Mostrar mensagens com a etiqueta infância. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta infância. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Regresso

 Perguntavam-lhe o que ele queria ser quando fosse grande,

E ele,

Costureiro.

Como ele ainda não sabia o significado de estilista, respondia que queria fazer vestidos para o chapelhudo,

Criança parva, aquela.

Um dia quando acordou, olhou pela janela e decidiu que queria ser guardião de barcos, que felizes eles eram, quando se cruzavam, apitavam e beijavam-se…

O mar agitava-se, às vezes, outras, outras parecia um lençol de linho deitado sobre a tua pele, até que descia a noite e levavam-me para o camarote.

Cheirava a Nafta e eu gostava daquele cheiro, daquele silêncio da meia-sucata, alguns envenenados pelo tempo, ali parados, parados a olharem-me. Deitava-me. De barriga para o ar, olhava o tecto e desenhava círculos de luz com o meu olhar,

E ele nem percebia porque acordavam os mabecos durante a noite a chorar…, quanto mais que ia para Portugal, para a Metrópole. Raios.

E depois de desenhar os pequenos círculos de luz, imaginava a lua a descer, a descer, até poisar sobre a minha cama, pelo óvulo da janela, o mar, o salgado mar das tardes de poesia junto ao rio, enquanto me deixa ir pela preia-mar e só acordava numa qualquer pensão recheada de piolhos e afins,

Criança parva, aquela.

Um dia, qualquer dia, percebeu que valia mais ter ficado no mar.

Era frio. Às vezes, às vezes o cobertor não dava para os três, e mesmo assim, queria fazer vestidos para o chapelhudo, descia a calçada, e virando à direita, aterrava num qualquer aeródromo com cadeiras de ferro, e mesas de ferro. Ficava ali até acordar o dia… até o dia se fartar de mim.

Um dia, qualquer dia, quando se ia deitar descobriu que queria ser o silêncio,

Já sei o que quero ser quando for grande,

Quero ser o silêncio.

E eu expliquei-lhe que nunca poderia ser o silêncio porque ninguém pode ser o silêncio e que o silêncio é quando Deus está… em silêncio.

Não percebeu, o miúdo.

Parvo, este miúdo.

Aos olhos da neve sou um pedaço de alegria embebida em quadradinhos de ausência, já aos olhos dele,

Criança, parva.

Criança, parva.

O rio fartava-se dele, pedia-lhe desculpa, despedia-se e só ao outro dia, por volta das onze é que regressava, eu, lá, esperando que ele voltasse.

Talvez me pagasse o almoço.

Olhava-o, pedia-lhe um cigarro, e conservávamos sobre coisas banais, coisas simples, coisas de mim e de para um rio; o cobertor parecia uma folha de papel vegetal, e sentia os meus ossos em pequenos rangeres como gonzos loucos sitiados e revoltados numa qualquer clinica psiquiátrica.

Durante muito tempo acreditava que tinha deixado lá o sono em detrimento de trazer outras quaisquer bugigangas. Depois um parvalhão ofereceu-me um par de botas, pesadas, pesadíssimas como chumbo. Chorei.

À meia-noite ouvia o sino e acreditava que ao outro dia, um qualquer dia, todos os pássaros seriam livres.

Todos.

Estilista.

Quero ser estilista.

 

 

21/09/2023

sábado, 10 de junho de 2023

As estrelas das minhas mãos

 

Vou por aí, andando e pensando, quando me dizem que não devia pensar, porque um tolo não pensa, porque quem pensa, é um tolo pensante…

Vou, vou andando e por aí… ao som de Black Magic Women,

Vou por aí, andando e pensando, pensando e voando… e enquanto voo, eu penso, penso que se não existisse a gravidade, que se diga, não era grave, no entanto, eu penso,

Que não precisava de asas para voar, não, nada disso, penso que…

Em tanta coisa que penso,

Mas penso.

