quinta-feira, 12 de março de 2015

os livros


ausento-me deliberadamente das sombras envergonhadas
que habitam os socalcos da saudade
sou um ninho de cacos
e pequenas películas de silêncio
pela madrugada
oiço a tua voz aprisionada nas frestas deste cubículo
há entre nós um espelho cansado
e triste
ausento-me dos teus lábios
e perco-me nas palavras sem nome
como as ruas da tua cidade
ou da tua aldeia

o musseque
fervilha
transpira poesia
e o teu cabelo suspenso numa fotografia
tão distante
o mar
e as marés de sono
que me embrulhavam
hoje
não mar
não sono
nada

amar
amar
amar as flores e os desenhos embalsamados
correr montanha abaixo
deitar-me sobre ti
apenas
o peso das nuvens pinceladas de alfazema
a aceleração
acorrentada a uma equação
a física
a matemática
e... e amar

nada
os separa
os fios de sémen perdidos no cacimbo
o cachimbo em brasa
lúcido
de braços abertos
e abraça-me
e beija-me
como se beijam todos os livros
folheados
e no entanto
ausento-me deliberadamente das sombras envergonhadas...



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Quinta-feira, 12 de Março de 2015
O falso rico esquecido no asilo do dinheiro, porque incha o corpo do rico e míngua o corpo do pobre?
As palavras,
Só. eu?
E..., e sim, o cemitério engasgado nos ossos de António, o meu melhor amigo, companheiro, e... e nem me avisou que ia viajar, de veleiro ao ombro, meia dúzia de bicuatas... e nunca
A fome dentro de um subscrito, lembrava-se das tardes de infância inventando barcos em esferovite e sonhos, ele
As palavras?
Ele sorria, percebia-se no seu rosto o esqueleto e a alma da alegria, e no entanto, morreu...
E nunca, e nunca mais conversou comigo...
António... António amava-o...



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Quinta-feira, 12 de Março de 2015

quarta-feira, 11 de março de 2015

O carrossel


Este sítio encalhado nos muros da solidão
que acorda dentro de mim
todos os dias
e dorme
comigo
todas as noites
este sítio embarcado
como sinfonias voando numa seara negra
junto à eira
olhando o silêncio luar
do corpo as desassossegadas imagens
entre parênteses

curvos
rectos
uniformes
disformes
molhados
às vezes
outras
sangrando lágrimas de nada
e tudo
ou...
o amor envenenado pelas ervas daninhas
ou...

imaginando flores em papel aprisionadas numa esquina
da cidade
a abarrotar de sombras
e sombras
e tudo
e nada
como as simples fotografias do prazer
na cama
sentado
ouvindo o pulsar do mar
brincando no corredor da saudade...
o carrossel infinito da infância.



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Quarta-feira, 11 de Março de 2015

terça-feira, 10 de março de 2015

As três ciganas do deserto, os homens buscam a sina do silêncio, imaginam-se uma criança de prata, frágil, brincando nas palavras rochosas da poesia, João perde-se nas cartas,
O jogo,
A mentira
Fugir para outros continentes, outras galáxias... os homens, apaixonados pelos berros, da menopausa, o sal brincando nas encostas do abutre negro, sobre ela o beijo desenhado na areia, colorido, embrulhava-a numa estrofe envergonhada, levava-a para as cabanas dos sonhos adormecidos, cerrou os olhos
Foi bom, amor,
Só?
As pálpebras de solidão gritando pela liberdade, amanhã vou recomeçar a viver, a sonhar, a... a escrever nos teus olhos,
Como são os teus olhos, meu amor!
Perdi-me,
Só?
Deus, cambaleando pelas ruas do sofrimento, olha-me e pergunta-me
Meu filho!
Sim, pai...
O corpo, meu filho, o corpo...
Três ciganas abraçadas à ardósia da tarde, os homens, conversas, e...
Palavras...
E, sim pai, não percebo as tuas palavras e não percebo os teus poemas,
Desculpa-me... meu filho,
Palavras...
Só?


