foto: A&M ART and Photos
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Percebia-se, pelas tuas nádegas de algodão, que a
noite entranhava-lhes como pássaros na algibeira de um mendigo,
dormiam em caixas de papelão, pobrezinhos, escreviam sobre as
ombreiras do ensonado dia, “caixas simples cartão”, porque era
chique, porque estava na moda, porque ao fundo da rua sentia-se o
ressonar da lua, e a transpiração de saliva dos pulmões de aveia,
não tínheis pequeno-almoço, preçário, cardápio ou subsídio
diário, uma sandes de pouca coisa, ou quase anda, chorava no
interior de duas finas fatias de pão, sem saberdes que lá fora, ao
longe, de uma escada em madeira, desciam os anjos e os gemidos
silêncios da verdura que cobrem os campos da aldeia, como pedras,
lajes de granito, lápides em cimento, e aos poucos, de poucos,
apagariam-se-lhes todas as letras da literatura pura e nua, entre
desenhos e sílabas, entre candeeiros de vidro e lâmpadas de papel,
gostava muito de ti,
Desenhava-te no espelho da montra do senhor Ernesto,
em traços finos, colocava-te sobre os olhos um fio doirado de
cabelo, dava-te lábios com sabor a chocolate, tinha-te na boca como
oxigénio essencial à minha respiração, ouviam-se coisas mortas,
objectos despedidos, canas de pesca, carretos e chumbeiras, bóias,
anzóis e as pesadíssimas botas de borracha, e mesmo assim, ouvia-te
gosto de ti,
Percebia-se, pela ausência de cubículos para
todos, que nem nus somos iguais, uns, mais diferentes do que outros,
e havia sempre um que ficava sem onde pernoitar na fria noite de
Janeiro, aqui, porque lá, bastava-lhe cobrir-se com um ramo de
palmeira, havia um largo, eles abraçaram-se longamente e
esqueceram-se que eram uma rocha à beira do rio, do largo, mais
acima, uma duas palmeiras adormeciam já devido às distantes horas
que estavam previstas para regressarmos, nem um único som, uma única
palavra, nada
só e só o beijo da despedida,
Só e só, e não muito mais, como anos depois, as
palmeiras continuam adormecidas, mais velhas, claro, mas ainda estão
vivas, não há muito tempo, estive com elas, almoçamos juntos, e
recordamos noites, noites, noites que eu mesmo já tinha esquecido,
falaram-me de uns pássaros que poisavam nos nossos ombros, e também
de umas flores, se não estou enganado, isto é, se não fui enganado
por elas, de umas flores amarelas, ou cinzentas, ou
gostava muito de ti,
Ou incolores, como os beijos, ou indolores, como as
ondas do Oceano que ficávamos a olhar até desaparecerem sobre os
telhados de Lisboa, o cheiro do rio entrava dentro dos nossos corpos
escondidos em caixas de papelão,
“caixas simples cartão”
E hoje, quando estou no largo, debaixo das velhas
palmeiras, ao longe a lua em movimentos descoordenados, sem luz de
candeeiro, dos minguados olhos que o sol deixou sobre a
mesa-de-cabeceira, e derramadas sombras construindo imagens na
esplanada dos arbustos com braços negros e pernas encarnadas,
perguntava-te pelas cartas perfumadas, e tu
queimei-as, porquê?
Apenas pelo perfume, porque pelas palavras perdia o
sentido das letras, deixei de amar palavras, frases, livros,
cadernos, poemas, “... e toda a merda comestível...”, só e só
pelo perfume, só e só quando desce a noite e de barriga para o ar,
eu deitado, olho o tecto, vejo estrelas azuis, estrelas pretas,
estrelas... como chuva friorenta em Primavera, e só e só, tenho
saudades do perfume
das amoreiras em flor, das mimosas, de deitar-me no
chão e fazer desenhos imaginários no céu nocturno da cidade, a
cidade proibida, com calçadas, ruas, ponte e pontões, “putas” e
“cabrões”, a cidade dos barcos com ferrugem, a cidade das casas
comestíveis depois da sobremesa, e homens com alegria, e homens em
bebedeira em fila Indiana para ter acesso a uma merda de uma caixa de
papelão,
“uma linda caixa em fino cartão, três
assoalhadas, uma varanda para o Tejo, casa de banho completa, e
ascensor, e muitas cartas, cartas de amor, todas elas, perfumadas...”
E eu dava-lhe a mão, e passávamos a noite dentro
do ascensor, em subidas, em descidas, e às vezes
parávamos, e esquecíamos-nos que algum dia
estivemos debaixo de duas velhas palmeiras a construir o beijo mais
literário de sempre, o beijo poético
E às vezes,
o beijo fatídico,
E às vezes adormecias nos meus braços...
(ficção não revisto)
“Alguém vai dizer: ficção o
caralho...!”
@Francisco Luís Fontinha