quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Uma casa com quatro janelas

Uma casa com quatro janelas voava sobre a manhã apodrecida que do Douro acordava, devagarinho, e aos poucos, pedaços milímetros de saudade subiam os pinheiros vadios e os pássaros bebés brincavam solitariamente com minhocas e azeitonas em compota, eu ainda não era nascido, e dizia-se baixinho que as paredes tinham ouvidos,
O vento era tão forte naquela manhã que tivemos de nos acorrentar aos poucos muros em xisto que sobejaram das tempestades de areia vindas do outro lado da rua, o quintal benzia-se e rezava, e um crucifixo de areia prendia-se voluntariamente a uma árvore enfeitiçada pelo silêncio do amor proibido, havia claridade suficiente para que eles se vestissem e zarpassem como barcos encapuçados fugindo da polícia politica que o Estado tinha inventado, e eu que ainda não era nascido não podia dizer que o Presidente do Conselho era
“Um grande filho da puta”,
Às vezes tinha medo da escuridão quando caia a noite em Luanda, olhava o céu nocturno e sentia os limites entre quatro parêntesis e a casa da aldeia com quatro janelas, em círculos procurava os ouvidos das paredes, e em vão
Nada, nunca os vi, mas apercebia-me que às vezes em nossa casa os adultos conversavam baixinho, e muito devagar, eu questionava-os, e eles diziam que eram conversas de adultos, perguntava-lhes porque só eu é que jantava e eles
Não temos fome,
Curiosamente, nunca tinham fome, e curiosamente hoje percebo que o faziam para que o jantar chegasse para mim, e eu que ainda não era nascido não podia dizer que o Presidente do Conselho era
“Um grande filho da puta”,
Como todos os Presidentes do Conselho de todas as ditaduras, e curiosamente
Não temos fome meu filho,
Mergulhávamos sonambulamente nos barcos com algarismos pintados com restos de tinta que uma lata de sardinhas trazia na algibeira, e quase tenho a certeza que o mar queria comer-nos, mas nós éramos fortes e estávamos acorrentados a um fio invisível de aço que prendia-nos a tenda de lona ao muro anão de xisto com artrose e percebia-se que da coluna vertebral vinha um perfume estranho, como as palavras que o rio reflectia antes de chegarmos ao mar, e a chuva tomava conta de nós, e a chuva misturava-se nas garras dos senhores residentes do Conselhos de todas as ditaduras, os assassinos
Também amam e sofrem de desamor, respondiam-nos eles quando viemos encaixotados dentro de uma casa com quatro janelas, atravessamos o oceano como pássaros dentro de uma gaiola de vidro, e quando regressava a noite eu ouvia-os
Não temos fome,
E eu sabia que tinham, e eu sabia que a casa com quatro janelas de vidro voava sobre a manhã apodrecida que do Douro acordava, devagarinho, e aos poucos, pedaços milímetros de saudade subiam os pinheiros vadios e os pássaros bebés brincavam solitariamente com minhocas e azeitonas em compota, eu ainda não era nascido, e dizia-se baixinho que as paredes tinham ouvidos,
E hoje sei que tinham, e hoje ainda têm,
Quatro janelas e voam sobre o Douro.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Uma nódoa num pano pornográfico


Todos eles me dizem e salivam nas paredes do orvalho
que eu não tenho coração
que eu sou uma nódoa num pano pornográfico
à janela do tempo indeterminado
oiço-os dentro dos buracos e respiram
e se alimentam nas vãs mensagens sem destinatário
não vou regressar
e recuso-me a absorver-me nas planícies que a paixão tece
e vagabundeia sabendo que às vezes
lágrimas
há lágrimas de chocolate
na aldeia do desejo,

há uma lareira com vista para o Douro
lá encosta-se e poisa a mulher mais bela
e ardem pedaços de videira
e se aquecem as palavras sem livros onde dormirem
e se aquecem abajures de linho
há uma claridade intensa
da paixão das almas e dos xistos com olhos de diamante
lá encosta-se a Deusa adormecida
como o Douro em cascatas até ao cimo da montanha
lá encosta-se o desejo de um coração de prata
com sabor a lilases flores que o Inverno atormenta
e a lareira não cessa de amar.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