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Terça-feira, 10 de Março de 2015

Em farrapos... as palavras


Em farrapos
as palavras desenhadas no teu corpo
entranham-se na tua pele
os cubos e os círculos do desejo
tens no olhar o espelho da saudade
saudade de...
em farrapos
as palavras
e a cidade
que morrem na clandestinidade
as ruas dormem docemente nas tuas pálpebras cinzentas
como pássaros embriagados pela madrugada

não oiço o sino da Igreja
porque o teu sorriso
deixa-me surdo
cego...
sem... sem palavras... cansado
em farrapos
de ninguém
ao acordar
o pequeno-almoço dispensa-me
fui despedido pela boca do sono
e alimento-me de cigarros
e palavras... em farrapos... a arder...

as migalhas inventadas por um livro de poesia
o livro de poesia poisa sobre a secretária
e o teu corpo nos meus braços
baloiça
dança
e sinto
a Primavera e a esperança
e a esperança
esperança...
esperança...
nos lábios das andorinhas
em flor... em cio... antes de partir o dia.


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Terça-feira, 10 de Março de 2015

segunda-feira, 9 de março de 2015

Amanhã, cor-de-rosa, húmidas canções de Primavera nas ilhargas do silêncio, habito, tu habitas e ele apaixonado, pelos pássaros, hoje
As primeiras andorinhas, falei com elas, conversamos sobre poesia
Acreditas, meu amor?
Poesia...
Hoje centenas de iões dentro de um quarto escuro, sem janelas, sem porta
Cadeia?
A cárcere, da palavra, sem porta, sem... vida, mesmo assim sou feliz naquele local, chamar-lhe-ás... cemitério, jazigo, mas não, meu amor, a cárcere da palavra, como?
A cárcere, da palavra, ou, A cárcere da palavra?
Narcisos, viajantes bagagem, imponderáveis poetas, nos beijos, nas bocas sideradas pela saliva, em pequeno, ele, imaginava a escola um grande navio, o porão
Tão fundo, mãe,
Meu amor, as palavras cinza das minhas mãos, ter-te e não te ter, nos meus braços, as imagens a preto-e-branco dos teus olhos, existes?
Tão fundo, mãe...
A paixão e o amor, o centeio correndo em redor do pôr-do-sol, e ele
Coitado, imaginar uma escola um grande barco...
Louco, e ele, mãe, dizia-me que os sonhos são desenhos de um qualquer pintor em desespero, a renda de casa, luz, pouco mais do que isso
Pobres homens e mulheres...!
Tão fundo, mãe... a paixão e o amor, o centeio correndo em redor do pôr-do-sol, e ele... e ele embrulhado em sonhos, sonhos, mãe...


(ficção)
Francisco Luís Fontinha – Alijó
Segunda-feira, 9 de Março de 2015

Vultos nocturnos


Sinto as tuas lágrimas no espelho da manhã
como campânulas de luz embriagadas pelo silêncio
roubaram-me a esplanada e as cadeiras onde me sentava
e...
percebia quando passavas apressadamente
que o dia não tinha acordado
pálpebras cerradas
corredores escuros onde te escondias
quando regressava a noite
e...
percebia...
as vozes da saudade dentro de um cubo de vidro

os vultos nocturnos embrulhados na morte
como flores em decomposição
perdem o perfume
e a pele começa a envelhecer
transformam-se em cinza
cigarros a arder
cigarros procurando avenidas de voo
enquanto o fumo se distrai a observar o rio
transatlânticos
marinheiros de homens
engatados pelas árvores de um qualquer jardim
de uma cidade em construção...


