domingo, 14 de abril de 2024
terça-feira, 31 de outubro de 2023
Poeta
Podia ser muita coisa
Podia ser tudo
Prefiro ser eu,
Eu.
Podia ser poeta
Podia ser tantos poemas
Podia ser poeta, mas acabei
por me ficar em Lanceiros dois,
Calçada da Ajuda,
Belém.
Podia ser o comboio,
Um popó topo de gama,
Podia ser uma bicicleta,
triciclo com assento em madeira,
Podia,
Mas prefiro ser livro,
Prefiro ser lido,
folheado,
Como se folheiam os
livros,
Como se folheiam os
poetas enforcados.
Podia ser muita coisa
Podia ser tudo
Prefiro ser eu,
Eu.
Eu, o mais ínfimo
pigmento de tinta,
Eu, o mais pequenino de
todos os poemas pequeninos que se escreveram até hoje…
Num livro, pequenino,
Podia ser muita coisa
Podia ser tudo,
Prefiro ser eu,
O louco travestido de
Primavera,
O louco das finas tardes
junto ao rio,
Zarpavam os barcos,
E eu, e eu podia ser
marinheiro, comandante de navio,
Telefonista de um grande
petroleiro,
Podia,
Eu.
Podia ser tanta coisa…
Tanta coisa que havia
para eu ser…
E fiquei-me pelo poeta
das noites embriagadas, das noites envenenadas pelo silêncio da espuma-estrela,
ou da estrela-espuma…, que habitam a noite, que se vestem de noite,
Se cansam do dia, das
marés, e fiquei-me pelo poeta desassossegado, em busca do mar, em busca da
terra, queimada, e tanta coisa que havia para eu ser…
31/10/2023
terça-feira, 8 de agosto de 2023
Árvore
Fui Rei por um dia
Miserável
Por muitos mais
Saltei rios
Roubei jornais
Escrevi poesia
Vesti-me de ponte
Pincelei o olhar de
silêncio
Fui Rei
Fui árvore prisioneira daquele
monte
E no monte
Semeei
Palavras
E vinhedos de sono
Fui Mordomo
Artista poeta
Fui Rei
Fui cama
Rua
Sem janela
Poema
Fui Rei Lua
E tantas vezes
Lua
Nua
Sobre o mar
Fui Rei por um dia
Miserável
Por muitos mais
Saltei rios
Desenhei nas tuas mãos…
postais
Palavras em saudade
Palavras
Que as madrugadas
Lançam contra os muros da
infância,
Fui Rei
Fui o Leão da selva
Fui insultado por um
imbecil,
Fui Rei por um dia
Miserável
Por muitos mais
Fui poema
Sou poesia
Sou manhã vestida de Rei
Ou noite
Sem o dia
Disfarçado de mendigo
E sem-abrigo
Tão feliz
Tão contente,
Fui Rei
Fui poeta…
E fui teu amante.
08/08/2023
terça-feira, 25 de julho de 2023
Partida do Eduardo
Acabo agora de saber do falecimento de Eduardo Pitta, escritor, poeta, critico e ensaísta.
Ao Jorge e família os
meus sentidos pêsames pela perda.
Um dia, um dia lá estaremos
todos…
quinta-feira, 6 de julho de 2023
Viagem
Por este mar adentro
Perfeito silêncio em
palavra
No sorriso da gente que
trabalha
E chora
Quando regressa a noite,
E na noite
Suicida-se o poeta em
viagem.
Por este mar
Cansado do meu corpo
emagrecido,
Cansado das minhas mãos,
Do meu sorriso sofrido…
Deste mar que me vai
transportar
Para o livro incendiado,
Quando acordar a manhã…
No olhar do poeta
amaldiçoado.
Por este mar adentro
O mar simplificado com barcos
em papel
Com nuvens de alecrim
doirado…
Deste mar cansado,
Como eu,
Em viagem…
Este pobre poeta
alucinado.
