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terça-feira, 27 de agosto de 2024

hoje, não tenho sono. enquanto saboreias o sono nos lençóis da infinidade claridade

da primeira lágrima da manhã, hoje,

não tenho sono. leio um poema de louise gluck

e percebo que nunca serei um poeta.

 

o muito que eu seja, não passarei de um charlatão, um tipo desajeitado, que procura o não procurado,

a cada estrela que morre.

e mesmo assim,

querem que eu ainda seja menos daquilo que eu sou, daquilo que eu fui.

 

carvalhais, já não está. o avô domingos, esse, há muito que deixou de estar.

o meu pai, também partiu numa noite de verão,

e a minha mãe,

voou em direcção ao nada,

levando-me no seu coração.

 

estou só. eu e tu,

já nada me dá prazer, nada. quase que nem os livros. leio apenas para me manter vivo, leio apenas para que eu possa respirar, e o meu corpo

sitiado numa pequena sílaba,

sinta o mar.

 

das poucas coisas que me dão prazer;

pegar na tua mão e acariciar a tua coxa,

e fumar, não ter prazer

é o mais provável de viver. e mesmo assim

 

ainda tenho prazer em escrever.


terça-feira, 20 de dezembro de 2022

A Janela

(ao meu avô Domingos)

 

 

Deixaste fugir

Os espantalhos dos campos de milho de Carvalhais

Fumaste todos os cigarros

Dos espantalhos dos campos de milho de Carvalhais

Ias à janela

Beijavas a lua

E voavas até ao apeadeiro mais próximo.

 

Cresceste

Fizeste-te louco

Caminhaste pelas calçadas e ruelas

De uma cidade morta

Com cheiro a incenso

E a sexo

E a merda.

 

Pensavas que os campos de milho de Carvalhais

Eram o mar disfarçado de pedra-pomes

Mas os campos de milho de Carvalhais

Eram canções de vento

Palavras enamoradas

Pensavas que os campos de milho de Carvalhais

Pertenciam às esplanadas

Onde fumavas cigarros de prata

Acepipes

E pequenas larvas.

 

Mas daquela janela

De onde conseguias observar a torre da Igreja

E todos os cacilheiros com destino a Santa Cruz da Trapa

Havia uma ponte invisível

Com odor a naftalina

E lábios de saudade.

 

Cansavas-te dos campos de milho de Carvalhais

Galgavas as sombras

E as ribeiras de pólen

Dos campos de milho de Carvalhais

E à janela

Iluminada pelo silêncio da noite

Lá estava ele o coitado do espantalho

Com mãos de vidro

E pernas de vergonha…

 

Não tenhas medo

Meu querido irmão

Das infinitas palavras que habitam o dicionário

Não tenhas medo

Meu grande irmão

Do sono

Da paixão

E da morte,

 

Tudo faz parte

Tudo é vida

(Tudo é fado)

E umas vezes é sorte.

 

Escrevia cartas ao sono

O garoto mimado

Como se o sono fosse um gajo porreiro

Mas o sono

Que tal como os campos de Carvalhais

É um grande filho da puta

Embriaga-se durante a noite

E durante o dia

Vai à janela de Carvalhais

Puxa de um cigarro

E em silêncio

Apanha o primeiro cacilheiro com direcção a Santa Cruz da Trapa…

 

Os livros comiam-me

(e se ainda fossem gajas!)

Agora livros…

 

Quem quer um gajo com livros

Com discos

Com isto e aqueloutro

Sem tudo

Com nada

Ausente

Astronauta

Cançonetista

E nas horas vagas

Trapezista de circo ambulante

E stripper.

 

Íamos à Cárcoda

Sentávamo-nos sobre as pedras

Conversávamos de gajas

E até me queria impingir uma gordinha

Com sotaque de futura empresária…

Não gostei da ideia

(não por a moçoila ser gordinha, mas não nasci para ser capitalista)

E vender artesanato

Pior ainda…

Não nasci para nada.

 

Pelas seis horas da madrugada

A janela

Aos poucos

Fechava-se como se tratasse de um caracol

E escondia-se dentro do quarto,

 

E da algibeira

Sem perceber porque tinha lá pedaços de néon

E um cachecol das estrelas em papel

Acordavam as espigas de milho dos campos de Carvalhais,

 

E o silêncio era tal…

Que ouvíamos a respiração ofegante da tristeza.