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Segunda-feira, 9 de Março de 2015

domingo, 8 de março de 2015

(para a minha mãe)


Anoitecia sobre os teus ombros, sombras de sal voavam no teu olhar, como serpentes de papel a brincar numa árvore, eu brinco, tu brincas...
Amanhã?
A luz, os anzóis da tristeza suspensos nos desejos de cristal, não durmo, os sonhos, morrem os sonhos, morrerem as amendoeiras em flor,
E eu,
E eu?
Amanhã, cor-de-rosa, húmidas canções de Primavera nas ilhargas do silêncio, habito, tu habitas e ele
Habita?
Onde, onde?
Ele perdido numa tragédia serrana, a montanha crescia, e ele
Habita,
Anoitecia, e ele caminhava ribanceira abaixo, entra nos picos da alegria... e todo o corpo desenhado, círculos de sangue vagueando nos seus braços, tive medo, mãe, amanhã, mãe, amanhã saberás porque existem os cavalos de areia, aqueles
Como os do Mussulo»
Sim, mãe, sim... como os do Mussulo...


(ficção)
Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 8 de Março de 2015

O salivar ciúme da solidão


Não consigo encontrar os alicerces do dia
das crateras da tua voz oiço o salivar ciúme da solidão
viver dentro de uma caixa em cartão
e a noite desaparece na carlinga do beijo
descem sobre os teus ombros os rochedos da paixão
as palavras emigram como sementes de vento
contra as ruínas do teu peito
ausente
as pessoas
os dias
as viagens sem regresso
na ponte metálica das marés de vidro

há na tua voz um círculo de luz
que vagueia entre o luar
e a sofrida canção da madrugada
o xisto poisa na tua mão
como se ele fosse uma rosa embalsamada
folhear os joelhos dos livros enganados
o rio em suicídio contra a montra do sofrimento
e dos teus seios
oiço...
o salivar ciúme da solidão
na cárcere
doido

perdi-me neste emaranhado complexo de equações
sem solução
o quadriculado papel em chamas
ardente dos lábios em fuga
e não suporto as lâminas de aço do medo
perdi-me
doido
na cárcere das ardósias clandestinas e vaidosas da tarde
a tarde...
é tarde meu amor
é tarde
quando adormeço nos teus braços.



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 8 de Março de 2015

sábado, 7 de março de 2015

Percebi porque o mar me abraçava, vinte e duas noites nos teus braços
E?
O cansaço da aldeia regressando ao passado, velhas casas em novas casas, eiras, espigueiros mergulhados na límpida manhã de verniz, este corpo, este corpo avizinhando solidão, peste, e
E?
Nos teus abraços, o meu nome, a minha identificação e morada
Amanhã quero-te,
Dizias-me em cintilações palavras que era preferível a separação,
Separamos-nos então...
E morada, sem número de polícia, sem-abrigo alvorada, saía do bar, desenhavas círculos na calçada, e
Amanhã quero-te,
E meia dúzia de bugigangas,
Não pagamos,
E?
E... algumas chávenas em pura porcelana, made in ex Congo Belga, na fotografia, ele sentado na esplanada do desassossego, gel na cabeça, sapato pontiagudo... e calças estreitas junto aos tornozelos, e
E?
Bugigangas baratas, tinham nas palavras as janelas do sexo, a aventura, uma noite
Stop,
Roça-se-lhe no corpo, e este
E?
Baloiçando no capim...


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sábado, 7 de Março de 2015

As imagens prateadas do silêncio


Deitavas a cabeça na minha algibeira
e imaginavas-me um tumultuoso Oceano de cinza
abrias os olhos
e brincavas nos meus lábios
havia dentro de nós um vulcão adormecido
talvez doente...
ou... ou louco
como as imagens prateadas do silêncio
ardias
parecias a fugitiva clandestina das palavras embriagadas
e os outros
e as outras

ou... ou louco
e loucas
as bocas
dos triciclos de sombra
caminhávamos num sótão com janelas para o mar
os barcos
e as gaivotas
revoltados
revoltadas
em pequenas pálpebras de areia
os triângulos do orgasmo
abandonados numa cama húmida

imunda
desfeita em cacos
e gotículas de sangue...
a cidade
os pássaros em granito
gritando
uivando
como carnívoros corações de cor
amanhã
a cidade
sobre a minha algibeira...
um sorriso

e em cada amanhecer o toque da campainha
saltar a janela
e descer
até à ruela sem saída
um sorriso
uma aldeia vagueando nos meus abraços
como serpentes de iodo
vomitando poemas no meu peito
rangias
uivavas...
e querias-me
acorrentado aos teus desejados sonhos vestidos de adeus...



