na carruagem da loucura, e

Fontinha, grande amigo…

E eu, pensei. Estou literalmente fodido. E tão pouco sabia quem era aquele louco gajo.

O louco enfermeiro não gostou. Que dois pássaros loucos que passavam a noite a voar sobre os telhados

Nunca,

Nunca poderiam estar juntos.

Dois dias depois, já podíamos.

Tive medo de toda esta loucura. Tive medo do sono, que às vezes,

Era louco,

E que às vezes,

Também era tão pouco.

O Alex passeava-se no louco corredor acreditando que brevemente estaria em Fátima,

E estando nós no mês de Maria da graça de deus de noventa e quatro daquele louco dia nove,

Três loucos dias depois,

O Alex chega finalmente a Fátima.

O primeiro soro louco que tomei, tão mais forte do que as outras coisas loucas que tomava,

Enfermeira louca!

Sim, louco Francisco!

Quero falar com o louco médico.

Alguma problema, louco Francisco?

Que não.

Apenas um pequeno ardor

E comichão,

Na mão.

É do catéter, Francisco…

Do que é não sei, mas que este louco soro é muito mais estranho

Que todas as coisas estranhas que tomava e loucas, 

Eu voava sobre o horizonte corredor de púrpura, eu voava

Eu voava sobre o silêncio de uma espada nua e fria,

Poisado no seio,

De uma qualquer amada também ela,

Louca de prazer,

Não te preocupes, Francisco

Escrevia na parede a enfermeira louca.

Depois o louco ora se sentava

Ora se levantava

Ora batia com os cornos no prato da sopa,

E lá ficava,

E havia sempre um prato que voava

Até a funcionária, também ela louca, pegava em mim

Pronto Francisco, é só o primeiro dos teus loucos dias.

Um gajo louco apressadamente de cada vez que se cruzava comigo no louco corredor

Desculpe, tem horas?

E eu pensava. Para quê este louco quer saber as horas se a carruagem quase parece uma caixa hermeticamente,

Também ela louca

E fechada.

Admiti a primeira loucura.

A segunda loucura.

À terceira loucura, enervei-me, tirei o relógio e

Toma, é para ti. Fica com ele.

Eu quase louco, não querendo eu

Ficar louco.

Depois do soro,

Palmilhava todo aquele corredor louco na ânsia de encontrar

Todos os livros do Kundera. 

Tropecei eu e o louco soro na Insustentável Levez do Ser.

Depois junto ao tecto, quase

Quase 

O Livro do Riso e do Esquecimento, às vezes na casa de banho, os Amores Risíveis, ou A Valsa do Adeus, ou até mesmo

A Brincadeira.

Um daqueles dias que passei na carruagem da loucura, após o almoço

Fui à louca casa de banho,

E um gajo louco cagou no lavatório,

Em vez de cagar,

Na louca sanita.

Que nojo, eu louco pensava

Mas em quase vinte loucos

Algum dos loucos

Eram mais loucos

Do que eu imaginava,

O Ferro louco, que a puta da mulher louca lhe tinha enfiado um grande par de loucos palitos,

Fontinha, a puta já está lá fora.

Deixa-me dormir, Ferro

Quero lá saber da louca puta da tua mulher,

E ele loucamente

Baloiçava-me

E eu que quase caía ao mar.

Antes de me deitar tomava um louco copo de leite com três gotinhas loucas,

Mas eu queria mais loucura, e com algumas loucas palavras em sedução

Aliciava a menina,

E às vezes

Não abuses Francisco!

E às vezes

Em vês de três gotinhas loucas,

Ela docemente

Deitava seis loucas gotas.

Minutos depois e antes de me levantar, recordo agora

Conversávamos,

Ela

Então Francisco, depois desta estadia louca

O que pretendes fazer?

Não pensas em casar, ter filhos, uma família

E eu muito louco

Desculpa?

Que sim pois claro na altura loucamente certa

Recordando-me do poema Tabacaria

Do grande senhor,

E também louco, Álvaro de Campos.

Reparei que sobre a mesa,

A Imortalidade,

Do Kundera.

E pensei; entre me atirar da janela ao nível do rés-do-chão e estatelar-me todo e subir ao segundo andar louco 

E convidar uma louca mulher,

Para comigo,

Ir passear loucamente,

E ainda hoje não entendo porque os loucos homens no rés-do-chão

E as loucas mulheres,

No louco primeiro andar.

E claro que preferi a Imortalidade,

Do Kundera.

Levantei-me.

Voltei a sentar-me.

Fiquei imortal.

A menina gira,

Francisco, eu acompanho-te à cama

E docemente, me levava, e docemente me deitava. E eu 

Loucamente em menos de um louco minuto,

Dormia e não sonhava,

Sem tempo sequer de ter um sonho molhado,

Com também a louca miúda gira.

O que é a vida, acredita que um dia

O Alex regressaria de Fátima.

Que o gajo do relógio, um dia

Entraria no meu quarto com uma faca fria, visto ser ele filho de talhante e louco,

Também,

E como queria o louco do Ferro que eu me importasse com a louca puta da mulher,

Depois das milagrosas loucas seis gotas?

