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terça-feira, 26 de setembro de 2023

Grito

 Eu aqui

Sentado

Preocupado com a vidinha

… e milhões de crianças

MORREM

Eu aqui sentado

Fumando

Bebendo

Bebendo o que fumo

E fumando o que bebo

O que não bebo

E o que já bebi

Escrevendo merdas

Lendo merdas de engenharia

E chateado

Quase em combustão

Eu aqui

Sentado

… e milhões de crianças

MORREM

Como se fossem um apagão

 

Uma fogueira em desordem

Um Deus que olha milhões de crianças que…

MORREM

E ele

Feliz

Como eu

Fumando

Bebendo

Bebendo o que fuma

E fumando o que bebe

O que não bebe

E o que já bebeu

Coitado de Deus

Coitado

Está velho

Como eu

 

Eu aqui

Sentado

Escrevendo de perna cruzada

Fumando

Bebendo

Olhando pela janela

E nada

Ninguém

Um tremor de terra

Ou uma explosão

Puro silêncio

Virgem

Como a lã

 

Aqui eu

Cá estou eu

Sentado

Escrevendo

Bebendo

Fumando…

… e milhões de crianças

MORREM

Desaparecem como mortalhas em dias de neblina

 

Sentado

Eu aqui

Por aí

Porque sim

Escrevendo

Lendo

Bebendo

E fumando

As palavras

Depois as letras

E finalmente

Enrolo toda a pontuação

E vou-me

Vou-me para S. Martinho do porto

Com a minha amada

 

Eu aqui

Sentado

Preocupado com a vidinha

… e milhões de crianças

MORREM

Eu aqui sentado

Fumando

Bebendo

Bebendo o que fumo

E fumando o que bebo

O que não bebo

E o que já bebi

E de todas as coisas visíveis e invisíveis

Ele acorda

Abre os olhos

Olha-me…

- Foda-se

Escrevendo

Pintando

Fumando

Desenhando o que pinto

Às vezes

Pintando o que bebo

E bebo

Tudo aquilo que escrevi…

(É com cada moca)

Coitado

Coitado dele

Está velho

A ficar doido

Sem cabelo

Coitado de Deus

Coitado

 

Preocupados com a vidinha

… e milhões de crianças

MORREM

 

 

26/09/2023

sábado, 16 de setembro de 2023

Os barcos da infância

 S. Martinho do Porto, Janeiro de 1989,

 

Deste quarto, dentro deste quarto, olho o mar e pinto o mar nos meus olhos, antes de adormecer. Deste quarto, onde me escondo, não sabendo porque me escondo, neste quarto pinto o sol no tecto, no tecto deste quarto, e sinto neste quarto, dentro deste quarto, o assobiar dos barcos da minha infância.

Neste quarto, de onde oiço o mar, pincelo o meu olhar com estrelas-do-mar e silêncios de alegria, depois, depois peço ao guarda deste quarto, peço ao senhor António, que liberte todas as serpentes, que dormem neste quarto e não gostam de poesia, como todos os que detestam poesia, que são muitos, que são alguns, não pertencem a este quarto, de onde eu, pela janela deste quarto, sinto o cheiro do mar, e depois,

E depois nada. Fico dentro deste quarto.

Vou à janela deste quarto, puxo por um cigarro, acendo-o preguiçosamente, eu oiço-os

Entre gritos, ao lado deste quarto,

Sem perceberem que dentro deste quarto,

Habito eu, o poeta suicidado por uma bala de medo numa tarde junto ao Mussulo.

Então senhor António, as serpentes?

Sei lá eu das serpentes, menino,

Sei lá eu.

E de dentro deste quarto, nem eu, nem eu, senhor António,

Nem eu.

Neste quarto, de dentro deste quarto, oiço o sorriso das girafas, brincando no capim como se fossem crianças pinceladas de saudade, neste quarto, dentro deste quarto todos os papeis são loucos, todas as palavras são loucas, neste quarto, de dentro deste quarto, todos os Sábados, junto ao rio…

Então o senhor António pensava que as serpentes não sabiam ler?

Sei lá eu, menino,

Sei lá eu,

Nem eu, de dentro deste quarto,

A bala sorriu e caiu no pavimento lamacento. Dentro deste quarto, neste quarto, aos Sábados, oiço o mar, desta janela sem sorriso, enquanto o senhor António se vai travando de amores com as serpentes,

E o menino,

O menino, deste quarto, de dentro deste quarto, deste quarto, dentro deste quarto, olha o mar e pinta o mar nos seus olhos, antes de adormecer. Deste quarto, onde se esconde, não sabendo porque se esconde, neste quarto pinta o sol no tecto, no tecto deste quarto, e sente neste quarto, dentro deste quarto, o assobiar dos barcos da sua infância.

 

 

 

16/09/2023

Luís

terça-feira, 23 de agosto de 2022

Um pouco mais de azul

 Vivíamos dentro de uma pequena caixa de sapatos, tamanho trinta e dois. Quando descíamos a rua, do lado direito, junto à farmácia, ouvíamos as gaivotas que tínhamos trazido de Luanda e quando acordava o sol, às vezes sim, outras, nem por isso, eu inventando noites de luar que partilhava com os velhos triciclos com assento em madeira e que devido à idade, todos os parafusos e porcas rangiam como rangiam os duzentos e seis ossos do meu avô Domingos; antes de o barco zarpar, percebia que a minha mão minúscula era suficiente preguiçosa para desenhar nuvens de despedida nos céus de uma cidade a desaparecer no horizonte, como desapareceram todos os papagaios em papel da minha infância.

O dinheiro era minguo e apenas dava para beijos, carinho e fatias de felicidade, que ainda hoje, passados mais de cinquenta anos, recordo como saudade.

Nunca gostei da escola. Enquanto a professora ensinava as diversas matérias e de casa, todos nós, eu e os meus colegas, levávamos os ensinamentos de respeitar os professores, funcionários e nunca esquecer, os mais velhos; hoje, parece que esses ensinamentos deixaram de existir e os putos, por tudo e por nada, fazem birras imbecis fruto da educação que têm em casa… e uma palmada no rabo nunca fez mal a ninguém.

Quando acordávamos, em pleno Inverno, os cortinados eram substituídos por finos fios de geada, pois as janelas, por cansaço ou outra qualquer razão, eram desprovidas de vidros, que na altura já era um grande avanço tecnológico, já tínhamos ar condicionado natural.

O avô Domingos passeava o machimbombo pelas ruas de Luanda, e quando regressava ao final da tarde, eu esperava-o sentado em cima do portão, porque sabia que receberia abraços e beijos; e trazia-me sempre um pedacinho de mar invisível na algibeira.

Aos Domingos, aproveitava-me da paciência do meu pai e íamos até ao porto de mar olhar os barcos; a minha paixão de criança. Olhar os barcos e inventar círculos de luz sobre o azul-mar que ainda hoje guardo no peito.

E assim fui crescendo, dentro de uma pequena caixa de sapatos número trinta e dois e nunca esquecendo o silêncio do Mussulo.

 

 

Francisco Luís Fontinha

23/08/2022