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sábado, 7 de Março de 2015

As mãos de um sábado...


(desenho de Francisco Luís Fontinha)


habito dentro deste livro inacabado
existo porque gritam as palavras
e os sonhos amargurados
não tenho tempo para olhar o mar
nem percebo o cheiro deste rio envenenado pelo silêncio
um cigarro
mal-educado
apagado
sessenta anos encurralado nestes socalcos sem nome
habito
dentro
do livro inacabado...

os tristes sorrisos das lanternas da solidão
vendo-me
vende-se
tudo
nada
coisas estranhas
esta calçada
viva
vivo
apagado
não tenho
o tempo

nem a vida
de marinheiro
sou um barco enferrujado
sou o aço triturado pelas mãos de um sábado...
apenas
outras coisas
como as simples janelas de uma prisão
prisão
a prisão
do meu falar...
habito
habitar no teu peito de livro encalhado.



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sábado, 7 de Março de 2015

sexta-feira, 6 de março de 2015

Eu?
Nunca,
O amor, a casa recheada de cacimbo e palmeiras desgovernadas, o meu irmão reaparece e mal o reconheço, que estou mais velho, cansado..., claro, tantos anos...
Como estás, meu querido?
Eu?
Nunca
A relatividade em equações, a luz enfestada de palavras e beijos de adormecer, e eu
Eu?
E eu olhando as singelas pálpebras do Oceano de prata, nada a acrescentar em minha defesa, perdi-me na ponte do solitário adeus, morreram os sonhos
Amanhã
Três horas da tarde, cemitério da Ajuda, os sonhos, o corpo dela engasgado nos rochedos da paixão, Foder ou não foder...
Eis a questão do artista, a tela simplificada, amanhã restará uma única sílaba ao acordar, o espelho
Mais nada a acrescentar aos teus desejos, meu filho...
Cansei-me das palavras, mãe, das flores, dos sonhos e das cidades de vinil, cansei-me das mãos de porcelana da madrugada, sem janelas
O cubículo?
Morreu, algemou-se ao silêncio da noite, escreveu no olhar
Amo-te,
Escreveu no olhar as suas últimas palavras, despediu-se das árvores, despediu-se das gaivotas, cerrou os olhos, e
Vive-se numa selva, dizia-me ela ao acordar, e eu
E tantas coisas belas dentro de ti, e eu segmentado, e eu ensanguentado das lágrimas das equações trigonométricas do sexo, o prazer, a confusão de corpos numa cama imaginária, gemes, abraçam-se às amoreiras do dia, acendem a luz, e
E eu?
Nunca...
E eu parecendo uma página velha de um velho livro, o reumático, as atrozes, os pontos ocos suspensos no espaço, e mesmo assim, ela
Amo-te!
Claro que não, claro que não...
O que é o amor, meu querido irmão?
Coisas,
Nunca...
Percebi porque o mar me abraçava.



(ficção)
Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sexta-feira, 6 de Março de 2015

Pincelados corações de pólen


O acrílico beijo
na tela do desejo
sem medo de perder
o acordar da madrugada
ele abre a janela
e percebe que afinal...
a madrugada é um fantasma
uma coisa de nada
sombras
silêncios
e
e abraços na escuridão

ela sabe que os dias morrem
e nas aldeias de granito
habitam pássaros de papel
coloridos
aventuras
sem destino
acorrentados aos gritos da caverna do adeus
ela sabe que os dias
poucos
nenhuns
absorvem a luz
disparada por um olhar invisível

e no entanto
o beijo transforma-se em fotografia
negra
como o poço da morte
na infância de uma cidade perdida
há nos seus lábios abelhas
e pincelados corações de pólen
e voam
poucos
nenhuns...
homens conseguem entranhar-se no seu corpo
e ela desaparece em cada avenida do sofrimento.