Vai-te foder Ferro, já és grandinho. Deixa-me dormir caralho, foda-se,

Que cena meu…


E caro único leitor; só saberá o que é a loucura se dormir e comer e cagar durante uma semana dentro de uma louca carruagem, com quase vinte loucos, com muitas portas loucas, com muitas janelas loucas,

E com destino Santa Apolónia.



Ainda acredita o meu único leitor que sou louco e tolo?


quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Empurra pai

O tecto em erecções constantes, ora para cima,

Para o lado esquerdo,

Para baixo

Novamente para cima e novamente

Para baixo

O Abílio procurava as cuecas no amontoado de roupa que ainda respirava, mas que às vezes

Desfalecia a roupa, as cuecas e talvez o avental que serviria para mais logo,

Confeccionar o jantar.

Nunca vês nada tu santa paciência,

Rendadas não rendadas calças, calças meias coloridas não coloridas,

Gostas das minhas meias? 

Adoro, principalmente a cor

O Abílio era daltónico, para ele tanto fazia que fosse noite, que fosse dia, que fosse Inverno,

Ou Verão, de inferno.

Para ele

Ao longe um baloiço brincava com uma criança, outra criança

Procura a sombra do baloiço, não sei que dia é hoje

Quinta-feira parvo dia catorze do mês dos finados,

Tu não sabias porque me procuravas, eu

Eu procurava apenas um sorriso que iluminasse a noite,

Era Verão e a tua pele parecia um rio sonolento descendo a montanha em direcção ao rio,

Cada gotícula, um pequeno poro em desejo

Uma pedra é lançada sobre a aldeia, sobre nada. Sabes?

Era melhor não nos encontrarmos mais neste cubículo de um terceiro andar que ruge a cada gemido teu, que tem mais fendas nas paredes do que

Furos de bala tinha o gajo da pastelaria que foi assassinado pelo tempo,

E pior do que isso

Esse maldito crucifixo que nos olha a cada suspiro.

Queres ir para onde, para tua casa?

Não percebeste parvalhão, depois o baloiço quando viu o menino à procura da sua sombra, dou-lhe a mão, afagou-lhe o cabelo,

O menino sorriu, eu quero dizer nunca mais estarmos juntos, percebes?

Que sim, respondia o menino depois do baloiço lhe ter desenhado no rosto o silêncio mais giro da aldeia,

Que giro!

The end, Abílio

O outro menino aproxima-se, devagarinho, poisa o dedinho da mão direita sobre o ombro do outro menino, o outro menino com o silenciado cabelo ao vento,

Olá, eu sou o Ricardo

Eu sou o Alfredo,

O baloiço já cansado de tanto baloiçar,

O tecto subia,

O tecto descia,

Um navio de espuma sobe as escadas, e sem ter a educação de bater à porta

Quarto adentro, sobre a cama, outro baloiço sem que até aquele momento soubesse,

Que também era um baloiço, que também

E, no entanto,

Subia,

Descia,

Uma pomba em sentinela junto ao vidro da janela, ao fundo da rua,

A igreja,

Mulheres e homens rezavam,

Imploravam,

Que naquele pequeno jardim onde havia um baloiço

Houvesse,

Porque um só é sinal de solidão, outro baloiço

Já viste António?

Não sei o que vi e acredita que tudo o que vi

The end.

Percebeste parvalhão? Isto não tem pernas para andar…

Não é isso carago,

Temos de encontrar outro baloiço para fazer companhia ao baloiço do jardim,

Tu é que sabes,

Se The end

Ou não end

Tanto faz, 

O tecto parou sobre uma mesa raquítica e à qual faltava uma perna, uma bola desce da árvore e de encontro ao baloiço

Pai empurra-me,

E para cima.

E para baixo,

O tecto cada vez mais invisível, estando o teu corpo ainda nu e mergulhado numa maresia de esperma, quase fumegante

O cigarro sobre a mesa, a mesa descendo a avenida, virava à esquerda,

Empurra pai

E ele empurrava o tecto no sentido ascendente, empurra pai, 

Puxou de um cigarro, durante dez segundo enganou o fumo, e este

Procurando a saída do meu labirinto peito,

Pensava ele,

Reflectia que a cada meia-hora um jesuíta é comido. 

Vê lá António, vê lá…

Já viste o Abílio?

Não hoje ainda não o vi porquê? E que raio tenho eu a ver com esse tal de Abílio?

Amo-o, António!

O açúcar caramelizado, que apenas um jesuíta sabe ter, depois

Lançou o cigarro para o beco, fechou a janela, ainda pensou fazer com que o tecto voltasse à posição inicial, mas depois,

Que se lixe.

Adeus Ernestina. As escadas já adivinhavam que pé o Abilio poisaria primeiro, às vezes

Pára no silêncio de um vão de escada com acesso a uma cama, apesar de não poder utilizar as mãos

A uma cadeira, e um crucifixo que se masturba

A lençóis mergulhados na imensidão de cada gemido, de cada tesão

Porquê Claudia? Porquê?

Porque o amo, muito, António. Muito. Percebes?

