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domingo, 9 de agosto de 2020

Romântico amanhecer

 

Sou eu. Sou eu, o silêncio suspenso nos teus lábios de acrílico suspiro, a madrugada pincelada na tela inventada pela noite, regressam as sombras dos automóveis cansados, quando todas as ruelas da cidade, desenhadas pelo luar, são apenas sombras, manhãs desesperadas, corpos embalsamados, esqueletos de papel semeados nos campos marítimos do desejo,

Amo-te.

Sou eu, a claridade das tuas mãos quando acariciam o meu rosto de xisto, deitado sob a clarabóia do amanhecer,

Um barco, meu amor,

Um barco deitado sob a clarabóia do amanhecer, os suspensórios tristes que pegam nas calças calcinadas pelo vento da manhã, meu amor, um barco de espuma, um lençol de vómito descendo a calçada em direcção ao rio, lá longe,

Amas-me?

Um pequeno alfaiate desenhando sílabas na areia do Inferno, automóveis cansados que se apião nos apitos nocturnos da insónia, valha-me meus, menina,

Sim, meu amor,

A menina é tão bela, como o silêncio de todas as esplanadas, no Verão, antes de abrirem as cancelas da solidão, pego no teu olhar, imagino um carrossel de sémen brincado no sótão do homem de negro, dos olhos, a venda espelhada dos fins de tarde, nem mais, uma criança grita pelo papel vegetal que alimenta a mão do artista,

Então os desenhos?

Estão quase, repentinamente escreve ele no muro da imaginação, olho-te e, escrevo-te, entre parêntesis e pontos de interrogação,

O texto, meu amor,

O texto constrói-se na tarde, invento meninos de chumbo perfilados na avenida, todos de máscara, como os espantalhos de Carvalhais, amanhã

Amas-me?

Amanhã todos os santos são estátuas de sofrimento, altares de espuma esperando o regresso do comboio, o sem-abrigo procura sombras na imensidão da cidade, e tu, meu amor

Amanhã,

Abrem-se as cancelas do desejo, existe em ti o infinito amanhecer, descalço, como medo de amr, corre, corre em direcção ao mar, porque

Amanhã?

Sim, porque amanhã a noite será uma jangada de vidro no silêncio dos rochedos enamorados pelo abraço.

Sempre em ti, este cansaço de amar.

Romântico amanhecer.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 09/08/2020

domingo, 16 de setembro de 2018

O louco


É noite, meu amor!

Sinto os teus braços entrelaçados no meu peito,

Um rochedo de saudade fundeado em mim,

Onde o peso da tristeza voa sobre o meu quarto abandonado pelas flores,

Sofrimento, a dor da fórmula matemática sem resolução,

Como a morte,

Ao final da tarde,

Os insectos poisados no teu corpo espelhado pelo nascer do sol…

É noite, meu amor!

Todos os dias são dias de insónia,

Tortura,

Desespero sombrio das cavernas habitadas por húmidas ardósias de espuma,

Desço o rio,

Mergulho nos teus lábios de poema adormecido,

O louco,

Adormecido,

É noite, meu amor!

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 16/09/2018

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Ficavam sempre pendurados nas mangueiras