06/07/2023
Francisco
domingo, 2 de julho de 2023
Santa Apolónia
O comboio
Com destino a Santa
Apolónia…
Dará entrada na linha dois
dentro de momentos,
Uma Donzela
De cabelo pincelado de
vento
Pergunta-me se tenho
isqueiro…
Digo-lhe que não fumo
Que nunca fumei…
Nem fumarei
Coisas estranhas,
Ela diz-me que para ter
isqueiro
Não preciso de fumar
Porque posso transportar
na algibeira uma esferográfica…
E nem saber escrever,
(pensei: ela é muito
inteligente)
Passeio-me pela rua Augusta
Com um par de asas…
E que nem voar sei,
Pergunta-me ela…
O que são as pirâmides da
insónia…
Respondo-lhe que nem sei
o que são pirâmides…
Quanto mais essas coisas
da insónia,
Claro que não
Voar dá muito trabalho.
Um gato aproxima-se
Dá-me um beijo na face
esquerda
E segreda-me que está loucamente
apaixonado por mim
(e eu que odeio gatos e
os gatos também me odeiam)
Mulheres vendem o corpo a
retalho
Por catálogo
Bebem uísque de Sacavém…
E dizem-se felizes
E dizem-se…
Tanto como eu…
Junto ao rio há um barco
em apuros
Os meus cigarros parecem
lareiras depois da meia-noite
E do livro que poisa na
minha secretária…
Oiço a voz do silêncio,
Senhores passageiros
O comboio com destino a Santa
Apolónia
Dará entrada na linha
dois…
E partirá
Se chegar a partir…
Às dezanove horas e dois
minutos,
Hesito
Ela hesita
Fico na dúvida se sigo
destino
Ou se eu e ela desertamos…
E vamos apanhar o comboio
Com destino a uma pensão
barata…
Que nas paredes em gesso
Tem frestas e um pequeno crucifixo,
E eu detesto
Odeio
Escrever o mais lindo
poema de amor
No corpo de uma
desconhecida
E ter Cristo suspenso num
pedaço em madeira…
A olhar-me,
Fico sem jeito.
É como estar a fazer amor
com a vizinha…
E o marido a olhar-me,
Poisei a esferográfica
Peguei num lenço em papel…
E aprisionei os olhos de
Cristo,
Na tarde seguinte
O saudoso guarda Saraiva
Vai a minha casa
Vai a minha casa e
pergunta à minha mãe se eu estou…
Claro que não
Senhor Saraiva…
Ele nem sabe voar…
Ele foi para a tropa!
O saudoso guarda Saraiva
Um pouco comovido
Diz à minha mãe que eu
ainda não tinha aparecido no quartel…
Ela fica aflita
Depois mais calma…
E responde-lhe…
Talvez ele fosse voar nos
braços de alguém…
Talvez ele esteja a rezar
A Cristo…
Ou a escrever um poema
nos lábios da noite
Numa qualquer parede
De uma pensão de merda
Onde só pernoitam putas
E gajos a vender o corpo,
Do Tejo
E da Calçada da Ajuda
Muitas más notícias…
Ficaria de castigo duas
semanas
Ausente de casa,
Fiquei feliz,
Muito feliz…
Entro no carro
Coloco o sinto de
segurança…
E logo após este começar
em marcha lenta
De Cais do Sodré… para
Santa Apolónia
Começo a sentir a mão do
oficial graduado…
A acariciar-me
E repentinamente
Fiquei na dúvida
Se lhe partia os cornos
Ou abria a porta do carro
E me lançava contra o Tejo…
E que dia de merda
Pensava eu
Junto ao Tejo…
As doze badalas nascem no
quinto esquerdo
São duas da madrugada no
rés-do-chão direito
A temperatura está
agradável…
O comboio com destino a
Santa Apolónia está quase de partida…
Na linha dois
E no duzentos e doze
Cristo consegue
finalmente libertar uma das mãos
Retira o lenço em papel
que lhe aprisionava o olhar
E em gritos histéricos…
TENS UM ERRO DE
ORTOGRAFIA NA MAMA ESQUERDA DA TUA DESCONHECIDA…
Fiquei sem jeito
Um pouco envergonhado
E cuidadosamente pego na minha
mão direita com a ajuda da minha mão esquerda…
E que sim…
Em vez de escrever
desejo-te
Escrevi “desejou-te”
Ainda mais envergonhado
fiquei,
Enquanto o comboio
Aos pucos
Despede-se de nós…
E quando acorda a manhã…
Estava só…
A desconhecida tinha ido
apanhar o comboio das oito da manhã…
Para Santa Apolónia.