Eu até percebo porque cagam sempre sobre mim, os pássaros

A pomba também em lágrimas,

Fechei a porta, desci apressadamente as escadas, poiso a chave sobre uma coisa que parecia uma mesa,

Mas não uma mesa,

Um baloiço perdido na aldeia, uma mão nas tuas coxas até sentir nos teus lábios a razão do poema ser o mais belo

Dos belos, amanheceres,

E mesmo assim,

Não percebes António que eu o amo!

E ele ama-te?

Empurra pai

Empurra,

E o tecto subia.

O tecto descia,

Até chegar ao chão.


(ficção)


quarta-feira, 13 de novembro de 2024

O sarau

Leonor,

Diz António,

Parece que fomos convidados para participarmos num sarau de poesia,

Fomos?

Foste tu, eu não fui convidada para nada, e até acredito que tudo quilo o que escreves e tudo o que desenhas

São uma perda de tempo. Isso vai levar-te a onde? Diz-me António,

Para que passas tantas horas a ler, António?

Desculpa. Pensei que gostava de me acompanhar, só isso

Desculpa.

E sabes que mais?

Não sei, Leonor!

Tu só podes estar completamente louco para escreveres todas essas porcarias, não tenho outra explicação.

Não Leonor, não estou louco e tão pouco

Tu sabes lá o que é a loucura.

Louco, Leonor

Era o José, mais conhecido por queijeiro

Quando na realidade

Vendia vinho. Sim, vendeu queijo da serra, mas foi há tanto tempo,

Que o próprio tempo já esqueceu.

O Zé vendeu também televisores, telefonias e afins

Olha,

Os primeiros televisores que eu vi made in URSS,

Era o Zé que os vendia,

O Zé vendia,

Tanta coisa que ele fez e vendeu na vida, até droga

Vendeu.

Quando ele se concentrava, após muitos copos de vinho, utilizava a mente

E atravessava as paredes.

És muito parvo. Não acredito em nada disso.

Um dia o Zé estava numa tasca, do seu lado direito tinha uma parede que confrontava com uma dependência bancária, do seu lado esquerdo

Uma loja de fotografia.

Nós conversávamos sobre uma garota por quem eu estava apaixonado, e já na altura

A mania dos versinhos

Uma porcaria isto dos versinhos que me apareceu na vida e que só terminará quando eu morrer,

O Zé que eu

Ó pá, tu és inteligente, não tenhas receio de conversar com a miúda.

Olha que ela

Parece ser muito fixe

E fixe seria eu não estar sentado nesta mesa a ouvir este louco e a ficar também eu louco,

Vês, como estás louco?

Não sabes Leonor o que é loucura, o que é a paixão

E a cada trago de moscatel meu

O Zé

Imaginava bailarinas a dançarem sobre a mesa,

Eu que sim

Muito bem Zé, muito bem

E se ele ao menos soubesse o que é o amor.

O zé nunca casou. O Zé também não tinha filhos, pensávamos nós

Os amigos.

As bailarinas eram três. Lembro-me tão bem do rosto de cada uma delas,

Mas havia uma

Que me despertou o olhar, esfrego os olhos já muito dilatados devido à quantidade de livros que já tinha lido naquela noite,

Olhei-a de frente,

Ela parou de dançar por uns instantes,

Comecei a imaginá-la nua, solta

Sobre o mar dos meus lábios.

Ó António. 

Diz lá Zé,

Pagas mais um copo e eu apenas com o olhar atravesso a parede,

Como?

Pagas e vês!

És maluco Zé. Pode lá ser isso possível.

Mas está bem, pede lá mais um tinto.

As sílabas dos textos que tinha lido horas antes começam a fazer efeito no meu corpo. 

Sinto-me tonto, porra.

Puxei por um cigarro, esqueci por momentos a bailarina nua que me espera no umbral da ausência

E concentrei-me apenas e só no Zé.

Ele começa a esfregar as mãos, de vez em quando encerra as persianas do olhar

Respira fundo, e

Zé?

Deixei de ver o zé. 

Tu queres ver que este gajo atravessa mesmo as paredes!

Porra, só me faltava esta. Fiquei aflito e procurei por toda a sala,

Zé? Ó Zé?

Nada. Nem uma migalha de sono se encontrava no chão.

Sentei-me. Comecei a ficar triste, enjoado

E eis que

À minha frente o Zé sentado.

Pisca-me o olho, abre a mão

Uma moeda de cinco escudos no tempo dos escudos

E das bailarinas que dançavam sobre as mesas.

Afinal é verdade Zé! Desculpa lá eu ter duvidado de ti. Às vezes,

Olha que eu só digo a verdade.

És muito parvo, António

Acreditares que,

Deixa lá Leonor

Deixa lá,

A partir de agora vou começar a sonhar em silêncio, olha

Como o Zé,

Coitado do Zé…

Antes de morrer passou os últimos seus dias a passear no jardim duas garrafas de oxigénio sobre um carrinho

Com rodas. Parecia uma criança

A puxar um camião de sonhos e de desejos. 

Mas tu não acreditas mesmo em mim, Leonor!

Tu nunca acreditaste em mim.

Nem sei porque…

Então Zé, estás bem? 

Estou pá, como vês

Passeio estas duas garrafas, fumo três ou quatro cigarros, e

Tu ainda fumas, Zé.

Eu controlo, António

Eu apenas com a mente…

Fui há casa de banho. Entro na sala

E nada. Nada do Zé.