O vento emagrece os ossos pincelados na Ressonância Magnética, a chuva miudinha alicerça-se-lhe no cabelo prateado do Outono, aos poucos caem as folhas no pavimento térreo das lágrimas invisíveis, aconchega-se contra o espelho suspenso há anos no quarto, e vê a fotografia de um condenado à morte, sofre, chora… e brinca com as pétalas das drageias que lhe envenenam o corpo, os ossos partem-se como veleiros à deriva no Oceano sem nome, sempre só, ele deita-se na cama desengomada e dorme ao sabor da tempestade encarnada, vomita as palavras nocturnas que lhe correm nas veias, e para assassinar o tempo vai até à casa de banho fumar um cigarro,
Escreve “merda” na vida, desenha sombras nas sombras da vida, e tenho medo da partida, o só, o desajeitado das palavras encostado a uma esplanada esperando o engate do final da tarde, lamenta-se,
Lamento-me, não sei o que fazer enquanto os ossos de ontem enfraquecem os ossos de hoje, respira fugazmente, pega nas lâminas da manhã e esconde-se no rio…, lamento-me nos dias em que sou possuído pelo medo, lamento-me quando abro um livro e ela,
Hoje não consigo respirar, as palavras voam como voa o meu cabelo quando os pássaros mergulham na minha mão e adormecem, não consigo, queria dormir, quero dormir, quero brincar no quintal e fazer-te um papagaio em papel, daqueles que eu te fazia,
Lembras-te?
Ficavam sempre pendurados nas mangueiras, entre o Sol e a alegria da juventude, e o vento?
O vento emagrece os ossos pincelados na Ressonância Magnética, e os teus braços abraçam-me na solidão vagabunda do planalto, olho a montanha, olho-me no teu espelho,
E tão velha…, e tão sonâmbula das noites sem dormir.



Francisco Luís Fontinha
06/10/2017

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

As sombras do poema...

(desenho de Francisco Luís Fontinha)



Sílabas desencantadas com as minhas tristes palavras,
vírgulas... suicidadas
na árvore azul da parede de gesso,
do outro lado... o espelho do teu olhar,
... o meu rosto parece um verme faminto,
... o meu corpo sobrevoa as sombras do poema...
sem título,
sem dedicatória...
sou uma nódoa envelhecida,
que desce as profundezas do desejo,
sou um esqueleto sem estória...
um pedaço de papel em brasa,
sílabas,
desencantadas,
tristes palavras,
que o tempo alimenta e o luar desenha (no espelho do teu olhar)
as canções emagrecidas,
as cordas voláteis dos homens sem cidade para vomitar...
sem título,
sem dedicatória... nem arma para disparar.



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sexta-feira, 2 de Dezembro de 2015

sábado, 31 de maio de 2014

O abstracto


O abstracto,
quando o sorriso se transforma em chuva,
o abstracto silêncio das tuas palavras,
desfasadas,
misturadas nas pálpebras de um fio de luz,

O abstracto meu corpo, laminado pelas garras do amor,
o sítio negro do teu peito,
o cofre das tuas flores de papel,
o abstracto mar que corre no teu abdómen,
como neblina sobre o rio da saudade,

O abstracto...
o dia morre,
o relógio nocturno das tuas coxas..., abstractas, mergulham em mim como a âncora de madeira cansada,
e tudo parece adormecer em nós...
a cidade, a rua onde existe um quiosque de algodão e arde,

O abstracto facalhão que traveste a solidão em paixão,
a ressaca do esqueleto em módicas trinta e seis prestações,
o abstracto corpo sem alicerces,
dançando na copa da árvore das tuas tristes lágrimas...
e um barco entra em ti,

Vives no abstracto espelho,
suspenso nas gaivotas cinzentas das searas envenenadas,
uma fotografia diz-me que tu deixaste de ser menina,
hoje és uma pedra, abstracta e sem nome,
que desce a montanha do meu olhar...


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sábado, 31 de Maio de 2014

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Círculos, círculos de ténue luz

foto de: A&M ART and Photos

Círculos, círculos de ténue luz sobre os teus olhos cinzentos,
lá fora ouve-se o granizo comendo os sonhos daqueles que dormem, e saltitam sobre as nuvens de vento,
lá fora há pálpebras que choram,
automóveis que se recusam a andar,
suspendem-se nas canadianas, procuram de vez em quando uma bengala de verniz...
lá fora tudo parece ser feliz, as plantas argumentam nas palavras os distintos sons dos teus lábios,
círculos,
quadrados,
quarta-feira... a luz inverna e todos os silêncios ancorados a ti,
tu, quem és?
tu... tu o que fazes junto a mim quando me olho no espelho, quando descrevo as nódoas do meu rosto por meia dúzia de palavras, tão poucas... mínimas... que apenas pronuncio... “ausência e dor”,
e círculos..., círculos viciados em sexo e drogas, deitados na relva do pôr-do-sol,
e... e círculos, círculos de ténue luz sobre os teus olhos cinzentos.