E que sim, que avencem as tropas de Santarém em direcção ao Terreiro do Paço,

Sentava-me e pensava, e contava todos os cacilheiros que invadiam os meus olhos, meu Deus, eram tantos e tantas…

Para a frente,

E para trás,

Uns eram cegos, outros eram lindos… e outras,

Outras pareciam uma pequena bolha numa mísera folha de alumio, no entanto, muito depois, o AL, perceba-se, símbolo químico do alumínio, em criança…

Sabíamos na ponta da língua qual era o símbolo químico da navalha,

K2ou3,

As tropas de Santarém estão a fazer a aproximação ao Terreiro do paço, e eu, e eu aqui sentado em frente ao Terreiro do Paço, como se fosse uma criança com cabelos compridos e loiros…

Nada de bom tenho, pensava, do pouco que me sobeja, não me sinto… digamos, discriminado,

Tenho mais sonhos sonhados do que a maioria de todos estes cacilheiros, e mesmo assim, querem que eu seja…

Deus.

Raio.

E se Deus quiser, um dia, qualquer dia, tanto me faz… o dia, desde que seja de noite, com luar, sem luar…

As tropas começam a desenhar sorrisos nos lábios da noite, eu tinha ficado por aquelas bandas, talvez tivesse adormecido num qualquer banco de jardim, não seria a primeira vez,

E a bolha, como os cacilheiros, dançava nas mãos de uma criança, que não gostava que as acácias chorassem,

Mas elas, teimosamente,

Choravam.

Vou por aí, andando e pensando, quando me dizem que não devia pensar, porque um tolo não pensa, porque quem pensa, é um tolo pensante…

E tanto as tropas como eu, estávamos a cagarmo-nos para o tolo, se pensava ou não pensava, se fodia ou não fodia, e a maior parte das vezes, era fodido,

Escrevia cartas durante a noite, para a noite. Eles e elas e os cacilheiros…

Indiferentes que eu tivesse dormido num banco de jardim.

Erguia-me, olhava-me no espelho da manhã, desenhava com um lápis de cor um pequeno sorriso na mão, e voava…

Quando nos teus braços, já as tropas de Santarém colocavam as algemas nos teus lábios,

Um baixote, muito baixo e muito gordo, que agora é proibido de dizer e de escrever,

Mas claro, eles querem que eu me foda, e claro também, eu, eu quero que eles se fodam,

Nomeadamente quando esse mesmo baixinho e gordo das tropas de Santarém informa a madrugada,

Alô, comando territorial do sono,

Lisboa é nossa.

Bravo, bravo…

Que sim. Que felizes eles estavam…

E eu, dormia num banco de um qualquer jardim da cidade dos sonhos.

Abraçava o Tejo, o Tejo abraçava-me, e sabíamos que numa qualquer manhã daquela Primavera… morreria a insónia.

Por aqui, cacilheiro número três mil e oitocentos, calça quarenta e quatro,

E na boca,

Na boca esconde um pedaço de sargaço.

Somos muitos, ouvia-os, e mesmo assim, não aconteceu nada…

Vou por aí, outras vezes por aqui, e de tolo em tolo, tínhamos tomado a cidade dos sonhos e toda a cidade era apenas nossa,

Não acreditava em janelas, não acredito em Deus,

E às vezes, converso com Deus…

E que não devia pensar, e que sou um tolo pensante, penso,

Penso como apareceu toda a matéria do Universo, toda ela concentrada num pequeno espaço como o da cabeça de um alfinete, e claro, eu acredito…

Eu acredito.

No entanto, o tolo que pensa, pensa

Quem colocou toda a matéria do Universo dentro daquele pequenino espaço do tamanho do da cabeça de um alfinete?

Claro que não foi Deus, porque naquela altura, certamente

Andaria muito ocupado.

Mas penso.

E admitindo que numa qualquer tarde, enquanto Deus se deliciava com o seu cigarro, ele, ele resolvesse colocar nesse mesmo pequenino espaço do tamanho do da cabeça de um alfinete,

Toda a matéria,

Será?

E toda a matéria, de onde veio?

Das mãos das tropas de Santarém que agora mesmo tomaram Lisboa aos cacilheiros,

Que porra.

O alfinete de tanto esperar, dizem que Deus é tão perfeito e ao mesmo tempo,

Muito vagaroso,

Diferente

De preguiçoso,

O desgraçado do alfinete, espirrou… um grande espirro…

E voilà,

E definitivamente

É criado o Universo,

Há bebidas grátis, há porco no espeto…

Claro que as coisas menores,

Aos poucos,

Foram crescendo no arvoredo da tarde.

Por aqui, por aí,

Os tolos que pensam, são os mesmos tolos que Deus enviou para Marte.

E até hoje,

Ainda não regressaram, nem regressarão mais.