Tu queres ver que este gajo…

Pensei, está bêbado e foi para casa contar estrelas no tecto da liberdade noite,

Indiferente sentei-me e dei mais uns tragos de moscatel. 

Perco-me nos meus pensamentos. Imagino coisas sobre a mesa, às vezes

Até as tuas mãos de maresia madrugada, e oiço

Um estrondo do meu lado direito, esquerdo do Zé

Ou vice-versa,

Tanto faz meu amor,

Uma luz ergueu-se na parede, depois

Uma lágrima sai da parede e senta-se onde se sentava o Zé,

Zé, és tu porra?

Cala-te

Estou disfarçado.

Ah agora percebo

E a quem pertence esse retracto que trazes nos lábios?

Não sei, António. Não sei.

Estava em cima do balcão.

Assim António, acredita

Vais acabar os teus dias a dormir na rua,

Como tantos,

Assim, António

Assim não dá.

Não te preocupes Leonor,

Não te preocupes.

Talvez eu encontre o mar da minha vida!

Quem sabe, Leonor?

Quem o sabe!

Talvez Deus.

Talvez.



(ficção)


terça-feira, 12 de novembro de 2024

Os olhos de Matilde

Viviam escondidos num sonho falhado e sempre que abriam a janela,

Mãe quem é o meu pai?

Ao longe, quase sempre, um círculo de luz com olhos verdes brincava junto ao rio

Ela

Abraçava-o e segredava-lhe

Não tenhas medo Alberto

E o pobre do Alberto imaginava-se sentado junto a uma cuba em INOX com capacidade de cem mil litros e de uma bomba mecânica, e imaginava-se

A conversar com o silêncio e imaginava-se a escrever um poema à cuba em INOX e imaginava-se misturado com o ruido da bomba mecânica e que às vezes

Imagina-se a segredar-lhe junto ao motor eléctrico

Amo-te

Quem é o meu pai mãe?

Anos depois a cada pergunta a mesma resposta

Morreu Matilde

Como morreu mãe

Como morrem todos os pais Matilde

Com medo de não verem mais os filhos mãe

Sim Matilde

Às vezes era um carro que quase desgovernado o acordava daquela conversa entre o silêncio e uma cuba e uma bomba mecânica

Como estará agora a Matilde

Depois fechavam a janela, e quase que num abraço mais fino do que o medo, porque existiam algumas pétalas em papel sobre a cama, ela 

Porquê pai

É assim tão difícil dizeres-me que gostas muito de mim apesar de apenas agora saberes da minha existência

E os seus cabelos floriam a cada Primavera

O Alberto

Que quase que apostava

Que ouvi um fio luz que me segredava

Também te amo parvo

És um tolo

É tudo tão estranho pai

O que é estranho Matilde

Os adultos pai

E eu ia jurar que a bomba mecânica

Falava pai

Ouve lá sua cuba em INOX tu também não ouviste

E que não

Pai conta-me uma história

Pegou-lhe na mão, segredou-lhe quase que a lamber-lhe o cabelo

Um dia Adosinda

Um dia vais perceber porque vivíamos escondidos num sonho falhado

Prometes pai que vais gostar de mim

Sim Matilde prometo

E sempre que abriam a janela,

Mãe quem é o meu pai?

Era uma vez uma lágrima do tamanho do mundo

Do mundo pai

Sim Matilde do mundo agora escuta

Era uma vez uma lágrima do tamanho do mundo que queria ser o sol para alegrar o sorriso dos adultos, um dia, quando acordou no rosto de um pedacinho de mar

Pai o mar existe

Sim Matilde

Esfregou os olhinhos e

O quê pai

Espera Matilde

A lua disse-lhe que a partir daquele dia ia ser sempre o sol

Mesmo quando chovesse pai

Sim Matilde

Pai

Sim Matilde

Eu também posso ser o sol

Claro que sim Matilde

Basta acreditares

Acreditar pai

Acreditar Matilde.

Tenho sono pai

Dorme meu amor.

Até amanhã.


(ficção)


domingo, 10 de novembro de 2024

Imagino a tua boca, procurando a minha boca Na escuridão de um desejo

Vou à varanda. Tiro o maço de cigarros do bolso com muito cuidado, retiro um cigarro, olho-o como se ele fosse a mulher mais linda não sei de onde, acendo-o e penso

Penso que se eu não pensasse, talvez feliz.

Ao longe, do meu lado esquerdo, o latir de um cão. Talvez fome. Talvez sinta o silêncio de uma fêmea, talvez preveja o enforcamento de uma sombra.

Do meu lado direito, o som de uma coruja. Um som melódico, mas triste. Dizem que adivinha mortandade. 

Tem morrido muita gente de cancro. Uma coisa horrível, a decadência do corpo, antes da morte. Estamos vivos sem um corpo, e às vezes

Ainda falta tanto para começar a caminhar.

O meu pai partiu sem corpo. Tudo era horrível, tudo era noite constante, e invisível. O rosto e a cabeça pareciam uma fonte sempre a jorrar sangue,

O peito disforme, com altos e baixos, mais parecendo uma montanha à procura de um filho, à procura de uma palavra, ou à procura de nada.