As coxas de diamante lapidado

Me perdi, desencontrei, me amei e chorei por você, me perdi, e me cansei, me desorientei, tudo, tudo por você, sonhei, escrevi versos sobre a luminosidade das pálidas tardes que eu inventava para
Para você,
Inventei um sol e uma lua, construí jangadas de beijos e pintei
Para você,
E pintei o céu nocturno das planícies complexas dos orvalhos destinos em círculos de luz com olhos verdes e cabelo castanho, havia uma rosa dentro e um livro que eu roubei
Que tu roubaste num público jardim,
Que eu roubei de um silêncio de Primavera, para você, me perdi, desencontrei, e me amei
E chorei, inventei as loucas abelhas das paredes de xisto, e me cansei de procurar as ditas palavras do amor, me amei, e me apaixonei, tudo
Por você,
Amanhã serei um fio de solidão suspenso entre dois postes de iluminação, amanhã serei uma bola de neve com uma cenoura e duas azeitonas, muitos vão acreditar
E dizerem
Este é o dito António das névoas, homem de poucas palavras, desamado, desacreditado, este é ele, aquele que vocês diziam ter poderes mágicos na língua e que das mãos saiam versos, afinal, afinal este não é ninguém, por você
Amei, e chorei, e sonhei, e tombei
No pavimento térreo das amoreiras voadoras, tive sonhos e tive grandes loucuras sobre barcos com lentes de contacto, tive o céu ao meu dispor, e nada disso eu quis, não quero, detesto, as palavras do amor, os versos que escrevo, os versos que reescrevo, invento, a ventosidade, alimento-me das dálias masculinas e femininas dos jardins da Babilónia, e
Amei, e chorei, e sonhei, e tombei, da Babilónia para você
Um magnifico frigorífico a cores, uma máquina de café expresso, alguns livros e umas telas ranhosas que em horas vadias o dito António das névoas desenhou e pintou, tudo, tudo para você,
E hoje pergunto-me onde está ele? Nunca mais o vi, nunca mais ouvi os seus lamentos quando se sentava na varanda, quando puxava de um cigarro maroto, e desabafava palavras dele com as minhas palavras, quando misturava o fumo dele com o meu próprio fumo, e hoje
(Pergunto-me),
(    )
(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