@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 2 de Janeiro de 2014

domingo, 22 de dezembro de 2013

Este piano que é a mão apaixonada da noite sem nome

foto de: A&M ART and Photos

O piano enlouquecido
tristemente só... alegremente despromovido
o piano magoado louco esquecido...
o piano dorme enquanto os dedos dela se masturbam nas suas doces teclas
o piano desgraçado
dorido
é triste ser som de piano louco
quando o corpo dela...
não o é... e o é tão pouco
enquanto o corpo dela... dilacera-se como a manteiga nos espelhos da paixão
o piano tem coração
tem dono... tem tesão.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 22 de Dezembro de 2013

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Um corpo submerso nas sílabas do desejo

foto de: A&M ART and Photos

Um corpo estaticamente só, um corpo submerso nas sílabas do desejo, um corpo entre montículos de saudade e rochas de insónia, uma luz alimenta este corpo, um espelho alimenta a luz que alimenta este corpo, um corpo... não é um corpo, um corpo vazio, solidificado, um corpo voando sobre a montanha da solidão,
Vens à janela, abres-te e sentes o vento em ti,
Um corpo inocente coberto pela espuma volátil do incenso, um corpo de água, só, um corpo cintilante, um corpo
Ausente?
Dorido, que não sente o corpo em corpo das flores...
Um corpo estaticamente só, um corpo submerso nas sílabas do desejo, um corpo entre montículos de saudade e rochas de insónia, um corpo poisado sobre o peito de um homem...
A imagem emagrece o corpo, a luz que alimenta este corpo, é alimentada por um outro corpo,
E o espelho depois de ser corpo.
Imagem, flutua sobre as vértebras do cansaço, e és transparente como as noites vestidas de negro, e és desejada como os pilares de areia das madrugadas em delírio, despes-te e olhas-te no espelho
(alimento a luz que alimenta o corpo)
O teu,
Quero ser um pedaço de montanha, ou um veleiro agasalhado de lareira acesa, caminhar junto a um rio com dentes em marfim, um corpo belo, desejável, um corpo em decomposição, a parte física sobre a mesa-de-cabeceira e a parte invisível dentro de mim, dentro da trovoada, das nuvens envergonhadas quando a luz ejacula sobre o abajur da tristeza e eu
O teu corpo é teu?
(alimentado pela luz que alimenta o corpo)
Desculpem... morri,
Um corpo de água, só, um corpo cintilante, um corpo
Ausente?
Quero ser o vestíbulo que habita no teu quarto secreto, a cabeça onde poisa o ombro, também ele... secreto, todo o corpo teu não existe, nunca apareceu à janela do meu castelo, o teu corpo é um embuste, falsificado, o ilustre Doutor das clarabóias domésticas que a tua mão abraça,
Quero o ser como são as palavras antes de escritas, aquelas que são pensadas e que por
Vergonha?
Pudor?
Um corpo belo esconde-se no interior de um cobertor, invento marés e mesmo assim
Não o consigo, não sou capaz que te dispas e fiques só corpo, só
Pudor?
Vergonha das palavras que tenho medo de escrever, vergonha dos beijos que tenho medo de desenhar na parede dos teus seios, o teu corpo, meandro sabático das sandálias em couro, os calções parecem perdizes brincando nos patamares no coração do Douro,
Vamos jantar?
Comer o teu corpo, ele, apenas ele... dentro do prato cerâmico, outrora em alumínio, hoje mendigo, o espelho que alimenta a luz ou a luz que alimenta o teu corpo, e uma corda feliz saltita nas mãos de uma criança...

