foto: A&M ART and Photos
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Murmuro-te contra a fina película que separa o dia
da noite, descem os cortinados das clareiras paixões de areia, e um
sorriso de mar acorda nos teus braços, começa brevemente a noite
agreste dos solitários portões de ferro, o jardim dos sentidos, em
pedaços, acorrenta-se ao luar que finge viver nos teus olhos,
percebo, hoje, que nunca exististe, nunca tiveste olhos, nunca
tiveste boca, lábios, abraços para mim, percebo, hoje que nem o teu
nome deixaste ficar no espelho do guarda-fatos cá de casa, penumbra,
compartimentos embaciados quando entra em mim a neblina, os cruzeiros
e os passageiro imaginados pelas tuas mãos, quando inocentemente
pegavas na esferográfica,
Nunca escreveste o meu nome, nunca desenhaste o meu
corpo, nunca sequer escreveste no meu corpo... e que eu adorava-o,
ser escrita pelos teus dedos de cacimbo ao final da tarde, sentir a
Primavera a entranhar-se-me nas coxas como a concha de um molusco
anónimo, sem nome, idade ou profissão, adorava-o, sentir-te em mim,
sem estares sempre do outro lado da fina película de vidro, que
separa o dia, da noite, e deixa ficar um espaço simples e vazio,
oco, obsceno, leviano como os sonhos das árvores do quintal
invisível onde em criança brincaste, gostavas de Favarrel –
Carvalhais – S. Pedro do Sul, abrias a janela do quarto do meio,
chamavam-lhe do meio porque talvez devido a serem três quartos
seguidos, e esse, ficava mesmo no meios dos outros, era também o
mais estreito, e com a paisagem mas bela, deslumbrante...
pegavas na
Em mim, ouvia-se o sino, ouviam-se os pássaros
poisados na ramada das traseiras, ouviam-se os sussurros das espigas
de milho, a dormitarem palavras por entre as frestas da ripas em
madeira que revestiam o canastro, pegavas na esferográfica, e nem um
risco o fazias dentro do meu silêncio peito, poisavas os cotovelos
no parapeito, e ficas-te a imaginar sombras a subirem a montanha que
olhava para ti, como se fossem lírios tímidos, tão tímidos que
cerravam os olhos quando eu, quando eles me olhavam, eu nua, tu,
entre dois vidros, e eles, elas pareciam pombas brancas à procura do
som poético das palavras ainda não escritas, ainda não
prenunciadas, e todo o meu corpo tremia com a tua ausência,
pegavas na esferográfica, inventavas o desejo entre
as paredes pintadas de um azul claro, nelas, imaginava o mar, as
gaivotas, os abraços que me pedias, e porque eu estava prisioneiro
do feitiço da preguiça, não tos dava, desprezava-te como mulher,
via-te como uma criança mimada, uma criança que para mim nunca
cresceu
Cresci, meu amor, sou adulta, cresci como os
eucaliptos da tapada do avô Domingos, cresci e sinto-me e sei, sou
mulher, desejas-me?
que ainda olho para lá do espelho, e vejo-a de voz
simples, e princesa, saltitar entre as coisas espalhadas no passeio
da casa de Carvalhais, hoje penso que ainda és a mesma criança, a
menina, a mimada, aquela que dizia
Amo-te, amo-te tanto, meu querido,
criança, menina, mimada até à ponta dos castanhos
cabelos, e mesmo assim, hoje, vejo-a sentada num banco com ripas de
madeira, aqui, nas Termas de S. Pedro do Sul... ou num qualquer
jardim em Luanda,
Criança.
(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha