quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Regresso

 Perguntavam-lhe o que ele queria ser quando fosse grande,

E ele,

Costureiro.

Como ele ainda não sabia o significado de estilista, respondia que queria fazer vestidos para o chapelhudo,

Criança parva, aquela.

Um dia quando acordou, olhou pela janela e decidiu que queria ser guardião de barcos, que felizes eles eram, quando se cruzavam, apitavam e beijavam-se…

O mar agitava-se, às vezes, outras, outras parecia um lençol de linho deitado sobre a tua pele, até que descia a noite e levavam-me para o camarote.

Cheirava a Nafta e eu gostava daquele cheiro, daquele silêncio da meia-sucata, alguns envenenados pelo tempo, ali parados, parados a olharem-me. Deitava-me. De barriga para o ar, olhava o tecto e desenhava círculos de luz com o meu olhar,

E ele nem percebia porque acordavam os mabecos durante a noite a chorar…, quanto mais que ia para Portugal, para a Metrópole. Raios.

E depois de desenhar os pequenos círculos de luz, imaginava a lua a descer, a descer, até poisar sobre a minha cama, pelo óvulo da janela, o mar, o salgado mar das tardes de poesia junto ao rio, enquanto me deixa ir pela preia-mar e só acordava numa qualquer pensão recheada de piolhos e afins,

Criança parva, aquela.

Um dia, qualquer dia, percebeu que valia mais ter ficado no mar.

Era frio. Às vezes, às vezes o cobertor não dava para os três, e mesmo assim, queria fazer vestidos para o chapelhudo, descia a calçada, e virando à direita, aterrava num qualquer aeródromo com cadeiras de ferro, e mesas de ferro. Ficava ali até acordar o dia… até o dia se fartar de mim.

Um dia, qualquer dia, quando se ia deitar descobriu que queria ser o silêncio,

Já sei o que quero ser quando for grande,

Quero ser o silêncio.

E eu expliquei-lhe que nunca poderia ser o silêncio porque ninguém pode ser o silêncio e que o silêncio é quando Deus está… em silêncio.

Não percebeu, o miúdo.

Parvo, este miúdo.

Aos olhos da neve sou um pedaço de alegria embebida em quadradinhos de ausência, já aos olhos dele,

Criança, parva.

Criança, parva.

O rio fartava-se dele, pedia-lhe desculpa, despedia-se e só ao outro dia, por volta das onze é que regressava, eu, lá, esperando que ele voltasse.

Talvez me pagasse o almoço.

Olhava-o, pedia-lhe um cigarro, e conservávamos sobre coisas banais, coisas simples, coisas de mim e de para um rio; o cobertor parecia uma folha de papel vegetal, e sentia os meus ossos em pequenos rangeres como gonzos loucos sitiados e revoltados numa qualquer clinica psiquiátrica.

Durante muito tempo acreditava que tinha deixado lá o sono em detrimento de trazer outras quaisquer bugigangas. Depois um parvalhão ofereceu-me um par de botas, pesadas, pesadíssimas como chumbo. Chorei.

À meia-noite ouvia o sino e acreditava que ao outro dia, um qualquer dia, todos os pássaros seriam livres.

Todos.

Estilista.

Quero ser estilista.

 

 

21/09/2023

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