(ficção – não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Segunda-feira, 7 de Outubro de 2013

sábado, 3 de agosto de 2013

Empastelados corações ofegantes como canções de amar

foto de: A&M ART and Photos

Um corpo de açúcar que se derrete com a luminosidade das palavras, um corpo de estrelas voando sobre a Primavera das gaivotas cansadas, um corpo, belo, esbelto, poético, um corpo de açúcar com um olhar nocturno caminhando junto ao cais das esmeraldas adormecidas, um corpo em açúcar, desejando ancorar às amarras do silêncio...
Saboreavas as amêndoas escritas no chocolate da manhã, lias os poemas inventados e que em pedacinhos de sombreados papeis, apareciam no teu café, mexia-lo, e com a colher de prata, retiravas-los, e colocavas-los na borda do pires com floreados tristes, tristes, tão tristes, como as lâmpadas das árvores sem rosto, quando o olhar se esconde dentro do xisto, galgando socalcos, até caírem no rio,
Trazias contigo um lápis de espuma com que escrevias no teu corpo de açúcar as bolas de sabão que uma alegre criança lançava no vento de pétalas amarelas, brincavas nos olhos das gaivotas cansadas, gritavas sonoros gemidos de sílabas perdidas sobre a mesa-de-cabeceira onde poisava um livro com muitas folhas, sem palavras, muitas folhas desprovidas de vida, sem desenhos, sem gemidos, sem uivos, um livro como o teu corpo de açúcar, por vezes... recheado de incenso, por vezes triste, triste como os floreados teus seios, como tristes, triste as tuas mãos saboreando as uvas embalsamadas pela sombra do Douro, curvilíneo o teu desejo, em pequenos círculos de oiro, ias inventando o prazer da leitura, construías abraços com pequenas lágrimas das velhas videiras, adormecidas, embebidas no suor do teu corpo
De açúcar?
Empastelados corações ofegantes como canções de amar, sítios dispersos, algibeiras envenenadas pelos míseros cêntimos de um dia de trabalho,
Açúcar?
De, pensava eu,
Mas veio o vento, levou-te, misturou-te com a água que batia nas vidraças de pano, cortinados de papel chorando a tua partida, o espelho, esse, deixou de redesenhar o teu corpo em açúcar, e como uma criança, subiste as escadas do castelo de areia, onde habitas e te escondes, e vives... como uma
Não
Como uma pequena esfera do tamanho de uma cereja, os teus lábios saciavam-se com os fluidos das abelhas com asas de borboleta, e diziam-se na tua rua
Ela, tão bela, e de açúcar,
E de areia, onde habitas, no teu castelo junto às rochas dos petroleiros..., e, e ela, tão bela, e de açúcar, ela.

(Não Revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó

sábado, 8 de junho de 2013

Como todos os versos dele...