Eu fechava os olhos, e em vez de ver o mar

Apenas um rio de sangue correndo pelo chão. 

A minha mãe também foi ficando sem corpo. E eu fingia sorrisos para que ela acreditasse

Que eu estava muito feliz.

Mas não estava.

E imaginava

O meu pai sentado numa cadeira emprestada, daquelas todas agronómicas e com comando integral e com internet

A morfina aos poucos inventava cadeiras nas esplanadas do silêncio.

Anos antes, era o meu pai a conversar com o filho, filho esse que não estava, filho esse que voava, filho esse que fumava. Mas o meu pai compreendia a minha pedrada.

Depois, era a minha vez de conversar com o meu pai, estando ele abraçado a umas quantas drageias de morfina. Cada vez mais o meu pai precisa de morfina, ontem era eu

Que cada vez mais,

Precisava de heroína.

Um dia enquanto regressava do trabalho, sem saber se era segunda-feira, terça-feira, quando às vezes passava a noite na urgência do IPO, eu trocava as coisas

E às vezes pensava,

Se atirasse o carro pela ribanceira,

Talvez,

Tudo terminava. Entro em casa.

Vou ver como ele estava, e ele

Filho, temos de conversar.

Pensei.

Vai pedir o divórcio à minha mãe, depois de todo o sofrimento que ela está a passar, ver o amor da sua vida a cair aos pedacinhos. E que não. Era mesmo comigo.

Então

Filho, isto tem de acabar.

E cá para mim, pois tem pai.

Tu tens de tomar providências porque já não sei se é dia

Ou se é noite.

E eu respondia-lhe

Tem razão pai,

A morfina também não.

E no entanto

Arrependo-me de não ter tomado algumas drageias com ele

E conversarmos. 

A minha mãe também se desfez em pedaços como se fosse tiras de papel. Também horrível

Estarmos a almoçar ou a jantar,

E aquele maldito aparelho de oxigénio sobre a mesa, sempre em movimento

Sempre a emitir sons.

Durante a noite

Era o outro aparelho de oxigénio no corredor,

Que às vezes,

Parecia mais um compressor

Do que um aparelho de oxigénio.

Ainda hoje oiço este som. Cadente. Permitindo que eu aos poucos

Pareça,

Sei lá eu o que pareço.

Depois também a minha mãe à volta da morfina,

E concluo

Que sou um Ex drogado, filho de dois drogados.


E penso em ti, meu amor. Imagino os teus olhos

Dançarem na mão de uma lágrima de luz,

Imagino a tua boca, procurando a minha boca

Na escuridão de um desejo.

Imagino a tua mão poisada na minha mão, em troca

De nada,

Em troca de um abraço, quando uma nuvem acredita

Que nos lábios de uma criança

Um pássaro, um livro

Se ergue cuspindo sílabas contra a esquina de uma árvore,

Eu

Quase morto,

Quase que não estou, aos poucos

Em pedaços,

Quase que sinto, e quase que me mato.

E penso em ti. Tanto que penso. Tanto que sou

Mas quem sou, se ninguém percebe porque procuro

Os teus lábios para beijar.

Estou aqui, sentindo tudo isto

Estou aqui permitindo que o sono me traga uma drageia para dormir,

Ou uma mão,

Uma mão para te tocar.

Imagino o teu corpo, só

Poisado no meu peito.

Imagino o teu cabelo,

Também ele só

Poisado no meu peito…

Imagino o silêncio nos teus olhos, que dizes serem vesgos

E que são mais lindos,

De que os lindos olhos do mar.

Imagino,

Imagino a tua mão,

Poisada na minha mão,

Imagino a tua mão, entrelaçada na minha mão

A folhear

Um livro de poemas.

Imagino o sol acreditando na lucidez da tua luz,

Quando sei que amanhã estou morto,

E que amanhã

Deixarei de imaginar…

O mar.


terça-feira, 5 de novembro de 2024

As acácias

Lamento, mas não lhe recomendo sabendo vossa excelência que vossemecê nunca se dignou em me explicar,

Porque choravam as acácias da sua infância; e mesmo assim, vossemecê cresceu louco, fez-se louco quando viu pela primeira vez

Os seios de uma preta. E mais, vossemecê acreditava que um dia, um dia muito mais além,

Alguém,

Alguém lhe dissesse,

Porque choravam as acácias da sua infância.

E no entanto

Hoje está vossemecê de rastos, completamente desiludo,

Ao descobrir que as acácias da sua infância,

Nunca,

Nunca choraram.

Elas apenas tinham lágrimas na penumbra da manhã. E se uma flor um dia lhe der um beijo,

Duvide, sempre.

Pode ser uma abelha, que é incomoda para a gente, que gostam mais de flores,

E de espetar,

No meu braço,

O veneno da saudade. 

Eu sei que vossemecê, às vezes, em frente ao espelho

Pergunta ao espelho;

Pai, porque choravam as acácias da minha infância! E vossemecê, sim

Vossemecê fica triste,

Porque ninguém lhe responde.

Hoje descobri que nunca existiram acácias, hoje descobri, que as acácias da minha infância,

Nunca,

Nunca choraram. E já começo a duvidar se algum dia existiram mesmo

Acácias,

Na minha infância. Mas elas tinham lágrimas,

Sim; eu vi com os olhos de criança que era.