02/07/2023
Francisco Luís Fontinha
sábado, 17 de junho de 2023
Rua
Há uma rua sem saída
Na esquina da puta da
minha vida
É uma rua que me come
Que não dorme
E me fode
Na esquina da puta da
minha vida.
Há na puta da esquina da
minha vida
Uma vida com uma rua sem
saída
Da saída da puta desta
vida.
Há uma rua sem saída
Na saída mais fácil desta
vida…
Da esquina da puta
Da puta minha vida.
Há uma rua
Uma rua sem saída
Que não dorme
Que me come
Que me fode…
Do poeta sem vida
Com a puta de uma esquina
Da puta sua vida
Na vida deste poeta sem
nome.
Francisco
17/06/2023
quarta-feira, 21 de dezembro de 2022
Deus do mar envenenado
Se eu pudesse ser
Eu era
Barco ou caravela
Nuvem foguetão
Poeta sem escrever
Se pudesse
Eu ser
Que eu seria
Não sei bem o que queria
ser
Mas nunca seria
Ser
Ser o que eu sentia.
Se eu pudesse
Meu Deus do mar
envenenado
Eu queria ser
Ser árvore porta-aviões
ou poeta desamado
Sendo não ser
Ser um esqueleto
enforcado.
E se eu pudesse
Ser eu o vento
Aquele vento que levanta
do chão
A pobre enxada
Do rico camponês…
E se eu ainda o quisesse
E pudesse ser
Ser sem saber
Que um pobre coração
Voa até à lua de ser
Porque não sendo o querer
Também não o serei
querendo
Que ser
Ou não ser
Ser o poeta.
E sendo eu o vento
Ou uma pedra de adorno
Prefiro ser gente
Do que ser…
Do que ser (morno).
Se eu pudesse ser
Sabendo que depois o era
Sem perceber
Ou saber
Como se constroem as
canções de Inverno,
E sendo hoje a lareira da
noite
Onde já queimei os braços
Agora as pernas…
E mais logo o restante
esqueleto
E à chegada do autocarro
O pobre viajante
Sem bagagem
Ou esperança de o ser
Porque não o sendo
E o querendo
O rio corre sempre para o
mar
O mar que está a arder.
E depois vem a traineira
Do querer
E a do saber
Nunca sabendo
Sem o saber
Que querer
Se pudesse
Ser
Ou não ser…
Este vagabundo poeta do
amanhecer.
Alijó, 21/12/2022
Francisco Luís Fontinha
quarta-feira, 30 de novembro de 2022
Carta de um pastor (poeta) às suas quatro ovelhas
Minhas queridas ovelhas,
Lanço ao fogo estas
minhas pobres palavras com o sofrimento alicerçado ao peito, que estas, se
transformem em cinza, e vós, minhas queridas, nunca saibam o que vos escrevo.
Ontem, pela noite adentro,
quase às três horas da madrugada, peguei num pequeno livro, abri-o e no final
da página li – o leão é o Rei da selva. (de mão trémula, senti o medo
disfarçado de luz)
Puxei de um cigarro, e
sentado numa cadeira de vime, de perna cruzada, e de janela aberta com
fotografia para o quinteiro, ouvi a (estrelada) em conversa cavaqueira com a
ovelha da minha vizinha, a (tulipa), e a minha vizinha, a Joaninha, ao telefone
com o namorado ou com a namorada ou com o Presidente Associação de Musas
Inspiradoras (AMI), o que falavam, não o sei, mas pelo ar de exaltação dela, tudo
se resumia a fotografias tiradas junto ao rio.