foto: A&M ART and Photos

Tinha medo do escuro e das mãos não tuas, cresciam em mim desejos imprimidos no papel grosso e quase cartão onde embrulhávamos os demais objectos não utilizados, tínhamos apenas uma cama para as duas, e éramos uma lágrima antes de romper a madrugada janela adentro, ouvíamos ranger a cidade, ouvíamos os rosnar dos autocarros dando os primeiros passos avenida abaixo, ouvíamos o estender de braços, sobre a cabeça, do rio que ficava a meia dúzia de metros dos nossos encontros secretos, depois, abríamos a janela, dávamos as mãos, e fumávamos os primeiros cigarros de nós, e éramos felizes assim
Poemas que vão integrar esta colectânea,
Horríveis, sangrentos, húmidos às vezes, como esponjas derramando películas de suor que vogais e sílabas alimentam depois de nascer o poema, e morrer o texto, sulcos salivais, vaginais, vagabundos escondendo-se em folhas velhas de jornais, a cama, delírios imaginados por um transeunte camuflado num sobretudo castanho, havíamos combinado escondermos-nos no sótão enquanto nos acariciávamos olhando-nos num espelho magro, esquelético, voraz, volátil como alguns fluidos dentro de pequenas caixas de fósforos, e ardíamos como cachimbos na boca desespero do senhor António Emagrecido com voz penumbra soletrando as pequenas letras no cardápio do prazer,
Poemas que vão integrar esta colectânea, poemas de “merda” e textos de “merda” percorrendo socalcos e avenidas entre arbustos e automóveis de luxo, por favor – Mesa para duas – e depois despedíamos-nos após transcrevermos na palma da mão os poemas envenenados e moribundos, alguns, nem sobreviviam e na primeira carícia acabavam por despenharem-se-me nos seios circunflexos das paixões em marés de Primavera, éramos novas e queríamos – Queremos um quarto de casal se faz favor – e a pergunta parva de sempre
(as meninas vão dormir juntas)
Respondíamos que não, claro que não – Eu durmo no chão e ela dorme com o gato Jerónimo – PARVALHÕES...
Horríveis, percebem?
Os poemas, as noites em claro olhando uma lâmpada embrulhada em papel celofane, encarnada, e pela segunda vez sinto o meu corpo possuído pelo maldito sarampo, eu parecia um forno depois de aquecido e esperando a entrada em mim da massa, que posteriormente, como os poemas, renasce o saboroso pão, e trazias-me a manteiga de amendoim, e quando acordava, sentia-me embalsamada nas tuas mãos..., “tinha medo do escuro e das mãos não tuas, cresciam em mim desejos imprimidos no papel grosso e quase cartão onde embrulhávamos os demais objectos não utilizados, tínhamos apenas uma cama para as duas, e éramos uma lágrima antes de romper a madrugada janela adentro, ouvíamos ranger a cidade, ouvíamos os rosnar dos autocarros dando os primeiros passos avenida abaixo, ouvíamos o estender de braços, sobre a cabeça, do rio que ficava a meia dúzia de metros dos nossos encontros secretos, depois, abríamos a janela, dávamos as mãos, e fumávamos os primeiros cigarros de nós, e éramos felizes assim, assim, assim como hoje, poisando os cotovelos no peitoril de verniz sobre a Avenida Almirante Reis, e comíamos Sábados à noite, depois de acordarmos com hálito a chocolate e a beijos de açúcar”, mãos, as mãos tuas em mim, depois, depois a penúria de vivermos sobre um mar de areia branca, sem barcos...
Horríveis, percebem?
Como todos os versos dele...

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Desenhava-te no espelho da montra do senhor Ernesto