E já não sei, se alguma vez vi uma cubata mergulhada no silêncio capim,

E ao longe,

Um musseque de engano descobria a paixão. O rio corria, corria…

E o musseque enrolava-se no dorso da primeira espingarda, acordada.

Eu também não sabia, não sabia e foi tudo mentira

Nem o meu avô nunca, nunca na puta da vida dele andou a passear machimbombos pelas ruas de Luanda, foi tudo

Foi tudo mentira. Foi tudo inventado,

Nem eu nunca estive empoleirado no portão do quintal,

À espera dele. Mais uma mentira, que me fizeram acreditar

Pode lá ser, ele era uma criança.

Foi tudo mentira, 

E a minha mãe nunca fez papagaios em papel,

Que desenhavam beijos,

No céu da tarde. 

Tão pouco sei onde fica Angola, ou Luanda.

Foi tudo,

Tudo mentira.

Lamento, meu senhor. 


sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Sexta-feira, visita aos nossos familiares e amigos defuntos. A cada passo que dou percebo que

Que já somos muito poucos. Somos tão poucos que quase tenho medo de que o vento me leve,

Para outro lugar. Depois de lavar o jazigo dos meus pais,

Sentei-me no muro, fumei alguns cigarros e conversei com a minha mãe,

Com o meu pai,

Quase não falamos; não sei porquê.

Fui embrulhado numa ténue nuvem de fogo e quase chorei,

Não sei, mãe. Não sei.

Mas sei que me andas a pregar partidas, eu sei, mãe. Eu sei…

Como a de hoje; como a de hoje.

Que o sol começou a ficar frio, escuro,

Que a primeira lágrima da manhã não sorriu. Eu sei, mãe

Eu sei que só podes ser tu,

Mas porquê, mãe?

Agora percebo tudo aquilo que me dizias, enquanto eu sentia a tua voz de encontro

Ao outro lado da rua. Agora percebo porque me olhavas,

Horas antes,

De levitares até ao silêncio.

Agora percebo tudo, mãe.


domingo, 27 de outubro de 2024

O Tejo

 

Aqui sinto o esfriar da maré,

 

Sentava-se junto ao rio a contemplar as gaivotas, às vezes distraia-se e acordava do outro lado da penumbra, no caderninho que sempre trazia no bolso, algumas notas que semeava,

Para talvez um dia,

As pudesse ler. Chegou esse dia. De cada página do caderninho acordam os finais de tarde junto ao Tejo. Há pouco bateram-me à porta, fingi não estar, como sempre

Finjo não estar.

Parece que nunca estive dentro daquelas coxas inventando silêncios de esperma, quando acordávamos

Apenas uma lâmina de sémen sobre a clareira do abismo. Mas estive lá. Parece que um dia ele apaixonou-se por uma trapezista,

E eu voava nos seios mais belos daquela Primavera que se adensava dentro do espigueiro de Carvalhais,

Abria a janela, um grande campo de milho absorvia-me, eu bebia compulsivamente e fumava

Loucamente,

O meu avô acreditava que eu, durante a noite, saltava a janela de sentava-me junto ao espantalho; confesso que o fiz,

Algumas vezes. Conversávamos.

Meio a cambalear,

Sentar-me junto ao espantalho avô? O que anda a fumar nos últimos dias…?

Ele ria-se.

Eu chorava. Sabia que era o último ano que beberia e fumaria coisas à janela daquele quarto

Que toda a gente dizia,

O quarto do meio.

O meu avô,

O quarto do Luizinho. Pois claro.

Aqui sinto o esfriar da maré, o levante do marinheiro quase que dorme, quase que habita

No meu peito. Trazia-me sempre que regressava um livro, eu adorava livros, como hoje, talvez

Quando repentinamente um grande milagre de espuma caiu sobre o mar,

Traziam o rapazote de África acreditando que ele, um dia,

Dormiria sobre as ardósias cinzentas do sono. Nunca quis um gato. Constipava-se a miúdo,

E nunca acreditou no pai natal.

Era sábado. O primeiro petroleiro a passar a barra acenou-me, eu acenei-lhe e enviei-lhe beijos, as noites tinham deixado de ter nome, e eu

Quase que não me chamo de coisa alguma, quando do outro lado da rua,

As tramites habituais do despojo

E do nojo,

Acreditar ser poeta. Eu não acredito.

Odiava que um dia passassem por mim,

E

Bom dia senhor poeta. Confesso. Odeio.

Sentava-se junto ao rio a contemplar as gaivotas, e nunca teve a coragem de caminhar sobre as águas do Tejo…

Voar sobre os teus olhos de mar

 

Descia a rua transportando na algibeira dos calções os olhos do mar, ele

Ele sonhava um dia voar sobre o capim sonolento de uma infância recheada de alegrias, que de quando em vez

A mãe,

Oferecia-lhe um papagaio em papel. Tinha muitas cores, como muitas cores têm os teus olhos. Acreditava, acreditava que um dia, acreditava que um dia todos aqueles rabiscos deixados nas paredes do quarto,

Tivessem vida. Amassem.