 

 

 

 

 

 

 

Alijó, 20/12/2022

Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Carta de um pastor (poeta) às suas quatro ovelhas

 Minhas queridas ovelhas,

 

Lanço ao fogo estas minhas pobres palavras com o sofrimento alicerçado ao peito, que estas, se transformem em cinza, e vós, minhas queridas, nunca saibam o que vos escrevo.

Ontem, pela noite adentro, quase às três horas da madrugada, peguei num pequeno livro, abri-o e no final da página li – o leão é o Rei da selva. (de mão trémula, senti o medo disfarçado de luz)

Puxei de um cigarro, e sentado numa cadeira de vime, de perna cruzada, e de janela aberta com fotografia para o quinteiro, ouvi a (estrelada) em conversa cavaqueira com a ovelha da minha vizinha, a (tulipa), e a minha vizinha, a Joaninha, ao telefone com o namorado ou com a namorada ou com o Presidente Associação de Musas Inspiradoras (AMI), o que falavam, não o sei, mas pelo ar de exaltação dela, tudo se resumia a fotografias tiradas junto ao rio.

(o rio, sem saber porque choravam as ovelhas, também ele, desatou a chorar)

E ao longe, a ponte abraçada à neblina que a manhã semeava na sombra dos braços do luar, começava a erguer-se o silêncio que regressava da caçada da noite anterior.

Pela aparência do silêncio,

Caça nenhuma.

A (estrelada), que uma certa tarde foi atingida com uma pedra na pata, pedra lançada pelo rapazote Serafim, um rapaz, comunicador e com estrutura de artista, e já farto de levar a (estrelada) para o pasto; pimba. Uma pedra certeira na pata e acabaram-se as tardes no pasto. Esperto, este artista, Serafim, poeta, fadista, barbeiro, agricultor e sedutor.

À noite, enquanto a minha vizinha se encontrava na escuridão com o namorado, ou com a namorada ou com o Presidente da (AMI), a ovelha (tulipa), saltava do terceiro esquerdo e num ápice, fazia-se passear na minha varanda em pequenas provocações para fazer crer à minha ovelha (estrelada) a boa forma física com que estava; coisas de ovelhas. Vaidosas.

Serafim desconhecia que no futuro iria ter um sobrinho poeta e pastor de quatro ovelhas; mas também ele desconhecia que o leão era o Rei da Selva, tão pouco desconhecia onde encontrar a selva, e apenas sabia apontar no mapa a sua localização. Um dia, descobriu a paixão.

E sabem, minhas queridas, dá sempre jeito um poeta ser pastor, pois assim, ou talvez não, ou talvez sim, oiço do AL Berto que “o mar entra pela janela e que o soldado falha o degrau do eléctrico que vai para a Ajuda, e não sabe se ele fode ou se ele ajuda”,

E da Ajuda,

Uma carta de amor para a Província.

 

Minhas queridas quatro ovelhas,

 

Espero que estejam bem, quanto a mim, vou andando, uns dias bem, outros menos bem, e outros…

O soldado dispara a bala na cabeça.

Dizem que foi por amor.

Ignora o silêncio, escreve luar na vidraça, e deita-se sobre a cama à espera que o sabor do uísque desapareça da boca e depois, após algumas horas de sono, sair em busca de engate.

A loucura dos pássaros. A (estrelada) desmaiou quando percebeu que eu era um favo de mel e que dormia junto à Torre de Belém e que era procurado por homens, homens em busca de sexo; eu, apressadamente, fugia. Em passo apressado, em corrida desmedida que apenas a (estrelada) consegui imitar, até que entrava num bar junto ao Museu dos Coches e uma amiga me acolhia na casa de banho. Depois, voltava novamente a vaguear pela cidade.

Sabes, minhas queridas…

Deixei há muito tempo de ter notícias do Serafim, e agora que o recordo, com ternura e com paixão, de sobrinho para tio, digo-vos que o meu tio artista ainda hoje me escreve cartas; e actualmente, apenas ele me escreve e um qualquer parvalhão que deixa comentários no meu blog, que provavelmente não percebe de poesia, o que é a paixão e a insónia e que teima que eu, o poeta e pastor de quatro ovelhas, o traí. O sonho tomou conta dele.