O ressacado comboio dos sonhos amorfos

Dos ombros da prima Glória saltitavam os findos espaços que um suicidário amador deixou cair sobre os canteiros de rosas vermelhas, “cuidado – pintadas de fresco”, um silêncio transformado em palavras anunciava a morte do perfume melancólico que as devidas mãos de fábula exportam para os infindáveis Rossios das cidades suspensas na mesa número sete da esplanada com sombra para os defuntos organismos que a pura vaidade incendeia, plantas
Que o velho Horácio semeia,
Colhe,
O ressacado comboio dos sonhos amorfos, das palmas as palmas para o artista conceituado em turnê pelas janelas da rua do Alecrim, algures, neste país, algures num outro continente, há-de sempre existir uma rua como o nome de
Alecrim
Ou
Francisco qualquer coisa,
Tanto faz, dizias-me quando regressava a casa com a carteira esvaziada pelos vómitos e diarreias diárias, sentíamos o silêncio frio nas tardes de verão, e víamos, deambulando pela rua, homens, mulheres, crianças, todos, todas, elas e eles e eles e elas
Ou
A transpiração nocturna caminhando sobre um pavimento de alumínio entre duas bolhas castanhas, as flores dormiam, e tínhamos na algibeira meia dúzia de notas de vinte escudos enroladas como se fossem um tubo de queda, como os que se utilizam para escoar as águas pluviais quando torrencialmente chove, ou
Sentíamos os fluídos das madrugadas em flor entranharem-se nos orifícios vazios que um suicidário amador deixou cair sobre os canteiros de rosas vermelhas, “cuidado – pintadas de fresco”, um silêncio transformado em palavras anunciava a morte do perfume melancólico que as devidas mãos de fábula exportam para os infindáveis Rossios das cidades suspensas na mesa número sete da esplanada com sombra para os defuntos organismos que a pura vaidade incendeia, plantas, ou esperávamos pelo nascimento de um Francisco qualquer coisa
Ou, ontem, depois de encerrarmos definitivamente as mãos entrelaçadas nas sereias de amêndoa e darmos-nos conta que existiam rosas por pintar, mesmo lá no centro do canteiro 2B, no meio circunflexo, os sexos murchos das aldeias despidas pela solidão das noite em construção, a vaidade, quando vinha, não era para todos, e alguns deles, delas, deles e delas
Dormiam duplicadamente como os poemas incompreendidos que a avó Hortênsia escrevia antes de dormir, quando dormia, porque ela passava os dias e as noites e as horas e os minutos e os derradeiros segundos
Acordada,
E eu sabia que a velha era rija, como as pedras de Trás-os-Montes, e os pinheiros, e os pássaros e os homens, e as moças pintadas de vermelho, como as rosas de papel
“Cuidado – Pintadas de fresco”, e eu ouvia-as camuflarem-se no capim de ninguém, sabíamos, que os tubos de areia depois de mortos tinham dentro de si um líquido espesso, peganhoso como o mel, mas de cor diferente, pingavam pedacinhos de lágrimas de vidro, e continuávamos embrulhados nos suores frios das tardes de verão, e continuávamos embrulhados nas tórridas diarreias de insónia que as noites traziam de longe, estranhamente, sabíamos que os hotéis mórbidos das cidades com Rossios à deriva como um barco espetado num buraco negro algures no espaço longínquo, os quartos com casa de banho privativa arrumavam-se no quarto andar, e sobre nós, dormiam as clarabóias das estrelas sem futuro, e eu
Percebia,
E eu
Percebo,
Compreendo,
Não tenho dúvidas,
Ou
(E eu sabia que a velha era rija, como as pedras de Trás-os-Montes, e os pinheiros, e os pássaros e os homens, e as moças pintadas de vermelho, como as rosas de papel), que às vezes tinha sonhos que um velho de cabelo comprido e barba branca me roubava, e ficava sozinho, sem ninguém, à deriva sobre as alcatifas do oceano, aos poucos afundava-me, aos poucos deixava de ter força para remar contra as marés de inferno que o velho de cabelo comprido e barba branca não quis levar de mim,
Tínhamos
Ou
Já não sei como eram as nossas noites à lareira, já esqueci
E tão pouco me recordo das janelas de vidros riscados, as lentes dos óculos dormiam à cabeceira da avó Hortênsia, e confesso que tinha pena da velha, mas que podia eu fazer, nada, quase nada, e só depois do mel com sabor a qualquer coisas estranha, nós pensávamos que um Francisco vinha
E nunca regressou, e todos os tubos de areia morreram, e todas as bolhas castanhas morreram, e todas as notas de vinte escudos
Esqueci-me
E todas as notas de vinte escudos ainda hoje brincam na gaveta da mesa-de-cabeceira da avó Hortênsia, coitada, tão velha, mouca, e transporta um esqueleto virtual como peças sobresselentes compradas por um dos netos da última viagem à China, e tirando isso
Já não sei como eram as nossas noites à lareira, já esqueci os aviões e os barcos de papel, já não sei como eram as nossas noites à lareira, já esqueci os aviões e os barcos de papel e os papagaios de muitas cores que um cordel prendia ao portão de entrada de um quintal hoje fantasma,
Ouviam-se e deixamos de ouvir,
Esqueci-me
Como era o amor.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