Descia a rua com o sorriso envenenado pela chuva miudinha de Agosto, o sol às vezes escondia-se como se escondem hoje,

Todas as pessoas.

Vivemos num esconderijo, cada qual e cada um se esconde, vivemos escondidos de uma multidão fantasiada de espasmos e lazeres,

Depois,

O veneno. A morte.

O vento iluminava-lhe o cabelo encaracolado e loiro, hoje ele tem cabelo branco e espetado numa noite de Inverno.

Eu tinha o cabelo comprido, loiro e encaracolado, mas o parvalhão do meu pai, um dia, um dia levou-me ao barbeiro e pregou-me com uma carecada,

Confrontado,

Respondeu à minha mãe que o menino parecia um maricas….

Um maricas, eu.

Descia a rua acreditando que acreditava em tudo, mesmo sabendo que lhe mentiam, ele acreditava que não lhe mentiam,

Hoje mentem-lhe,

E ele acredita que

Não lhe mentem. Descia a rua mais sonolento de que a noite sabia, e hoje a noite sabe tudo a seu respeito,

Um dia voará e do cimo de um prédio se lançará ao mar,

Depois sabíamos que mais tarde ou mais cedo, a separação era evidente, porquê mentir,

Se aquele menino que descia a rua sempre que acredita,

É confrontado com a tristeza de viver,

Fingindo,

Morrendo em pedaços como o vento depois de se alicerçar às montanhas da paixão.

Que sabem os leitores de paixão?

Talvez saibam mais sobre Cristinas Ferreiras e afins limitada, decimo terceiro esquerdo, entra-se e ao fundo do corredor o porto de mar, depois

As garras das suas mãos pareciam um guindaste cancelando portagens num qualquer cinema ao ar livre,

Eu sentia-me feliz, muito

Quando descia a rua dentro de uns calções de pano, sentia-me um longínquo menino à procura de sonhos, e fumei heroína acreditando hoje

Que procurava esses mesmos sonhos.

Quase morri, e sonhos

Não os vi.

Descia a rua acreditando que se subisse as treze escadas em madeira,

Tinha os braços da Primavera para me emparar,

Depois de uma noite de enganos, porque toda a minha vida foi um grande engano,

Começando com o meu nascimento. Nasci em Janeiro num principio de manhã alimentada pelo sorriso do sol, começava a ficar calor

Abri os olhos, e nunca tinha visto em toda a minha vida, que já vai longa, mulher tão linda, como aquela que me olhava

Era a minha mãe.

Descia a rua acreditando que não voltava mais aos teus braços, mas logo que chegava a casa

Queria estar novamente nos teus braços. Acreditava

Quando descia a rua

Descia a rua transportando na algibeira dos calções os olhos do mar, ele

Ele só queria voar sobre os teus olhos de mar!

Conseguirá o menino voar?

domingo, 20 de outubro de 2024

A gambiarra

 

O poeta, durante a vindima, aproximadamente trinta dias, andou com um garrafão de água na bagageira do carro, pois este perdia água e aquecia; coisas de mecânica que não assustam um poeta.

Fi-lo porque não tinha tempo para ver de que se tratava a perda de água, e também porque o poeta não é nada endinheirado, e do pouco dinheiro que tem,

Prefere comprar livros.

Digamos que sou um miserável, que nalgumas coisas, mais parece o Pacheco.

Terminou a vindima. Com alguma coragem, consegui descobrir a razão de o carro perder água; uma peça danificada e o respectivo tubo.

Tirei a peça, fiz uma gambiarra como o dizem os nossos amigos brasileiros, e com uma puxadinha

Liguei os tubos directamente e assim resolvi a perda de água.

Fui dar uma volta até às belíssimas corres do Outono do nosso deslumbrante Tua, para experimentar se o carro deixava de aquecer, e

Bom, ao fundo tudo funciona,

Até a poesia.

O problema foi subir o Tua. Começou a aquecer, muito, parei, abri o capô, e verifiquei que o depósito da água parecia uma panela de pressão, e que quase explodia.

Fechei o capô. Pois o poeta tem de dar a graça de feliz, não de miserável que é, e a cada

Carro que passava por mim,

Eu sorria.

Arranquei e parei três ou quatro vezes, até que enquanto fumava um cigarro lembrei-me dos conhecimentos de termodinâmica, e resolvi muito devagarinho abrir o depósito da água, muito devagarinho

O vapor subia em direcção ao sol.

E percebi que se viesse com a tampa do depósito apenas meia apertada, havia saída de vapor, e o carro não aquecia.

Funcionou. Deixou de aquecer. E a função da peça danificada, é mesmo essa.

 

A parvoíce disto tudo, ontem, 19/10.

Era o aniversário da Cristina, e foi esta a tarde que lhe proporcionei; mas ela estava feliz. E o poeta sentiu-se amado.

domingo, 13 de outubro de 2024

A Bedford amarela

(Texto publicado na revista “O Escritor” nº 11)

 

Meu querido Fernando,

Atravessaste o rio Congo sem que ainda hoje perceba porque o fizeste. Porque te escondias, meu querido Fernando? Dos pássaros, como eu hoje, das fotografias que trazias na algibeira e que nessa altura ainda não tinhas a minha? Ou escondias-te apenas do silêncio…

Sabes, meu querido Fernando,

Levavas-me a olhar os barcos gordos que descansavam no porto de Luanda, pegava na tua mão e sentia-me o menino dos calções mais feliz de todos os meninos dos calções, depois, entre pedaços de silêncio, perguntava-te porque…

Porque choram as acácias, pai?