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sexta-feira, 6 de Março de 2015

quinta-feira, 5 de março de 2015

Os berros argamassados da menopausa, o sal brincando nas encostas do abutre negro, a carne em putrefacção, distante, os berros
Amanhã vamos?
Berros, os berros das medusas entranhados no corpo, os sonhos morrem, morrem os beijos e as carícias da madrugada, menstruais palavras dentro do poema, gritam, da menopausa, perdeu-se o silêncio eterno das andorinhas em flor,
João?
Sim, pai,
Onde puseste os meus óculos?
Sei lá...!
Dentro da fala, os sons em delírio, porque dentro deste quarto habitam livros decadentes, desenhos sem rosto, imagens, fotocópias de fotografias a preto e branco, muito longe
João?
Sim... pai...!
Os homens chegaram, temos de retirar todas as rosas do nosso jardim, não vamos deixar que nos penhorem a melhores rosas da aldeia, pois não'
Não, pai...!
Aos berros, da menopausa, o sal brincando nas encostas do abutre negro, sobre ela o beijo desenhado na areia, colorido, embrulhava-a numa estrofe envergonhada, levava-a para as cabanas dos sonhos adormecidos, cerrou os olhos
Foi bom, amor,
Só?
Os olhos na cárcere do sofrimento,
Stop...
Só, as sílabas dos fósforos em aventuras,
Stop, aos berros... o Rossio embriagado...


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Quinta-feira, 5 de Março de 2015

Trapézio do sono


Tenho na sombra do sono
um pilar de areia
uma casa em ruínas
sem telhado
sem braços
sem cabeça
tenho na sombra do sono
o cansaço das palavras
o sorriso do poema
enquanto o poeta gagueja
sofre
e sofre

(sem braços
sem cabeça
sem telhado)
os olhos da serpente
fingindo corações de luz
como charcos de lama
sapateando junto ao mar
e eu
na sombra do sono...
inventado papéis de amar
comestíveis
ao pequeno-almoço

(sem braços
sem cabeça
sem telhado)
este poema disparado
pela mão do sofrimento
levanto-me da insónia
pensando que já acordou o dia
levanto-me do dia...
acreditando que já é noite
escura
húmida
e vagabunda...



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Quinta-feira, 5 de Março de 2015

Calçada da Ajuda


Está escuro
no exíguo espaço dos teus braços
mantenho-me aceso como uma fogueira invisível
no meio do campo
deserto
sem árvores
pássaros
ou... enforcados marinheiros
procuro a enxada do silêncio
e gemem as pedras xistosas dos lábios da alvorada
escuro
nada

como o transeunte sentado
na Calçada da Ajuda
procura
procura o carteiro
carta escrita
sem remetente
vem a morte
e leva-o para a biblioteca
abre um livro
folheia-o como se fosse o teu corpo adormecido sobre as lágrimas do veneno...
afugenta as palavras
e a tempestade alicerça-se-lhe no peito

começa a voar nos cortinados da noite
acende o seu último cigarro do dia...
e pergunta-se
quando?
quando terminará este dia...
a morte dos sonhos
envergonhados
lânguidos nas janelas sem vidros
o mar dança-lhe na algibeira da solidão
bebe um uísque...
e acredita que a poesia
habita no terceiro esquerdo dos teus seios...