Os ciúmes das minhas ovelhas quando vêem a ovelha da minha vizinha (tulipa) em passeios nada apressados na minha varanda. E se a deixassem, acredito que voava.

Voava como eu voei sobre a cidade que acabava de acordar, e quando metia a mão na algibeira, um pedaço do mar salta e começava a descer a calçada.

A Ajuda – quanto ao eléctrico, já não me lembro, mas que “o soldado falha o degrau do eléctrico que vai para a Ajuda, e não sabe se ele fode ou se ele ajuda”, esse sim, nem fode nem ajuda.

Ontem, depois de uma sessão de poesia, e depois de muitos uísques e algumas radiografias de sono, entramos num bar, no Bairro Alto, sentamo-nos, pedimos uísque e, homens beijavam-se apaixonadamente. Puxei de um cigarro e resolvi, quando regressasse ao quarto escrever-vos; e cá estou eu, minhas queridas. Ausente numa Lisboa que sempre me pertenceu e que hoje é apenas um sonho, um comboio para Cais do Sodré e pouco mais…

O suor entranhava-se no corpo como o cacimbo de outras latitudes, e uma abelha começou a poisar no meu favo de mel.

Afinal, não é o leão o Rei da selva.

Os Reis, os Reis são os papagaios em papel que a minha mãe construía e que hoje guarda junto ao peito, para quando tiver saudades minhas, recordar-me.

O poeta, pastor de um rebanho de quatro ovelhas, hoje, escreve cartas aos olhos do mar.

Até breve, minhas queridas ovelhas!

 

 

 

 

 

Alijó, 30/11/2022

Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

O voo das frias e pobres e solitárias pedras cinzentas

 Um quadro suspenso na sala nua, num dos cantos, uma poltrona pobre a fria alimentava a insónia que todas as noites se abraçava à janela virada para um escuro quelho, nesse quelho, uma das casas pobres que por ali brincava, imaginava o sol poisado sobre a acácia do senhor Augusto, e debaixo da acácia a menina Florbela lia o pequeno caderninho que o José lhe tinha oferecido pelo Natal do ano anterior.

Florbela odiava o Natal.

Ponto e nada de discussões.

O senhor Augusto acreditava que as pedras cinzentas voavam como voam as gaivotas, como tal, todas as noites, depois de vários dias a construir uma rampa de lançamento, entretinha-se durante horas a ajudar as pedras cinzentas a levantar voo; algumas caiam sobre a acácia onde Florbela, nas tardes felizes, lia o pequeno caderninho que José numa noite de angustia tinha escrito, e em vez de ter sepultado o caderninho junto à acácia, ofereceu-o à doce e querida menina Florbela.

A acácia andava sempre tristinha, quanto à menina e querida e doce Florbela, tinha dias; uns felizes, outros tristes e outros saltava de galho em galho na busca do melhor poema.

Quanto ao caderninho, além de palavras, habitavam nele pequenos rabiscos que faziam recordar os campos de milho de Carvalhais, onde de janela aberta, José escrevia desalmadamente e apressadamente com medo que fosse esta a sua última noite de insónia.

Bom dia, senhor António.

Bom dia, menina e querida e doce menina Florbela.

Hoje não foi ao mar?

Não menina, hoje não fui.

Os barcos de papel estavam estacionados junto à porta da sala, e não acreditando no que assistia, o senhor Augusto, que momentos antes a menina e querida e doce Florbela tinha apelidado de António, observava o José em amena cavaqueira com os barcos de papel e o quadro que estava suspenso na parede fria e nua, ou seria a velha poltrona que era fria e nua?

E o senhor António cismava que todas as noites, enquanto guardava a acácia para não mudar de cor, as estrelas poisavam junto ao mar, depois, tal como as pedras cinzentas voavam como as gaivotas em direcção aos campos de milho de Carvalhais, onde o franganote José, à janela do quarto do meio, enquanto fumava, imaginava as personagens do seu pequeno caderninho em brincadeiras que quase pareciam os meninos e meninas quando saiam da velha escola junto à igreja.

E ela a dar-lhe com o senhor António.

José não imaginava que a menina e doce e querida Florbela odiava o Natal, tão pouco que esta trocava o nome do senhor Augusto por António, e que este último, acendia os cigarros com as grossas lentes que transportava na cara.