Dizias-me que tinham sono, dizias-me que era devido à distância entre a lua e a terra, mas meu querido Fernando, nunca me disseste que as acácias choravam porque estavam tristes, porque estavam tristes, meu querido Fernando. E apenas muitos anos depois percebi o que era a tristeza,

Voavam como ninguém. Manhã cedo pegavas na Bedford e passeavas-te pelos musseques em busca de não sei o quê, tal como eu hoje, tal como eu ontem, tal como eu amanhã, mas nunca percebi porque atravessas-te o rio Congo em direcção ao nada,

Fugias de quê, Fernando? Das acácias, meu querido?

Lembras-te Fernando, quando cismei que queria escrever na tua carta de condução e poisaste devagarinho a tua mão no meu rabo, mas sabes meu querido, teimoso como sou, teimoso como era, de nada serviram as tuas palmadas, porque o que eu queria mesmo era escrever na tua carta de condução.

Depois comecei a rabiscar nas paredes do quarto, da sala, casa de banho e afins; tudo o que fosse parede, o menino dos calções desenhava, deixava a sua marca. E ainda hoje, meu querido, e ainda hoje…

Os pássaros partiram e levaram todos os barcos gordos, dos caixotes em madeira, sobejaram apenas algumas letras em tinta encarnada onde se podia ler PORTUGAL; e de Portugal enviamos um grande beijinho para todos, e uma linguiça para não se esquecerem dos sabores da nossa terra.

E sabes, meu querido Fernando, nunca entendi porque atravessaste o rio Congo em direcção ao nada, do que fugias, meu querido?

Das lágrimas das bananeiras? Da tristeza? Das acácias?

E havia sempre um pedaço de papel poisado sobre a mesa. Havia sempre um barco encalhado dentro de mim, dentro de ti, dentro dela…

Barcos, meu querido. Barcos.

A Bedford engasgava-se, o avô Domingos passava horas a passear um velho machimbombo pelas ruas de Luanda, a mãe passava as tardes a construir papagaios em papel e eu, o menino dos calções, passava as tardes a fazer vestidos para o meu grande amigo chapelhudo. Mas, meu querido Fernando, do que fugias? Como eu…

Atravessaste o rio,

Tínhamos medo das acácias, tínhamos medo do sono que o cacimbo provocava em nós e nos transportava para as pequenas sílabas do capim envenenado pela saudade,

E anos mais tarde, como tu, meu querido Fernando, fui obrigado a mentir-te, fui obrigado a dizer-te que estava tudo bem, mas não estava, meu querido, como poderia estar se já tinhas a morte suspensa nos ombros. Menti-te, depois fui obrigado a mentir à mãe, pela mesma razão,

Desculpa meu querido, desculpa ter-te mentido, mas foi melhor assim,

Olhava-te como quando me levavas a ver os barcos gordos, só que tu te afundavas aos poucos, e os barcos gordos dançavam sobre a ondulação marítima. Minutos intermináveis que pareciam dias, cigarros, cigarros, cigarros de mentira.

E enquanto te afundavas no Oceano da dor e das chagas que alimentavam o teu corpo, recordava as manhãs de Domingo junto aos barcos gordos, recordava a Bedford amarela, de musseque em musseque, e ao longe, o rio Congo.

Depois, desapareceste entre as nuvens. E nunca mais te vi.

Sabes, meu querido Fernando, nunca percebi porque atravessaste o rio Congo, mas percebo hoje porque trazias na carteira a fotografia da avó Valentina e a minha; e mentia-te. Escrevi a mentira em vós para enganar a saudade; e claro que não estava tudo bem.

Como poderia estar tudo bem se os barcos gordos hoje são apenas sucata e pedaços de limalha.

Porquê, meu querido?

Porquê as acácias?

E dentro dos cigarros em metástase, ouviam-se as lágrimas das tardes junto ao teu leito; desculpa a mentira, meu querido; mas acredita que estava tudo bem.

Tudo bem, como hoje.

Os barcos, pai. Tínhamos o silêncio e o gemido do capim quando após a chuva um pequeno mabeco vinha a nós, e tu, e tu desenhavas-me o sol no chão lamacento e com odor a fogo,

Porquê, meu querido?

Porquê as acácias?

E claro que sim, meu querido Fernando, quando regressavas a casa na Bedford amarela, eu esperava-te no portão de entrada, á espera do teu abraço,

Depois,

Davas-me um beijo e escondias-te no cansaço do dia.

Erguia-se a noite em ti, despedia-se a tarde de mim, e pai, as acácias choravam,

Porque choravam as acácias, pai?

(atravessaste o rio Congo sem que ainda hoje perceba porque o fizeste. Porque te escondias, meu querido Fernando? Dos pássaros, como eu hoje, das fotografias que trazias na algibeira e que nessa altura ainda não tinhas a minha? Ou escondias-te apenas do silêncio…)

Porquê, pai?

 

 

 

Francisco Luís Fontinha