Para concluir, senhor professor, diria que toda a matéria que existe no Universo veio do nada,

Portanto,

Do nada,

Um pouco de anda,

Poderá nascer tudo,

Acredita nisso, Francisco?

Acredito, professor, acredito…

E há quem duvida de toda a beleza criada por Deus…

E há quem duvide da existência de Deus.

 

 

 

 

Francisco Luís

Terreiro Paço, 10/06/1013

(ficção)

quinta-feira, 25 de maio de 2023

O poeta de Deus

 

(feliz dia de África)

 

 

Não sei,

Não sei como será o Inverno

No Inferno,

Não o sei…

Mas… quem o saberá?

Farto-me de escrever poemas a Deus…

E Deus está literalmente a cagar-se para mim,

Não me importo,

Quero lá eu saber de Deus,

Tal como ele,

Quer lá Deus saber de um tal de Fontinha…

 

Não o sei,

Quem o saberá…

Vocês sabem como será o Inverno no Inferno?

E de um tal de Inferno disfarçado de Inverno?

Não, não me interessa…

Em criança, até um determinado período da minha vida…

E que vida,

Meu Deus,

Que rica vida eu tive…

Não sabia o significado de Inverno.

 

E era muito feliz!

Muito mesmo…

Tão feliz que…

No meu Inverno,

Trazia os meus calções e as minhas sandálias de couro…

Que couro, meu Deus,

Que calções…

E quer lá saber Deus dos calções e das sandálias…

Deus,

Deus passa todo o seu tempo a escrever poesia…

Entre calções,

Tão feliz que fui…

Muito feliz,

E do meu Inverno,

Que Inverno,

Aquele meu Inferno,

De aprender o significado de Inverno…

Quando eu…

 

Tudo esqueci,

As sandálias, os malditos dos calções, o Mussulo, tudo,

Tudo mesmo.

Durante muitos anos,

Muitos mesmos,

Queria perguntar ao meu pai porque choravam as acácias da minha infância…

E tudo,

Já não me lembrava de nada…

Apenas…

Machimbombo…

Que coisa, esta, do Inverno ser Inferno…

E Deus, o poeta, ser tudo…

Tudo o que não fui,

Tudo o que não quero ser,

Ser o quê…

Mais um, por aí…?

 

E chorei.

E chorei sem perceber que chorava…

Que apenas me recordava,

De ter chorado,

Não porque me apetecesse chorar…

Mas chorava,

Tinha medo de me perder,

E um dia, perdi-me, por aí…

Um dia, meu Deus…

Um dia…

Chorava porque tinha frio,

Chorava porque tinha medo,

Chorava porque me sentia só…

Qualquer coisa que nasceu comigo, não me pertencia…

Tinha morrido,

E até hoje,

Hoje… nada,

Até hoje não sei a coisa que morreu,

E que até hoje,

Não consigo dizer que coisa é essa…

E se não há coisa,

Não haverá cadáver,

Nem haverá crime…

 

(peço desculpa pela ausência, mas assuntos do foro privado chamavam-me)

 

A minha mãe,

Coitada da minha mãe…

Tal como eu,

Também ela chorou muito…

Muito…

Éramos assim…

Como deslocados,

Ausentes de corpo e alma,

Não,

Nunca acreditei na existência da alma…

Nunca.

A minha mãe,

Coitada da minha mãe…

Eu chorava,

E eu sabia que a minha mãe chorava porque eu chorava…

Éramos ausentados,

Deslocados da terra e do primeiro pigmento de cor…

Abraçava-me a ela,

E ela mentindo-me, dizia-me… um dia, um dia meu filho…

Um dia tudo vai melhorar…

 

Um dia,

Um dia cairá chuva na minha mão,

Um dia,

Um dia…

Não sei,

Não sei como será o Inverno

No Inferno,

Não o sei…

Mas… quem o saberá?

Farto-me de escrever poemas a Deus…

E Deus está literalmente a cagar-se para mim,

Não me importo,

Quero lá eu saber de Deus,

Tal como ele,

Quer lá Deus saber de um tal de Fontinha…

Ou do Inverno no Inferno,

Do Inferno a infernar o Inverno…

Quer lá ele saber…

A não ser…

Que Deus seja accionista do Inverno e credor do Inferno…

Ó pá,

Deus é comunista…!

Deus não é nem nunca será capitalista…

 

Veremos, um dia…

Um dia, um dia veremos.

 

 

 

Francisco

25/05/2023

terça-feira, 2 de maio de 2023

Do outro lado da rua

 São as flores do meu jardim, são as palavras em flor, que semeio no meu jardim, são as flores do meu jardim e as palavras em flor que semeio no meu jardim as responsáveis pelo aprisionamento do teu sono, e tudo isto,

E tudo isto enquanto a terra não se cansa de girar, gira e é tão gira e é tão bela, a terra ou o meu jardim ou outra coisa qualquer…, gira em torno de um eixo imaginário, roda à velocidade de trinta quilómetros por segundo,

E, no entanto,

As flores do meu jardim e as palavras que semeio no meu jardim, estão lá, quietinhas, e o teu sono,

Escondido na minha mão,

Depois, depois pego no sono, coloco-o cuidadosamente nos teus lábios de mel, olho-te, olho-te da mesma maneira que olho o mar…

Em pequenos silêncios,

No teu cabelo, os maravilhosos barcos em papel colorido, e depois de poisar o sono nos teus lábios de mel, afago o mar do teu cabelo, separo os barcos rapazes dos barcos raparigas, e espero,

Espero que acorde o pôr-do-sol.

Desenhas um sorriso na alvorada, uma âncora de néon que não me deixa construir todos os meus papagaios em papel que ainda me faltam construir, e são tantos, ainda, meu Deus… tantos papagaios em papel,

Da janela nada virá. Nem regressa o vento das tempestades de silêncio, nem regressam as papoilas da clareira, nem tão pouco, vê tu, meu amor, nem tão pouco regressarão as primeiras lágrimas da madrugada,

E se eu pudesse,

O sono sorri-me,

O teu sono, claro,

O teu sono sorri-me, eu sorrio-lhe, e o filho de ambos,

Sorri,

E das suas gargalhadas, vejo o meu sono e o sono dela e o sono de ambos, todos, em busca de um pedacinho de mar (e de outro sono) com odor a desejo, a música, a música bloqueia-nos as mãos, e momentaneamente, e momentaneamente é impossível escrever um abraço na janela do prazer, os cigarros vão matar-me, mas pensando bem, tudo nos mata, até porque todos nós nascemos para morrer,

E uns morrem mais depressa de que outros, mas o que interessa,

Todos morrerão, como morreram as minhas sandálias em couro que usava na minha infância, em Luanda.

O barco, cansado, um barco rapaz, salta do mar do teu cabelo e deita-se junto a nós, aos nossos pés, ainda seguras o pedacinho de sono nos teus lábios de mel e em breve uma nova alvorada nascerá com as palavras semeadas no meu jardim, gosto deste quadro, gosto deste quadro que não me canso de o olhar a que dei o nome de paixão,

O barco, o barco rapaz, coitado dele, o barco, o barco rapaz, sabe que brevemente todos os buracos negros deixarão de ser negros (não será esta uma forma de racismo? Buracos negros…) tantos, olha tantos…

E são tão belos e mágicos e tudo o mais, todos os buracos negros do Universo, e vê tu, meu amor, dizem que existe no Universo quarenta quintilhões de buracos negros, meu amor, quarenta quintilhões…

(nem o vizinho do segundo esquerdo com o seu berbequim faria tantos)

E, no entanto, guerreamos por milímetros de terra em comparação com o tamanho de todos estes buracos negros e o próprio tamanho do Universo, vês, vês agora porque penso tanto?

Da terra virá, um dia, ou talvez já cá esteja, o nosso Salvador; tudo isto, tudo, para te dizer, que talvez nessa altura já não exista cá nada,

Nem flores, nem poesia, nem tão pouco o silêncio, olha

E nem o dia…

Quem diria,

Que um dia,

Qualquer dia…

Ele virá nos salvar,

Mas… salvar o quê? Quando tudo já desapareceu…

Deitava-me no chão, no chão da minha infância, depois, de barriga para o ar, olhava a copa das mangueiras e sonhava,

Sonhava, escrevia, desenhava… e tudo apenas com um simples olhar, o avô Domingos

Luisinho.

E eu, nada.

Luisinho coisa alguma, pois chamo-me Francisco, fui baptizado e meço um metro e setenta e cinco centímetros,

(diga-se que o meu avô Domingos era a pessoa mais teimosa que eu conheci em toda a minha vida),

E quando me olho no espelho

Eu, nada.

