quarta-feira, 24 de abril de 2013

As cubatas da saudade e os musseques com homens de pano, com mulheres de palha...

foto: A&M ART and Photos

Eu pensava que os dias eram pequenos aeroplanos sobrevoando as cubatas da saudade e os musseques com homens de pano, com mulheres de palha, com meninos em forma de triciclo, e sempre que me erguia, ouvia, sentia, vinha até mim uma nuvem encarnada com olhos verdes, sobre ela, brincava um menino com um papagaio de papel e de cor amarelo, e eu sem saber o que fazer, puxava o cordel, e caía o céu sobre nós, as estrelas transformaram-se em papeis tão finos e pequenos que,
mal se conseguiam observar quando atingiam o pavimento térreo do largo dos morcegos nocturnos, havia mãos entrelaçadas, havia suspiros misturados em suor e lábios diluídos em pequenas bocas de sobremesa, depois do jantar, o cigarro perfumado, construído devidamente para o efeito, e uma borboleta em batimentos de asa fazia com que no terceiro andar direito, onde apenas dormia a minha vizinha Amélia, caíssem todos os objectos que jaziam sobre a cristaleira, coisa estranha, a minha, a vida de mim, como as mãos de ti penduradas nas mãos de ela, e claro que nas mãos dela, mas hoje, a mim, apetece-me escrever “nas mãos de ela”, e das mãos de ela
Nasceram pássaros, pequenos objectos em puro cristal, pratos em porcelana, barrigas de aluguer, flores de papel e janelas com cortinados de vidro e no lugar dos vidros, pequenos quadrados de tecido, de preferência, escuro, preto, assim, quase nunca se nota a sujidade, e nas tascas perdidas pela cidade, uma finíssima toalha em plástico ornamentava uma mesa caquética, que quando se pegava nos talheres, e como às vezes, estes, eram tão finos que se dobravam sobre o próprio estômago de aço, e tínhamos de recorrer às nossas mãos para dilacerar meio frango no churrasco em menos de quinze minutos, e era nessas alturas que sentíamos a mesa em pequenos tremores de terra, depois iam aumentando... até o líquido dos copos do jarro de alumínio, se derramar, e aos poucos, caminhar sobre a horrenda decoração estampada na toalha de plástico, e era quando vinha a menina Joana, trazia sempre um pano entalado entre a cintura e o cinto que segurava-lhe as calças de ganga, que nós fazíamos apostas para adivinharmos de que cor era, e como sempre, eu perdia, porque nunca acreditei que ela tivesse a cintura esbranquiçada, como eu tenho todo o meu corpo, e o restante, fosse num tom castanho com sílabas de madrugada, e o frango, como sempre, uma delícia...
e de mãos dadas lá íamos caminhando solenemente junto ao mar, nuas, sem pudor ou medo que o feitiço da paixão e do prazer provoca nas pessoas, nas flores, ou mesmo nos pássaros, e um dia pensei como seria uma cena de amor entre duas moscas, num sótão, apenas com uma divisão, a um dos cantos, um pequeno divã, e em toda a volta do compartimento uma longa estante recheada de livros, onde apenas havia o vazio da clarabóia, imaginava as moscas como nós, nuas, dávamos as mãos, e eu poisava-lhe a minha mão sobre o ombro dela, ela a princípio, em pequenos movimentos de asas, como a borboleta, olhava-lhe nos olhos, como tu, olhas-me e desejas-me, e gemidos de silêncio rompiam a escuridão da pequena solidão de vidro, deitava-me de barriga para o ar, às vezes, sentia as asas dobradas como pequenas folhas de cartolina, tu, docemente, colocavas-me a mão debaixo de mim, e voltavas a fazer com que as minhas asas, fossem novamente asas, e não papel grosso amarrotado, como os dias que não saíamos, como as noites que nos amávamos sem percebermos que do outro lado do telhado, um parvalhão com um mata-moscas na mão, perseguia-nos, sem perceber
Que o amor
quando quer,
Acontece.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

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