Podia ser muita coisa
Podia ser tudo
Prefiro ser eu,
Eu.
Podia ser poeta
Podia ser tantos poemas
Podia ser poeta, mas acabei
por me ficar em Lanceiros dois,
Calçada da Ajuda,
Belém.
Podia ser o comboio,
Um popó topo de gama,
Podia ser uma bicicleta,
triciclo com assento em madeira,
Podia,
Mas prefiro ser livro,
Prefiro ser lido,
folheado,
Como se folheiam os
livros,
Como se folheiam os
poetas enforcados.
Podia ser muita coisa
Podia ser tudo
Prefiro ser eu,
Eu.
Eu, o mais ínfimo
pigmento de tinta,
Eu, o mais pequenino de
todos os poemas pequeninos que se escreveram até hoje…
Num livro, pequenino,
Podia ser muita coisa
Podia ser tudo,
Prefiro ser eu,
O louco travestido de
Primavera,
O louco das finas tardes
junto ao rio,
Zarpavam os barcos,
E eu, e eu podia ser
marinheiro, comandante de navio,
Telefonista de um grande
petroleiro,
Podia,
Eu.
Podia ser tanta coisa…
Tanta coisa que havia
para eu ser…
E fiquei-me pelo poeta
das noites embriagadas, das noites envenenadas pelo silêncio da espuma-estrela,
ou da estrela-espuma…, que habitam a noite, que se vestem de noite,
Se cansam do dia, das
marés, e fiquei-me pelo poeta desassossegado, em busca do mar, em busca da
terra, queimada, e tanta coisa que havia para eu ser…
31/10/2023