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segunda-feira, 10 de outubro de 2022

O crucifixo das lágrimas

 Quando acordavam, o crucifixo suspenso na parede, que tinha como única finalidade, esconder as fendas que abundavam no gesso em ruínas, lacrimejava todas as palavras ouvidas durante a noite.

Esta noite devíamos ter conversado muito, ele não pára de lançar palavras contra os tristes lençóis e cobertores que sobre nós poisaram, lamentava-se ela enquanto ele escondia o olhar no cortinado, velho, que mais parecia um campo de milho quando maduro,

E claro, vinha-me à memória os campos de milho de Carvalhais, da amarela, do velhinho que contava estórias mirabolantes sobre a primeira grande guerra, dos uivos do carro de bois e das manias que eu tinha de andar sempre só; como as cabras em pleno monte.

Descia a noite e quando o Branco ligava o moinho ecléctico, modernices, pois tinham um movido a água, enquanto o cereal dançava, a lâmpada do meu quarto, o quarto do meio, começava a cambalear, até que momentos depois, desmaiava por completo e só depois do tio Branco desligar o dito é que voltava a ter luz para ler os poemas do Pessoa; e quando a noite já levantava voo sobre o sino de Carvalhais é que eu começava a escrever a um remetente inventado, pois quase nunca tive ninguém a quem escrever, a não ser, no serviço militar, a cravar dinheiro à minha mãe. Um dia perguntou-me quantas vezes eu era assaltado por semana, pois a razão de eu pedir dinheiro era sempre a mesma. Mãe, fui assaltado.

Conversamos muito, disse eu. Pois também estava de acordo com ela, à quantidade de palavras que o crucifixo lacrimejava dava para perceber que tinham sido muitas. Ergui-me, procurei um cigarro sobre a mesinha-de-cabeceira, e comecei a vomitar sinais de fumo à janela com fotografia para o mar. Do segundo andar via uma réstia de mar, a sombra de um barco e o uivo de uma gaivota, nada mais, em Carvalhais, já noite dentro, ele escrevia em pequenos papeis que ainda hoje continuam acorrentados aos quatro cantos de cartão, onde poisam, e quase nunca saem para passear no jardim ou descer a calçada com acesso ao rio.

Quando ele olha em direcção ao leito dos lençóis e cobertores poeirentos, ela já dormia novamente, e ele, suspenso entre dois segundos, olhava-a, olhava o crucifixo que não parava de lacrimejar as ditas palavras nocturnas do desejo e a velha espingarda que apenas disparava às terças e quintas, durante a tarde; não ligou e esperou que o cigarro terminasse o seu prazer, isto é, foder um gajo que acaba de acordar. E diga-se, sou fodido por estes gajos há mais de trinta anos.

A noite estava calma. As palavras fluíam nas rasuradas folhas que encontrei numa qualquer gaveta do avô Domingos, naquela noite não me apetecia escrever no caderno, e os sons da noite entravam-me quarto adentro; ouviam-se as lágrimas das sombras que eu sabia que habitavam no campo de milho semeado junto à janela. Deixei de ouvir o avô velhote, um dia finou-se.

Peguei na espingarda, e percebi que ela jamais poderia acordar, depois soube que tinha ido para outro aposento, mais limpo, onde não havia crucifixos a tapar frestas e dos papeis escritos por mim, apenas algumas cinzas restavam junto ao cinzeiro em granito que um grande amigo me tinha oferecido. Nunca mais fui assaltado.

O tio Serafim animava a adega. Artista conceituado por aquelas bandas, brindava-nos com o vinho morangueiro, confesso que nunca o bebi, porque detesto vinho, mas fazia-me acompanhar por umas Cucas, o famoso presunto, a linguiça, e claro, o melhor pão de milho que comi até hoje; o pão de milho da tia clementina.

O Serafim além de cantar o fado, ser barbeiro nas horas vagas, cuidar das terras e do gado na companhia da tia Clementina, ainda na juventude, tinha feito crer a muita gente que tinha regressado do Brasil, sem que nunca tenha saído do Bairro Alto em Lisboa. Um verdadeiro artista. Um homem galante, de fato, bengala e nunca deixava de se acompanhar pelo famoso palhinhas e do respectivo sotaque.

E Carvalhais, aos poucos, começou a ficar sem graça. Uns foram para ali, outros foram para acolá, ela começou a ler umas coisas de AL Berto, e basicamente, todos eles mortos, desaparecidos do combate da vida.

Às vezes, durante a noite, oiço o velho moinho do tio Serafim, vou à janela e chegam a mim as silenciadas sombras que brincam no campo de milho, mesmo por baixo dos meus pés. Quanto à espingarda, também ela, morreu numa manhã de neblina…

Que assim seja.

 

 

 

Alijó, 10/10/2022

Francisco Luís Fontinha

sábado, 23 de agosto de 2014

Bufunfa...


Procurava nas penteadas espigas de milho,
o sabor amargo de amar,
deitava-me sobre o chão frio do granito ensanguentado da eira,
pincelava o luar de madrugada,
e procurava...
adormecia sem o perceber,
porquê?
e se era aquele o momento de o fazer!
o sino ouvia-se ao longe,
o horário deixou de fazer sentido,
tal como o calendário,
procurava... e nunca as encontrava...

As chaves do espigueiro telintavam numa algibeira furada,
que servia de esconderijo a um corpo emagrecido,
cansado,
e ferido...

Havia lágrimas nos olhos das frestas do espigueiro,
a madeira envelhecida... rangia... parecia um homem desiludido com a vida,
acordavam-me para o jantar,
e fazia de conta que não ouvia...
nem sentia...
o vento soprar,
e eu procurava... e ele em pequenos círculos... me abraçava,
acreditava que das pálpebras dos pinheiros fugiam as estrelas em papel,
acreditava que à resina regressavam as plumas fluorescentes das meninas de cartão...
e nunca vi o mar acorrentado ao granito ensanguentado da eira,
nem os barcos, nem os marinheiros com odor a sexo,
e no entanto... havia uma mulata que dançava na eira só para mim,

O zinco da sanzala gritava,
e um menino em calções chorava grãos de pólen,
não havia abelhas para me consolarem...
nem... nem mangueiras sombreadas nas mãos dos mabecos enfurecidos com o meu sorriso,

Bufunfa...
o kimbundu poético da paixão dos pássaros,
o voo silencioso dos dentes de marfim sobre a mesa da sala de jantar,
uma ténue luz que iluminava o capim que jazia nas bermas da estrada,
caminhava, caminhava... e não tocava no granito ensanguentado da eira,
brincava com os papagaios de papel inventados nos seios de um coqueiro,
cintilavam em mim as gazelas, os elefantes... e ao meu lados os entristecidos marinheiros...
e procurava...
adormecia sem o perceber,
porquê?
e se era aquele o momento de o fazer!
Levantar-me do chão frio do granito ensanguentado da eira.



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sábado, 23 de Agosto de 2014