O dia lamentava-se de ter acordado, e a doce e querida e menina Florbela, sempre que se aproximava o Natal, entrava em pânico, desmaiava e só acordava em meados de Janeiro; o senhor António deixou de olhar as acácias e o senhor Augusto que já foi António e hoje é José, desenhava círculos de luz com olhos verdes nas paredes invisíveis do beijo apaixonado que de vez em quando se abraçavam aos lábios da menina e querida e doce Florbela;

Sinto a tua falta, querido José!

Minha ou do caderninho?

Bom dia, senhor António.

Bom dia, menina e querida e doce menina Florbela.

Hoje não foi ao mar?

Não menina, hoje não fui.

E a ira era tanta que um dia, de cigarro na boca, pulou a janela do quarto do meio, e já estatelado nos campos de milho de Carvalhais, finalmente adormeceu.

Na sala, a velha poltrona gemia de sono e a menina e querida e doce Florbela, de olhos cerrados, imaginava o mar deitado no colo, depois, pegava na mão trémula do querido José, este erguia-se dos campos de milho de Carvalhais e dizia-lhe:

Querido, posso pedir-te um desejo?

Sim, claro.

Tira o mar que trazes na algibeira e oferece-mo, como me ofereceste o caderninho.

E o José em modos um pouco rudes, mete a mão na algibeira, mas em vez de tirar o mar, tirou o poema que tinha escrito aos filhos do mar e aos irmãos do silêncio: a saudade.

E o senhor António cansou-se de guardar a acácia e de ajudar as pedras cinzentas a voar.

Hoje, dorme sobre uma secretária em madeira antiga na ânsia que alguém o olhe ou lhe diga ao menos,

Bom dia, senhor António.

Bom dia, menina e querida e doce menina Florbela.

Hoje não foi ao mar?

Não menina e doce e querida Florbela, hoje não fui.

E quando o José se ergueu dos campos de milho de Carvalhais já era dia, depois o dia trouxe a noite, e a noite, transformou o senhor António em senhor Augusto…

Como os barcos em papel estacionados junto à sala; uma tragédia, menina e doce e querida Florbela, uma grande tragédia o que aconteceu com o nosso querido José.

É verdade, senhor António.

Hoje não foi ao mar?

 

 

 

Alijó, 04/11/2022

Francisco Luís Fontinha

(ficção)

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

O crucifixo das lágrimas

 Quando acordavam, o crucifixo suspenso na parede, que tinha como única finalidade, esconder as fendas que abundavam no gesso em ruínas, lacrimejava todas as palavras ouvidas durante a noite.

Esta noite devíamos ter conversado muito, ele não pára de lançar palavras contra os tristes lençóis e cobertores que sobre nós poisaram, lamentava-se ela enquanto ele escondia o olhar no cortinado, velho, que mais parecia um campo de milho quando maduro,

E claro, vinha-me à memória os campos de milho de Carvalhais, da amarela, do velhinho que contava estórias mirabolantes sobre a primeira grande guerra, dos uivos do carro de bois e das manias que eu tinha de andar sempre só; como as cabras em pleno monte.

Descia a noite e quando o Branco ligava o moinho ecléctico, modernices, pois tinham um movido a água, enquanto o cereal dançava, a lâmpada do meu quarto, o quarto do meio, começava a cambalear, até que momentos depois, desmaiava por completo e só depois do tio Branco desligar o dito é que voltava a ter luz para ler os poemas do Pessoa; e quando a noite já levantava voo sobre o sino de Carvalhais é que eu começava a escrever a um remetente inventado, pois quase nunca tive ninguém a quem escrever, a não ser, no serviço militar, a cravar dinheiro à minha mãe. Um dia perguntou-me quantas vezes eu era assaltado por semana, pois a razão de eu pedir dinheiro era sempre a mesma. Mãe, fui assaltado.

Conversamos muito, disse eu. Pois também estava de acordo com ela, à quantidade de palavras que o crucifixo lacrimejava dava para perceber que tinham sido muitas. Ergui-me, procurei um cigarro sobre a mesinha-de-cabeceira, e comecei a vomitar sinais de fumo à janela com fotografia para o mar. Do segundo andar via uma réstia de mar, a sombra de um barco e o uivo de uma gaivota, nada mais, em Carvalhais, já noite dentro, ele escrevia em pequenos papeis que ainda hoje continuam acorrentados aos quatro cantos de cartão, onde poisam, e quase nunca saem para passear no jardim ou descer a calçada com acesso ao rio.