foto: A&M ART and Photos

Percebia-se, pelas tuas nádegas de algodão, que a noite entranhava-lhes como pássaros na algibeira de um mendigo, dormiam em caixas de papelão, pobrezinhos, escreviam sobre as ombreiras do ensonado dia, “caixas simples cartão”, porque era chique, porque estava na moda, porque ao fundo da rua sentia-se o ressonar da lua, e a transpiração de saliva dos pulmões de aveia, não tínheis pequeno-almoço, preçário, cardápio ou subsídio diário, uma sandes de pouca coisa, ou quase anda, chorava no interior de duas finas fatias de pão, sem saberdes que lá fora, ao longe, de uma escada em madeira, desciam os anjos e os gemidos silêncios da verdura que cobrem os campos da aldeia, como pedras, lajes de granito, lápides em cimento, e aos poucos, de poucos, apagariam-se-lhes todas as letras da literatura pura e nua, entre desenhos e sílabas, entre candeeiros de vidro e lâmpadas de papel,
gostava muito de ti,
Desenhava-te no espelho da montra do senhor Ernesto, em traços finos, colocava-te sobre os olhos um fio doirado de cabelo, dava-te lábios com sabor a chocolate, tinha-te na boca como oxigénio essencial à minha respiração, ouviam-se coisas mortas, objectos despedidos, canas de pesca, carretos e chumbeiras, bóias, anzóis e as pesadíssimas botas de borracha, e mesmo assim, ouvia-te
gosto de ti,
Percebia-se, pela ausência de cubículos para todos, que nem nus somos iguais, uns, mais diferentes do que outros, e havia sempre um que ficava sem onde pernoitar na fria noite de Janeiro, aqui, porque lá, bastava-lhe cobrir-se com um ramo de palmeira, havia um largo, eles abraçaram-se longamente e esqueceram-se que eram uma rocha à beira do rio, do largo, mais acima, uma duas palmeiras adormeciam já devido às distantes horas que estavam previstas para regressarmos, nem um único som, uma única palavra, nada
só e só o beijo da despedida,
Só e só, e não muito mais, como anos depois, as palmeiras continuam adormecidas, mais velhas, claro, mas ainda estão vivas, não há muito tempo, estive com elas, almoçamos juntos, e recordamos noites, noites, noites que eu mesmo já tinha esquecido, falaram-me de uns pássaros que poisavam nos nossos ombros, e também de umas flores, se não estou enganado, isto é, se não fui enganado por elas, de umas flores amarelas, ou cinzentas, ou
gostava muito de ti,
Ou incolores, como os beijos, ou indolores, como as ondas do Oceano que ficávamos a olhar até desaparecerem sobre os telhados de Lisboa, o cheiro do rio entrava dentro dos nossos corpos escondidos em caixas de papelão,
“caixas simples cartão”
E hoje, quando estou no largo, debaixo das velhas palmeiras, ao longe a lua em movimentos descoordenados, sem luz de candeeiro, dos minguados olhos que o sol deixou sobre a mesa-de-cabeceira, e derramadas sombras construindo imagens na esplanada dos arbustos com braços negros e pernas encarnadas, perguntava-te pelas cartas perfumadas, e tu
queimei-as, porquê?
Apenas pelo perfume, porque pelas palavras perdia o sentido das letras, deixei de amar palavras, frases, livros, cadernos, poemas, “... e toda a merda comestível...”, só e só pelo perfume, só e só quando desce a noite e de barriga para o ar, eu deitado, olho o tecto, vejo estrelas azuis, estrelas pretas, estrelas... como chuva friorenta em Primavera, e só e só, tenho saudades do perfume
das amoreiras em flor, das mimosas, de deitar-me no chão e fazer desenhos imaginários no céu nocturno da cidade, a cidade proibida, com calçadas, ruas, ponte e pontões, “putas” e “cabrões”, a cidade dos barcos com ferrugem, a cidade das casas comestíveis depois da sobremesa, e homens com alegria, e homens em bebedeira em fila Indiana para ter acesso a uma merda de uma caixa de papelão,
“uma linda caixa em fino cartão, três assoalhadas, uma varanda para o Tejo, casa de banho completa, e ascensor, e muitas cartas, cartas de amor, todas elas, perfumadas...”
E eu dava-lhe a mão, e passávamos a noite dentro do ascensor, em subidas, em descidas, e às vezes
parávamos, e esquecíamos-nos que algum dia estivemos debaixo de duas velhas palmeiras a construir o beijo mais literário de sempre, o beijo poético
E às vezes,
o beijo fatídico,
E às vezes adormecias nos meus braços...

(ficção não revisto)
“Alguém vai dizer: ficção o caralho...!”
@Francisco Luís Fontinha

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Inventaste-me o sono das noites de água

