foto: A&M ART and Photos
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Porque gemiam as gaivotas se o mar parecia um campo
de milho, calmo e sereno, diluído em azuis e castanhos, meninos com
infâncias destruídas, meninos sem infâncias prometidas, e no
entanto, sabíamos que um dia íamos experimentar os chocolates com
frutos silvestres, que um dia íamos experimentar as cavernas
encolhidas nas rochas no cimo da montanha com o coração de riacho,
as penas eram de sobreiro e de olhar terno, frágil, magoado, um
olhar existente em construções falsas acompanhadas por lágrimas de
cereja, e as pernas, tenho uma vaga sensação que eram de granito, e
havia uma escada de acesso à caverna, entrávamos, amplamente
arejada, uma enorme entrada, e sem janelas, e depois, continuava por
um corredor, curvilíneo, até desaparecer na escuridão da noite,
não tínhamos móveis, e dormíamos no chão, não tínhamos nada, e
éramos tão felizes, como a pequena fogueira que ardia noite e dia,
como se fosse uma porta de entrada em madeira robusta, que apenas
servia para afugentar os animais mais endiabrados, mas
(que animais fariam mal a duas apaixonadas sombras?)
Ao longe ouvíamos o sombrear da lua quando
caminhava sobre a copa das nuvens, tão finas, tão belas e tão
doces, diziam-nos que eram de açúcar, mas por infelicidade, mas
porque o destino nos tramou quando resolveu juntar-nos numa noite de
Setembro, nunca tivemos o tempo necessário para verificarmos se
realmente as nuvens eram de açúcar, mas que cheiravam bem, lá isso
cheiravam, e que quando chovia, sentávamos-nos cá fora, e sentíamos
as gotas de água da chuva junto ao canto do lábio inferior, e aí
sim, percebíamos que era doce, mas nunca tivemos a certeza que
fossem de açúcar..., como também, nunca tivemos a certeza de nada
do que vivíamos ou viveremos na posteridade das sebentas com as
páginas brancas, sem imagens, desenhos, e palavras, e ao
(animais)
Longe tínhamos terminado de acender os candeeiros a
petróleo, nas mochilas apenas alguns cadernos, alguns livros, e
lápis de carvão, e todas as noites, enquanto olhávamos a labareda
da velha fogueira, olhava-lhe os olhos e imaginava um rebanho de
ovelhas saltitando nas terras férteis e indomáveis de Favarrel,
ainda conseguia imaginar o tio Serafim em corridas loucas e à
pedrada contra a estrelada, e esta, quando regressava a casa,
tardíssimo, mancava, e o velho
(que tem a ovelha, rapaz? - Caiu da parede abaixo,
meu pai – e o velho dizia-lhe que no dia seguinte a estrelada
ficava no curral, e o Serafim contente, saltava de alegria, porque
depois da escola já não ia com as ovelhas para o pasto...)
E o velho tudo fazia para que o filho fosse
agricultor, e o Serafim comportava-se como um artista, cantava fado,
contava histórias, andou pelas ruas de Lisboa e quando regressou a
casa convenceu toda a gente que tinha estado no Brasil, e durante
dois ou três anos, ninguém, ninguém sabia do paradeiro do cantante
que saiu de casa propositadamente para viajar até às terras de Vera
Cruz..., ficou por lá encantado com os cheiros e com os sons
(do Tejo)
E com as mulheres de lá, onde durante a noite se
escondia em tasquinhas perdidas em ruelas, e de dia, de janela
encerrada, e de cortinado puxado até aos confins do Inferno,
ressonava canções com sabor a vinho e sonhava com barcos que se
faziam passear pela Terra Nova na peugada do fiel amigo; o eterno
bacalhau,
“Porque gemiam as gaivotas se o mar parecia um
campo de milho, calmo e sereno, diluído em azuis e castanhos,
meninos com infâncias destruídas, meninos sem infâncias
prometidas, e no entanto, sabíamos que um dia íamos experimentar os
chocolates com frutos silvestres, que um dia íamos experimentar as
cavernas encolhidas nas rochas no cimo da montanha com o coração de
riacho, as penas eram de sobreiro e de olhar terno, frágil, magoado,
um olhar existente em construções falsas acompanhadas por lágrimas
de cereja, e porque transpirava o espigueiro recheado de espigas de
milho, e porque tinham os melros medo do escuro, quando alguém por
engano, desligava o interruptor do dia, vinha a noite, trazia com ela
outras amigas, bebíamos, comíamos e fumávamos, sem que nunca
tenhamos percebido, sem que nunca tenhamos admitido, que, ontem, na
caverna, não tínhamos móveis, e dormíamos no chão, não
tínhamos nada, e éramos tão felizes, como a pequena fogueira que
ardia noite e dia, como se fosse uma porta de entrada em madeira
robusta, que apenas servia para afugentar os animais mais
endiabrados, mas os animais ferozes, éramos nós, eu, ela”
(e sentíamos as gotas de água da chuva junto ao
canto do lábio inferior, e aí sim, percebíamos que era doce, mas
nunca tivemos a certeza que fossem de açúcar..., como também,
nunca tivemos a certeza de nada do que vivíamos ou viveremos na
posteridade das sebentas com as páginas brancas e os títulos a
negrito, poucas palavras, as datas mais importantes, o nascimento, e
o último a morrer, ficará encarregue a reescrever a história e a
data final de quando terminar a fogueira, tudo dentro da caverna
cessará de respirar, e apenas a cinza da fogueira ficará como
testemunha do amor de dois apaixonados, risíveis, ternos e com
saudades do apito do comboio em corridas loucas na linha de Cais do
Sodré até Belém, saía, puxava de um cigarro, e)
Como cresceu o milho,
(e sentava-se no parapeito da janela imaginária
para o Tejo)
E não só o milho, o rapaz também está crescido,
e a própria cidade, parece obesa, oca, sombria, uma cidade dentro de
outra cidade, que, que hoje já não existe...
(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
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