Quando ele olha em direcção ao leito dos lençóis e cobertores poeirentos, ela já dormia novamente, e ele, suspenso entre dois segundos, olhava-a, olhava o crucifixo que não parava de lacrimejar as ditas palavras nocturnas do desejo e a velha espingarda que apenas disparava às terças e quintas, durante a tarde; não ligou e esperou que o cigarro terminasse o seu prazer, isto é, foder um gajo que acaba de acordar. E diga-se, sou fodido por estes gajos há mais de trinta anos.

A noite estava calma. As palavras fluíam nas rasuradas folhas que encontrei numa qualquer gaveta do avô Domingos, naquela noite não me apetecia escrever no caderno, e os sons da noite entravam-me quarto adentro; ouviam-se as lágrimas das sombras que eu sabia que habitavam no campo de milho semeado junto à janela. Deixei de ouvir o avô velhote, um dia finou-se.

Peguei na espingarda, e percebi que ela jamais poderia acordar, depois soube que tinha ido para outro aposento, mais limpo, onde não havia crucifixos a tapar frestas e dos papeis escritos por mim, apenas algumas cinzas restavam junto ao cinzeiro em granito que um grande amigo me tinha oferecido. Nunca mais fui assaltado.

O tio Serafim animava a adega. Artista conceituado por aquelas bandas, brindava-nos com o vinho morangueiro, confesso que nunca o bebi, porque detesto vinho, mas fazia-me acompanhar por umas Cucas, o famoso presunto, a linguiça, e claro, o melhor pão de milho que comi até hoje; o pão de milho da tia clementina.

O Serafim além de cantar o fado, ser barbeiro nas horas vagas, cuidar das terras e do gado na companhia da tia Clementina, ainda na juventude, tinha feito crer a muita gente que tinha regressado do Brasil, sem que nunca tenha saído do Bairro Alto em Lisboa. Um verdadeiro artista. Um homem galante, de fato, bengala e nunca deixava de se acompanhar pelo famoso palhinhas e do respectivo sotaque.

E Carvalhais, aos poucos, começou a ficar sem graça. Uns foram para ali, outros foram para acolá, ela começou a ler umas coisas de AL Berto, e basicamente, todos eles mortos, desaparecidos do combate da vida.

Às vezes, durante a noite, oiço o velho moinho do tio Serafim, vou à janela e chegam a mim as silenciadas sombras que brincam no campo de milho, mesmo por baixo dos meus pés. Quanto à espingarda, também ela, morreu numa manhã de neblina…

Que assim seja.

 

 

 

Alijó, 10/10/2022

Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Ilusões de Amor

Francisco Luís Fontinha

Lisboa, 87/88
Alijó / S. Pedro do Sul – Carvalhais, 89
Parte I
Pensamentos de um homem morto
 1
Hoje pude olhar o nascer do sol!
Seus raios são luz que iluminam a esperança,
Não de viver, mas de sonhar.
Tudo o que me rodeia, acorda de um sonho adormecido,
A Primavera finalmente encontrou o renascer
De um amor incompreendido.
Tenho medo…, não de morrer, mas… de sonhar!
2
Estou só e todo o silêncio é pouco.
Entre estas paredes de quem sou prisioneiro,
Recordo-me dos mais loucos e distantes pensamentos,
As pedras que me escutam, olham o transformar
Da minha sombra na escuridão, e que é testemunha
Do meu processo de destruição…
O insignificante a que pertence o meu pensamento,
De nada compreende o meu passado…
3
Em cada segundo de silêncio, o meu pobre corpo
Descansa entre o sonho adormecido,
E todo o meu sofrimento é constante,
Vertical, horizontal, é dor,
E tu nunca compreendeste o que me espera,
Eles dizem-me que o fim está próximo,
Não da morte,
Mas de tudo aquilo que não compreendo…
4
As palavras,
Gritam-me constantemente o silêncio da morte.
A alegria que existe dentro de mim
Não é real, é apenas uma vontade sem vontade
De viver um futuro denegrido, hipotecado ao diabo.
A tua sombra faz com que o meu caminho
Seja projectado num passado distante da minha verdade,
E o teu futuro encalha no meu presente.
Ao longe, olho a tua sombra, e o teu sorriso é lindo!
5
Adeus liberdade solitária!
Tu compreendes-me?
É essa a razão que faz o meu destino
Parecer e ser incompreendido.
Há momentos e não momentos que imagino a separação,
E outros, fico só e o meu corpo adormece.
Em breve vou morrer…, e então serei feliz!
6
Tudo parece impossível!
Viver, sonhar e amar…
Até adormecer é impossível.
Serei diferente?
Olho na luz que me ilumina, e duvido da sua presença,
E da minha existência.
Não compreendo a verdade,
E permaneço rebelde além da destruição…, fico contente.
7
A alma que chora no meu infinito,
Faz de mim solitário,
E o meu coração esconde-se no desconhecido.
No presente, não penso o futuro,
E..., momentaneamente esqueço o passado,
Mas tudo parece impossível…
Não me preocupo quem sou,
E gostava de saber quem serei mais tarde…