Inventas o espelho, e o caixilho onde dorme o espelho, inventas o prego, onde penduras o espelho, e a parede, inventada por ti, inventas a sombra que escurece o espelho, onde te olhas, onde fumas, o cigarro inventado, pela secura do silêncio agachado no pavimento ósseo com ripas de fumo e pedacinhos de suor da tua pele perfumada, a água inventada, inventas com as tuas mãos as calibradas pálpebras (de) (da) madrugada, perdem-se os sossegados momentos de literatura dentro da esplanada vestida com as roupas por ti, inventadas
Todos Todas Adivinhos,
Dos murmurados alpendres onde me arrumavas os braços e as pernas depois de me usares,
Acordavas cedo, puxavas as cordas da noite e começava a clarear o dia, inventavas
Descobri tardiamente
Que inventavas os dias só para mim, como o jardineiro quando sente que uma fina pétala se desprende do esqueleto da Cinderela e também ele, inventa as espinhas que sobejaram dos peixes de madeira que a filha fez numa das aulas de Trabalhos Manuais, ele aprendeu a pregar botões e a fazer uma simples instalação eléctrica, e com alguma picadelas nos dedos de areia
Descobri tardiamente que não tinha jeito para invenções,
De areia como as línguas de fogo que começaram a descer dos telhados de vidro das casas dos mais enlouquecidos pasteis de nata, do Rossio até Belém, aproveitando o vento e o sabor a morango do rio, a cidade ia ficando-se
Como tu antes de inventares esse maldito espelho onde te olhas ao acordar, a janela do dia de ontem, onde vês o restaurante encerrado por falta de clientes, as cadeiras vazias onde se sentavam as galdérias noites e candeeiros a petróleo que a cidade rejeitava, ouvíamos um banco de jardim a passear junto à Torre de Belém, fumava cigarros de enrolar, tinha na cabeça uma pano vermelho, e era alimentado por painéis lunares, e
Saltitava-lhe da voz
Todos Todas Adivinhos,
A rouquidão do prazer quando os mamilos da Cinderela, colorida com os lápis de cor da miúda, a filha da Rosalinda, chegava da escola, e poisava a mochila no pátio de gelo em frente ao pindérico jardim onde brincava um casebre empobrecido, delata, e um olho em xisto, E
E
Saltitavam-lhe da voz as laranjas podres e os limões sem as palavras que tu
(Inventas no espelho, e no caixilho onde dorme o espelho, inventas no prego, onde penduras o espelho, e na parede, inventada por ti, inventas na sombra que escurece no espelho, onde te olhas, onde fumas, no cigarro inventado, pela secura do silêncio agachado no pavimento ósseo com ripas de fumo e pedacinhos de suor da tua pele perfumada, na água inventada, inventas com as tuas mãos as calibradas pálpebras (de) (da) madrugada, perdem-se nos sossegados momentos de literatura dentro da esplanada vestida como as roupas por ti, inventadas
Todos Todas Adivinhos),
Inventavas os diários de prata, de uma cigarreira simples, modesta, honesta, uniformemente acelerada, como o movimento dos teus olhos depois de fazeres O Amor,
Esquadro, Régua, Lápis e Borracha, Uma folha eterna de papel
E o dito O Amor deixa as marcas de sujidade nas nuvens dos céus tempestuosos da cidade envergonhada, a casa
Treme, o teu espelho
Recordas-te? Aquele, o inventado por ti...
Esboça pequenos círculos de Ilhas embebidas em vulcões e andorinhas selvagens, e vêem-se os distantes rochedos onde deixavas as minhas cartas, e depois, de mastigares todas as minhas palavras, inventavas-me entre os pilares de açúcar e o medo das noites com lâmpadas quadradas nas paredes de vidro dos tectos falsos das gargantas das mulheres apaixonadas, pelo vento entravam todas as manchas de óleo e os pedaços de saliva, que o mar, do outro lado da cidade, cuspia contra os táxis e os barquinhos de papel com desenhos de flores e casinhas castanhas com uma árvore negra, hoje, logo hoje, perdi as palavras dos teus cabelos
Castanhos,
Negros,
Azuis quando desces à fundo do Oceano,
(de suor da tua pele perfumada, na água inventada, inventas com as tuas mãos as calibradas pálpebras (de) (da) madrugada), e vinte e oito anos depois, a morte, a morte trouxe-lhe o sossego, a morte trouxe-lhe a paz, a morte trouxe-lhe o encantado quarto enfeitado com verdes panos e lilases veludos que a mesma morte tinha comprado em São Tomé e Príncipe, e descansasse na Paz dos Anjos,
Como qualquer espelho inventado tem direito.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 17 de abril de 2012

Algibeiras da tarde

Pareço um espelho
poisado sobre o pavimento molhado
incenso e marfim
nas algibeiras da tarde
e tudo à minha volta arde
e tudo à minha volta
incenso e marfim
e fios de nylon
descem das árvores doentes
incenso e marfim
contentes
nas algibeiras da tarde,

pareço um espelho
um palhaço que brinca na esplanada do Baleizão (Luanda)
entre cadeiras imaginárias
e migalhas de pão,

pareço um espelho
made in China,

(um homem sem destino
desde menino)

entre cadeiras imaginárias
e madrugadas de cetim
antes do pequeno-almoço
ao virar da esquina
no centro do jardim
um espelho,

nas algibeiras da tarde.