(o rio, sem saber porque
choravam as ovelhas, também ele, desatou a chorar)
E ao longe, a ponte
abraçada à neblina que a manhã semeava na sombra dos braços do luar, começava a
erguer-se o silêncio que regressava da caçada da noite anterior.
Pela aparência do
silêncio,
Caça nenhuma.
A (estrelada), que uma
certa tarde foi atingida com uma pedra na pata, pedra lançada pelo rapazote
Serafim, um rapaz, comunicador e com estrutura de artista, e já farto de levar
a (estrelada) para o pasto; pimba. Uma pedra certeira na pata e acabaram-se as
tardes no pasto. Esperto, este artista, Serafim, poeta, fadista, barbeiro,
agricultor e sedutor.
À noite, enquanto a minha
vizinha se encontrava na escuridão com o namorado, ou com a namorada ou com o
Presidente da (AMI), a ovelha (tulipa), saltava do terceiro esquerdo e num
ápice, fazia-se passear na minha varanda em pequenas provocações para fazer crer
à minha ovelha (estrelada) a boa forma física com que estava; coisas de
ovelhas. Vaidosas.
Serafim desconhecia que
no futuro iria ter um sobrinho poeta e pastor de quatro ovelhas; mas também ele
desconhecia que o leão era o Rei da Selva, tão pouco desconhecia onde encontrar
a selva, e apenas sabia apontar no mapa a sua localização. Um dia, descobriu a
paixão.
E sabem, minhas queridas,
dá sempre jeito um poeta ser pastor, pois assim, ou talvez não, ou talvez sim,
oiço do AL Berto que “o mar entra pela janela e que o soldado falha o degrau do
eléctrico que vai para a Ajuda, e não sabe se ele fode ou se ele ajuda”,
E da Ajuda,
Uma carta de amor para a
Província.
Minhas queridas quatro
ovelhas,
Espero que estejam bem,
quanto a mim, vou andando, uns dias bem, outros menos bem, e outros…
O soldado dispara a bala
na cabeça.
Dizem que foi por amor.
Ignora o silêncio,
escreve luar na vidraça, e deita-se sobre a cama à espera que o sabor do uísque
desapareça da boca e depois, após algumas horas de sono, sair em busca de
engate.
A loucura dos pássaros. A
(estrelada) desmaiou quando percebeu que eu era um favo de mel e que dormia
junto à Torre de Belém e que era procurado por homens, homens em busca de sexo;
eu, apressadamente, fugia. Em passo apressado, em corrida desmedida que apenas
a (estrelada) consegui imitar, até que entrava num bar junto ao Museu dos
Coches e uma amiga me acolhia na casa de banho. Depois, voltava novamente a
vaguear pela cidade.
Sabes, minhas queridas…
Deixei há muito tempo de
ter notícias do Serafim, e agora que o recordo, com ternura e com paixão, de
sobrinho para tio, digo-vos que o meu tio artista ainda hoje me escreve cartas;
e actualmente, apenas ele me escreve e um qualquer parvalhão que deixa
comentários no meu blog, que provavelmente não percebe de poesia, o que é a
paixão e a insónia e que teima que eu, o poeta e pastor de quatro ovelhas, o
traí. O sonho tomou conta dele.
Os ciúmes das minhas ovelhas
quando vêem a ovelha da minha vizinha (tulipa) em passeios nada apressados na
minha varanda. E se a deixassem, acredito que voava.
Voava como eu voei sobre
a cidade que acabava de acordar, e quando metia a mão na algibeira, um pedaço
do mar salta e começava a descer a calçada.