Parte II
O acordar de uma mulher
1
Vou caminhando rua acima
Fugindo do meu ideal,
Ao longe recordo o mar,
E compreendo não ser eu real.

Seu olhar olha-me constantemente
E recordo minha sombra,
E um dia…, se voltares a ser minha amante,
Certamente não serei feliz como a pomba.

Maldita escuridão!
Serei eu um sonhador?
E pergunto ao meu coração
A razão de tanta dor…
2
Estou perdido
Numa canção onde posso recordar-te,
E não imaginas o que tenho sofrido
Não ser eu capaz de amar-te.

Gostava de dizer-te alguma coisa…
E por minha culpa
O sol no horizonte pousa,
E transporta-me para tão grande luta.

Conquistei o teu sofrimento
Numa noite em Setembro,
Com os teus cabelos soltos no vento,
Que já esqueci e não me lembro.
3
As folhas caídas
Repousam eternamente neste lugar,
Olho ao longe, as árvores despidas
À espera de um novo luar.
Sozinho e triste
Caminho sobre casas ruídas,
Mas…, o meu amor não resiste
Às folhas caídas.
4
Alem recordo o teu rosto
Repartido pelos movimentos vividos,
Brilhante como Sol-Posto
Imagino horizontes denegridos…
Alem ouço a tua voz
Que me tira as forças para continuar;
E alguém chama por nós
Na razão de amar.
Alem recordo o teu sorriso
Tal como se tratasse de uma estrela cintilante,
Alguém perde o juízo,
E eu, eternamente,
Adormeço no mar…
5
As flores acordam ao amanhecer
Caminhando em distantes mágoas,
Em pensamentos que me fazem reviver
A pureza de suas águas.

Recordarei sempre o teu olhar
Tal como o teu corpo,
Sabendo que não te posso amar
Porque brevemente estarei morto.

Sofro por tua causa
E desconheço se vou resistir;
Em mim apodera-se uma pausa
E logo me leva a partir.
6
As estrelas deixaram de brilhar
E o mar fica distante!
A noite, transparente, parece reconhecer
Sombras encalhadas na ruela,
E ao fundo, a luz cansada de acender,
Apresenta-me uma mulher muito bela.
As estrelas deixaram de brilhar
E o mar fica distante!
Olhei o meu amor
Escondido na cabana,
Escondia sua voz no tambor
E iluminava objectos de porcelana.
As estrelas deixaram de brilhar
E o mar fica distante!
O caos do meu pensamento
Transporta-me para o final,
E todo o meu sofrimento
Esconde-se como um animal.
As estrelas deixaram de brilhar
E o mar fica distante!