Baptizado, tu?

Sim eu, sim…

Tenho as fotografias…

Olha… eu também tenho fotografias da lua

E?

E nunca fui à Lua.

O avô Domingos escondia-se entre os machimbombos, e eu

Eu, nada.

Sentado no chão a imaginar como poderia construir um jardim de silêncio no cabelo da minha mãe,

Mas, confesso, que até hoje, não fui capaz de construir esse jardim de silêncio no cabelo da minha mãe,

Acabou por perder o cabelo, levado pelo vento numa noite de luar…

Para o meu mar,

Não estou arrependido, não.

E enquanto podia estar a beijar-te loucamente, enquanto podia escrever no teu corpo todos os poemas que ainda não escrevi,

Penso.

Mas penso em quê?

E quando descobrirem que afinal Deus, o todo-poderoso, criador do céu e da terra e dos buracos negros (quarenta quintilhões de buracos negros), é afinal uma mulher?

Silêncio na sala,

Ai e tal,

Não gostaram,

Quando pensavam que Deus era homem, tinha tesão, e, no entanto, como poderia um homem desenhar e criar

A mulher…

Nenhum homem conseguiria desenhar e criar a mulher, poder podia, mas com tanta perfeição,

Não, não podia.

E de agora em diante,

Deus é uma mulher,

Porque apenas a mulher consegue de um pedacinho de nada, pouca coisa minúscula em comparação com os quarenta quintilhões de buracos negros que existem no Universo ou com os cerca de duzentos a quatrocentos biliões de estrelas existentes na nossa galáxia,

E, no entanto,

De um pequeno pedacinho, um quase nada de nada, acorda na tela da vida, o mais belo ser, de tudo e de todos e de todo o Universo,

O seu filho.

Filho, filha, que brincou, que passava tardes inteiras a rabiscar na parte esquerda do útero, pequenos círculos, pequenos quadrados, alguns números e letras,

E eu que o diga,

Passei lá tardes infinitas…

Como o Universo?

Como tudo na vida, meu amor.

O avô Domingos, sentado numa cadeira, porque tinha sofrido um grave acidente e uva muletas, eu, rapazote irrequieto e pior de que o Diabo, segundo a minha mãe, roubava-lhe as muletas e corria, corria, corria…

Até que…

Não tinha mais quintal para correr,

Luisinho. Luisinho.

E eu, nada.

Não é comigo.

O meu nome é Francisco.

Como sempre.

A alvorada ergue-se no mar do teu cabelo, os poucos barcos que ainda restam, um barco rapaz e dois barcos raparigas, olham-te, como eu te olho, e o desejo de ambos é o mesmo,

Luisinho.

Nada.

Depois, espalho o sono nos teus lábios de mel, muito devagarinho, em silêncio, até que adormeces na minha mão,

E sei que Deus, afinal, é

É uma mulher.

Só poderá ser uma mulher…

 

 

 

 

 

Alijó, 02/05/2023

Francisco Luís Fontinha

sábado, 29 de abril de 2023

O menino dos calções e das estrelas em papel

 Vou contar-te uma história.

Uma história?

Sim, uma história…

Há muitos anos,

Muitos?

Sim, muito, muitos…

Havia um menino, o menino dos calções, que desenhava no mar barcos em papel e tinha no tecto onde dormia, estrelas, estrelas que falavam,

Que fixe, estrelas que falavam!

As estrelas falam?

Nem todas, estas sim.

O menino passava as tardes debaixo da sombra das mangueiras a sonhar, sonhava que um dia, um qualquer dia, voava, que um qualquer dia todo o mar era só dele, sonhava, sonhava muito,

O que é sonhar?

Sonhar…

Sonhar é vestir-se de pássaro, e

Voar.

Sonhar é vestir-se de pássaro e voar sobre a cidade, quando a cidade, toda a cidade, está escondida no cacimbo, sonhar é vestir-se de pássaro e voar em cada manhã que acorda, quando o sono já dorme,

Também posso vestir-me de pássaro e voar?

Sim, claro, claro que sim… e deves.

Um dia, o menino dos calções e das estrelas em papel, um qualquer dia, descobriu uma caixinha muito pequenina, muito

Muito, muito?

Sim… muito pequena, e nesse dia, um qualquer dia, tentou abrir a caixinha, tentou, tentou… até que consegui,

O que tinha a caixinha?