A Ajuda – quanto ao
eléctrico, já não me lembro, mas que “o soldado falha o degrau do eléctrico que
vai para a Ajuda, e não sabe se ele fode ou se ele ajuda”, esse sim, nem fode
nem ajuda.
Ontem, depois de uma
sessão de poesia, e depois de muitos uísques e algumas radiografias de sono,
entramos num bar, no Bairro Alto, sentamo-nos, pedimos uísque e, homens
beijavam-se apaixonadamente. Puxei de um cigarro e resolvi, quando regressasse
ao quarto escrever-vos; e cá estou eu, minhas queridas. Ausente numa Lisboa que
sempre me pertenceu e que hoje é apenas um sonho, um comboio para Cais do Sodré
e pouco mais…
O suor entranhava-se no
corpo como o cacimbo de outras latitudes, e uma abelha começou a poisar no meu
favo de mel.
Afinal, não é o leão o
Rei da selva.
Os Reis, os Reis são os papagaios
em papel que a minha mãe construía e que hoje guarda junto ao peito, para
quando tiver saudades minhas, recordar-me.
O poeta, pastor de um rebanho
de quatro ovelhas, hoje, escreve cartas aos olhos do mar.
Até breve, minhas
queridas ovelhas!
Alijó, 30/11/2022
Francisco Luís Fontinha
sexta-feira, 25 de novembro de 2022
Os pequenos lençóis do sono
Este homem que vos escreve
Com um braço de sono no
coração
E daquele livro em
construção
As muralhas da cidade
Em círculos de insónia.
A fogueira esconde-se na
algibeira dos sonhos
Junto à janela
Amo-te enquanto os teus
pedacinhos de mel
Dormem sobre o meu peito
Onde juntamente com os
teus pedacinhos de mel
Uma espada rouba-me a tua
voz.
Não durmo enquanto a lua
não acordar
Não durmo enquanto dos
cortinados dos meus sonhos
Os pássaros da madrugada subirem
a montanha
E procurarem-me em vão
Como se eu fosse uma
sombra de pedra
Sem perceber porque
morrem as abelhas.
O meu corpo parece um
pequeno silêncio de espuma
Na secreta lápide onde
escondo as nuvens
E nesta mão
Este homem que vos
escreve
Dorme nos lábios da
cidade.
(dos pequenos lençóis do
sono)
Alijó, 25/11/2022
(Francisco)
sábado, 15 de outubro de 2022
Dissecação de um poema
Poema – fotografia com palavras. Morreu de saudade, o poeta pega no bisturi da paixão e disseca a manhã que acaba de acordar. Dos lábios, em pequeno jeito, retira todos os beijos e poisa-os cuidadosamente sobre o papel amarrotado que o luar trouxe até à sua mão.
Depois de radiografar todas
as sílabas, retiradas todas as vírgulas e pontos finais, o poeta, pega nos
tristes parêntesis e coloca-os, não sobre o papel amarrotados, mas sim sobre a
secretária onde dormem os livros Lobo Antunes, AL Berto, Pacheco, Cesariny,
Cruzeiro Seixas e de um tal Fontinha, mas quanto a este último, como dizem que
é um pouco louco, o narrador nunca tem a certeza se os livros deste, quatro e
milhares de publicações no blog Cachimbo de Água, ainda jazem na dita
secretária; um dia estão aqui, no outro, ali, e às vezes, por aí.
O bisturi da paixão entre
traços pincelados de silêncio e sombras de desejo, em pequenas quadrículas,
começa por dissociar os lindos olhos da manhã que acaba de acordar das pestanas
cinzentas da neblina em fuga; dos olhos, o poeta, retira as imagens de um
qualquer luar que uma qualquer noite poisou sobre o mar, porque há sempre um
rio que corre para o mar, uma ribeira que correr para um rio, e claro, há
sempre um corpo no bisturi do poeta.