Para publicação

domingo, 19 de abril de 2015

Sorriso de granito


A casa amarela

Dos segredos invisíveis

A impossibilidade de amar

Quando o vulcão da esperança

Em línguas de fogo

A aventura de cessar

Todos os prazeres da vida

Deixar de viver

Meu amor

Estando vivo

Deixarei de pertencer aos sábados melancólicos

Se me abraçares no espelho da paixão

 

Deixei de perceber o amor

E perdi-me no tempo

Não sei o que é amar

Quando amado fui

E amado não serei mais

As mãos

As tuas mãos pinceladas no meu corpo

 A atmosfera embriagada das cancelas do amanhecer

O amor imperfeito

Ingénuo

Ambíguo…

Amanhã

 

Meu amor

Domingo

Sem sentido

Perdido

Eu

Nas tuas sombras de incenso

Pego nas tuas asas de papel

Escrevo uma mensagem

E voas

Como corpos em cinza

Levados pelo vento

Das tristes insígnias

 

Tenho medo

Meu amor

De amar-te

Quando percebi

Que não sei amar

Sou um imbecil

Um… um vulto de nada

À janela

Olhando a tua alegre beleza

Na escondida esplanada

Sentados

Brincamos às escondidas

 

Eu escondo-me

Tu escondes-te

… e ele

Eu

Escondido no teu peito

A masturbada cintilação

Das palavras em flor

Os livros comprados

Meu amor

As palavras penhoradas

Por ti

Quando a minha vida

 

Valia quase nada

Não tenho preço

Nem idade

Nem fotografia

Sou um triângulo apaixonado

Pelas janelas das equações diferenciais

O caderno

Em quadrados

O teu corpo

O meu corpo

Em pedaços de rectas

Sem destino

 

Tu

Ao acordar

A carta de despedida

Envidada

Do cansaço

Atravessava a eira

Sentava-me

Meu amor

Ouvia o sino de Carvalhais

Meu amor

Oito horas da noite

Vejo-a

 

Sinto-a

Quando a janela em liberdade

Me trazia o som das cigarras

Pensava em ti

Pensava na Teoria da Relatividade

Ai…

Meu amor

A saudade

Caminhava sobre o teu corpo de gesso

A iluminação da alegria

Hoje

Não

 

Meu amor

Hoje eu não te mereço…

Tenho em mim a tua morte

Sílaba apaixonada

Das pedreiras abandonadas

Vou

Não regresso

Meu amor

Aos teus braços

Sei que a noite me mantém vivo

Porque cerro os olhos

Pego numa tela vazia

 

E desenho o teu sorriso de granito…

 

Francisco Luís Fontinha – Alijó

Domingo, 19 de Abril de 2015

terça-feira, 31 de março de 2015

Entre beijos e poeira…


As línguas abraçadas no céu-da-boca

A chuva argamassada contra o silêncio nocturno

Em redor de dois corpos invisíveis

O prazer nas palavras

Saltitam enquanto folheamos um livro sofrido

Em lágrimas

Da morte inanimada

O Sol embrulhado dentro de quatro paredes

O tecto desce

Desce…

E tomba no pavimento lamacento de um dos corpos

O fim da tarde evapora-se

Nos lábios de um cigarro

Negro

Noite

Sombrio

Como os pássaros da minha aldeia

Subo aos teus cabelos

E sento-me nas avenidas envernizadas da madrugada

A cidade cresce

Os automóveis enfurecidos

Em raiva

Como os cães selvagens

Montanha abaixo

A ribeira espera-os

Como visitantes insignificantes

O sexo suspenso nos cortinados do desejo

Os gemidos

E as sílabas da saudade

Há no teu corpo

Vapor de água

E cristais de prata

A imagem das tuas coxas em finas lâminas de desassossego

O mar

O mar dentro de ti

Construindo marés de esferovite

E alguns sorrisos apaixonados pelo sono

Perdi-me neste tempo infinito

Quando ainda existiam equações de areia

No quadriculado olhar

Hoje

Sou uma caneta avariada

Que deixou de escrever palavras

Que…

Que tem uma lápide sobre a secretária

E uma fotografia

Húmidas vogais

Agarradas às escadas da paixão

Sem saberem que a morte

Não é a morte

Que o medo

Não é… o medo

Voar

Sofrer enquanto caminho sobre um arame

(sempre quis ser trapezista)

Artista de circo

Palhaço

Andante…

Sem nome

Quando acordo e sinto que estou vivo

A praia parece a eira de Carvalhais

Graníticas espigas de cio

Nas frestas do sonho

Oiço o sino da Igreja

Quase a desfalecer

Tensão alta

(dizem)

E nos teus cabelos

As luas de Saturno

Envergonhadas

E Titã…

Entre beijos e poeira…

 

Francisco Luís Fontinha – Alijó

Terça-feira, 31 de Março de 2015