Olha… um coração,

Um coração?

O que é um coração?

Bem…

Para mim, que estudo engenharia mecânica e que nunca serei engenheiro, o coração é uma bomba, apenas isso, uma bomba que não se cansa de trabalhar, noite e dia, dia e noite, até que um dia, qualquer dia, pára. Para outros, o coração é amor,

O menino pegou com muito jeitinho no coração, olhou-o como se olham as flores, com muito cuidado (olha, nunca trates mal as flores)

Porquê?

Porque as flores também sofrem… e precisam de amor e carinho, tal como as estrelas que falavam e que brincavam todas as noites no quarto do menino dos calções e das estrelas em papel,

E enquanto o menino fazia festinhas no coração, este… este sorriu-lhe e disse-lhe

Olha, gosto muito de ti.

O menino não queria acreditar, e desde então, até hoje, o menino tinha sonhos, vestir-se de pássaro e voar…

O menino acreditava, que um dia, um qualquer dia, o mar lhe entraria pela janela, e o levava para muito longe, onde outros meninos, também eles com calções e que tinham estrelas em papel no tecto do quarto e que também elas, como as do outro menino falavam, seria sempre o menino dos calções,

E hoje, ainda é o menino dos calções?

Não, não…

Com os anos, o menino deixou de se vestir de pássaro e de voar…

E a cidade que se escondia dentro do cacimbo?

Está lá…

Está lá, muito longe… tal como as asas do menino dos calções e das estrelas em papel.

Nunca deixes de te vestires de pássaro e voar…

 

 

 

 

Alijó, 29/04/2023

Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 18 de abril de 2023

Janela da minha infância

 Desta janela

Oiço o mar da minha infância

Desta janela oiço os pássaros da minha infância

Desta janela

Brinco com os meninos da minha infância,

 

Através desta janela

Regressam a mim os cheiros

Os sonhos

E todos os cheiros da minha infância…

E desta janela… toco nos papagaios em papel da minha infância.

 

 

Bragança

18/04/2023

Francisco

sexta-feira, 24 de março de 2023

As faúlhas da madrugada

 Caem sobre mim as faúlhas da madrugada

Canfora manhã adormecida

Caem sobre mim as espadas afiadas da solidão…

Enquanto a dor se veste de alegria

 

Esqueleto desventrado

Bebo o cálice do veneno

Bebo as lágrimas da existência

E estar vivo… parece uma cansada tarde junto ao rio

 

Oiço-te entre pedaços de néon

E avenidas sem nome

Avenidas da minha infância

Que apenas dormiam na minha mão

 

Caem sobre mim as metáforas do texto não escrito

Nas imagens de um negro quadro

Pincelado de tristeza

E oiço os gritos da morte

 

E oiço os gritos de alegria da morte

Tão feliz… que ela é

Veste-se de cinzento

E faz-se passear de limousine encarnada

 

Veado selvagem

Pedacinho de mar

Das esplanadas em luar

E volto a ouvir a voz do silêncio

 

E volto a ouvir a voz rouca da escuridão

A noite traz os petroleiros da insónia

A noite traz nas mãos os incêndios nocturnos de uma alma embriagada…

E depois

 

E depois poisa em mim a nuvem doente

Das metástases que apenas um corpo invisível compreende

E felizes aqueles que transportam em si

As metástases do sofrimento

 

Quando esperam no corredor

O regresso da esperança de voarem

Na esperança de uma leveza indefinida

Indiferente à vida

 

Indiferente à dor

Caem sobre mim as faúlhas da madrugada

Canfora manhã adormecida

Quando dos lábios da alvorada

 

Vêm a mim as árvores acorrentadas

Os pássaros voam sem perceberem que lá fora

Uma menina

Come os chocolates da inocência

 

E eu

Aprisionado nuns calções

Procuro as primeiras lágrimas da manhã

Que habitam junto ao capim

 

Abro a janela

Vou à janela

Puxo de um cigarro…

E lanço-me em busca do espelho onde me escondi em criança

 

E estatelo-me no chão frio da infância

Um triciclo com assento em madeira… entre lágrimas e suspiros

E eu acreditando que um dia

Um dia…

 

Qualquer dia

No outro dia

Hoje

Amanhã… o sofrimento se transformará em silêncio.

 

 

 

Alijó, 24/03/2023

Francisco