O sorriso da manhã que
acaba de acordar, agora já separado dos lábios, e acreditando que o poeta segue
todos os procedimentos de uma dissecação, suspende-se na janela do sonho, que
por enquanto, ainda pertence ao poema. E neste momento, o poeta ainda não sabe
que este sorriso lhe pertence.
Nos seios, o bisturi da
paixão, em pequenas incisões, deixa sobre eles a última vontade do poeta, e o
poeta, sem dar-se conta, transporta na mão pequenos pedacinhos de saliva que
sobejaram do beijo anteriormente retirado; somos instantes, pensou ele.
Mas nem só de seios é constituída
a manhã que acaba de acordar, e continuando a dissecação do poema, o poeta
dissecador, num movimento de dezoito graus Norte, coloca o olhar nas coxas
silenciadas pela alvorada, enquanto as estrelas, em pernoitada conferencia,
tentam chegar a consenso; dormir ou azucrinar a paciência ao poeta. Por
unanimidade, resolvem azucrinar a paciência do dito.
Dito isto, o bisturi da
paixão separa as pequenas gotículas de prazer alicerçadas à pele lisa e
desejada que cobrem a manhã que acaba de acordar e num ápice, como se acabasse
de desenhar um silenciado orgasmo no distante luar que acabou de acordar,
conta-as, cataloga-as, e depois coloca-as dentro de um pequeno frasco onde já
existiam três pedacinhos de sémen, uma madrugada que se tinha suicidado junto
ao mar, e claro, o rio que tinha fugido da montanha.
O poema deixou de
pertencer ao poeta e é imagem desassossegada do dissecador que um dia dirá que
Fui muito feliz sobre
esta pedra cinzenta.
Ou, existirá sempre um
pedacinho de mel nos lábios da manhã.
E como o poema é uma
fotografia com palavras, onde um corpo vacila sobre a ponte que apenas o sonho
consegue pintar nas nuvens cinzentas que às vezes poisam sobre o poeta, há um
sorriso que aos poucos se abraça a esta pequena fotografia e há palavras que
partem e nunca mais regressam. E há silêncios que se tocam sem perceberem que a
paixão, depois de descartado o bisturi, pois já não é necessário, se
transformam em desejo, depois em uno corpo crucificado na maré dos sonhos
envenenados.
Quando perguntam ao poeta
o que pensa da manhã que acaba de acordar e qual o resultado da dissecação, este
é sorrisos amortecidos, responde que… não penso nada e quanto à dissecação:
Depois de dissecado o
poema e analisado, concluo que o dito morreu de saudade.
Saudade – quando no mar
desenhado na alcofa de uma madrugada de cacimbo, sons de um pequeno rádio a
pilhas dança sobre os olhos verdes de um miúdo em soluços depois de perceber
que do tecto caem pedacinhos de geada.
E quando o paquete do
regresso entra Tejo adentro, o miúdo da alcofa vê sentado junto à Torre de
Belém um rapaz tímido, abraçado ao medo, que numa das mãos tem um livro e na
outra cigarros que o acompanharão até aos dias de hoje.
O barco aos poucos
aproxima-se da cidade, e o miúdo com a alegria de um miúdo que acaba de
acordar, sorri
Pai, um machimbombo!
Autocarro, filho.
Autocarro.
Desde então, nunca mais
consegui assassinar a saudade.
E já agora, caro leitor,
qual será a pena para um assassino em série de saudades?
A saudade vai. A saudade
vem.
O tempo passa.
Os machimbombos agora são
autocarros, e um amigo segreda-me que por eu ter nascido em Luanda, sou
Calcinha.
Autocarro, filho. Autocarro.
O poema é uma fotografia
com palavras. O poema é a imagem que apenas o desejo consegue desenhar num
corpo em fúria. O poema é silêncio. O poema é paixão. O poema é tudo e não é
nada. O poema é um pedacinho de mel. O poema é um pedacinho de mar. O poema és
tu, manhã que acaba de acordar.
Alijó, 15/10/2022
Francisco Luís Fontinha