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Quinta-feira, 5 de Março de 2015

quarta-feira, 4 de março de 2015

Sentava-me no Tejo a contar cacilheiros, no final da tarde, depois de alguns cigarros, percebia que todos aqueles cacilheiros pertenciam ao exército dos apaixonados anónimos, tristes, convictos, passeavam-se como se fossem crianças num qualquer recreio de uma escola já extinta, encerrada,
Morta
Morreu, o Miguel trazia na algibeira meia dúzia de moedas encardidas pela sombra da noite, dormia debaixo de alguns cobertores de cartão, antes de adormecer desenhava no passeio pedestre algumas das imagens sem nome, de tantas outras... as fotografias de família
Morta?
Pais, avós... irmãos?
Sentava-me no Tejo, brincava com as gaivotas, saltávamos à corda, pegava num cinzeiro e esvaziava a algibeira quase...
Morta?
Irmão de papel, fumado, defumado, as palavras no quase... e ele... procurando irmãos invisíveis numa cidade invisível, não há miúdas nesta terra? Ainda é cedo, mais logo, talvez
Quase a desmaiar, sem sonhos, talvez imaginasse esta terra a terra prometida, mas não
Esqueceu-se do aparelho, Sr. António? E agora... como vai ouvir-me...! Sentava-me junto ao Tejo, mas não, fumava charros de areia enquanto a preia-mar se abraçava a mim, beijava-me, fodíamos como dois livros entrelaçados...
Ẽ?
Toca o telefone, morta...
Morta?
Quase...


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Quarta-feira, 4 de Março de 2015

Olhares em beijos de luar...


Esboço os teus olhos na carlinga nocturna do prazer
finjo caminhar sobre as pedras íngremes do silêncio
em vulcão
as palavras desalmadas do caderno negro
as imagens da melancolia
no espelho secreto dos teus seios
fujo
e sem regresso...
imagino os rochedos da insónia
mergulhando na constelação do adeus
o plágio mágico de uma fotografia
e a simplicidade dos sentidos embainhados nas florestas em solidão
canso-me
e fujo
dos lábios em desejo
como as formigas procurando alimento
nas esplanadas da dor
esboço os teus olhos
o esquisso em desassossego dentro da caixa de madeira
janelas
portas
o segredo
quando os dardos envenenados atingem mortalmente o peito do artista
o circo ofegante
em murmúrios e pequenos gestos pincelados de sangue
os aplausos falsos
e os falsos sorrisos
na aldeia
entre ventos e tempestades de areia
sinto em mim o mar
e todas as marés do amor
o poeta adormece junto ao rio
escreve na espuma tingida de saudade
e canso-me
das palavras
e dos olhares em beijos de luar...



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Quarta-feira, 4 de Março de 2015

terça-feira, 3 de março de 2015

(desenho de Francisco Luís Fontinha)


Mãe, como é o mar?
Lençóis de espuma, meu filho, silêncios de sombras poisadas numa tela virgem, aos poucos reaparecem as palavras e os riscos, a arte de amar e de navegar num beijo invisível, sem imagens, sem noite para chorar, as ruas completamente indiferentes às minhas tristezas, as cintilações dos versos descendo os socalcos imaginados pelas tuas brincadeira de menino,
Fui menino, mãe?
Cansei-me das palavras,
Escrita... nunca,
Mais
Amanhã restará uma única sílaba ao acordar, o espelho
Mais nada a acrescentar aos teus desejos, meu filho...
Cansei-me das palavras, mãe, das flores, dos sonhos e das cidade de vinil, cansei-me das mãos de porcelana da madrugada, sem janelas
O cubículo?
Morreu,
As janelas e o espelho completamente envergonhados pela partida do monstro das quatro cabeças, nada mais do que isso, literatura ao jantar, poesia ao pequeno-almoço, e
Morreu,
E alguns gladíolos apaixonados pelo jardim dos arciprestes, sabes? Falamos sobre isso, lembras-te?
Não, não...
Morreu.


(ficção)
Francisco Luís Fontinha – Alijó
Terça-feira, 3 de Março de 2015