O louco amor dos bonecos de trapos

(  )
O Rio,
Nos intervalos fazíamos amor e as tardes intermináveis pareciam pequenos ponteiros de segundos enrolados nas folhas das mangueiras, o relógio estonteando minhocas de neblina nos buracos friorentos, no inverno, que o gesso da parede do quarto transpirava sobre os nossos corpos molhados, chovia, sempre chovia em nós, e ambos amávamos loucamente aquele rio
Qual rio,
qualquer um, sem nome, idade, sonhos, sexo, crenças religiosas, nada, não queríamos saber de nada, apenas que o amávamos loucamente
O rio,
Indolente, faminto, todo o amor aprisionado dentro de um velha caixa de sapatos, tudo envelhecido desde o último encontro e visita à prateleira onde dormem os pequenos bonecos de trapos, o chapelhudo não lá, o chapelhudo ficou lá, longe, fora, e todas as cartas de amor ou as cartas poucas do amor prometido, também elas, lá, longe, do outro lado da rua,
Nua
Também tu?
Escrevias-me silenciosamente nos meus olhos quando não tínhamos papel, Escrevias-me silenciosamente nos meus olhos quando não tínhamos caneta ou lápis ou esferográfica, Escrevias-me silenciosamente nos meus olhos quando não tínhamos luz e às vezes
Faltavam-nos as palavras de “meda”, pequenas, poucas, algumas perdiam-se nos nossos lábios que um largo com palmeiras desenhava nos paralelepípedos graníticos que a noite escondia como tu te escondias na prateleira onde dormiam
Os ditos bonecos de trapos, alguns construídos com pedaços da tua saia, outros com os restos mortais esqueléticos das minhas calças de ganga, e ainda tínhamos outros, os mais “escurinhos” fazíamos-los com os sobejos de sabão e restos de caligrafia, a minha, tão, tão
Também tu? Quando me pressionavas para deixar de fumar, e nua
A rua dos sentidos perdidos, as alfaias em busca de tractores agrícolas como dentes afiados a rasgarem os extensos torrões de açúcar granulado, de cana, beterraba, adulterado em Sacavém ou noutro local qualquer, bebíamos o afamado uísque das noites de boémia quando as caves abarrotadas semeavam o barrento hálito de insónia em exíguos espaços nocturnos, ela, ela
E eu respondia-lhe que não tinha paciência para beijos enfermos e caricias sonolentas,
E partia sem percebermos se era de dia, sem percebermos se era de noite, sem percebermos
(Havia bananas em fartura que acabavam por apodrecer, caíam as mangas e uma pasta viscosa preenchia os segmentos de rectas em vazio que de quem e além apareciam no pavimento de cimento, cruzava os braços e imaginava pequeníssimos regos de sumo de manga como ribeiras a caminharem para os braços de um grande amor a que toda a gente chamava de rio),
Sem percebermos que o amor é assim; nasce, cresce, torna-se adulto e morre, como todas as coisas, e eu respondia-lhe que não tinha paciência para beijos enfermos e caricias sonolentas, e eu respondia-lhe que o inferno é aqui.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

domingo, 27 de janeiro de 2013

(    )
Inocência dos sonhos, a cidade plantada na copa de uma árvore, debaixo dela brincam crianças de cabelo castanho, meninos, meninas, homens, mulheres, silêncios de oiro, rios cansados de regressarem ao mar das oliveiras, entre a montanha dos pilares de areia e a táctil mão de desejo que ela, a minha única irmã, transportava para as cavernas do ciúme, havia a noite, triste, e tínhamos acabado de perder todas as estrelas do céu, penhoradas as nuvens, pergunto-me
Que faço eu aqui? Não sei, mas tenho a certeza que os meus irmãos são loucos, e que as acácias salgadas do meu primo Augusto são processos revolucionários em curso, doutorados pelos bares e caves da cidade, ouviam-se gemidos de luz quando atravessava de eléctrico cidade, a mesma cidade a que todos chamávamos
Cidade da inocência dos sonhos,
Alguns azuis, outros, outros encarnados, confesso, gosto do vermelho, mas prefiro o negro, a noite é negra, os buracos negros, evidentemente, são negros, gosto, adoro, amo, as palavras pretas e pretos que voam dentro dos meus poemas, amo as cidades negras vestidas de branco e inventadas pelas mãos de uma criança negra, preta, húmida
A cidade
Toda nua,
E
Às vezes,
E às vezes ouviam-se orgasmos de mel nas colmeias dos sótãos perdidos dos edifícios perdidamente apaixonados pelos carros em miniatura que o menino António trazia nos bolsos do bibe, chegava à escola, e de bata branca, senta-se numa carteira carunchosa, velha, a mesma onde se tinha sentado o pai, o avô, e o tio Francisco, que diziam ser louco e que depois de ter vivido dez anos na Coreia do Norte, nunca
A cidade
Toda nua,
Às vezes, e dizem que nunca mais apareceu, evaporou-se, como as lâminas de barbear que o aldrabão do meu vizinho me vende, riscadas, velhas, com as janelas extintas em fios de aço, ouviam-se todas nuas
As árvores onde vivia a cidade da inocência dos sonhos, quinto andar – esquerdo, ao terminar o dia, esperava-a à porta da galeria falida onde ela teimava trabalhar, sabendo que as paredes
Nuas, todas nuas
Como os pássaros que viviam no meu pobre sótão, coitado, com um cadastro infernal de doenças, diabetes, colesterol, próstata e nunca esquecer o reumático, e ainda eu não tinha chegado ao primeiro andar já ele em queixumes e aos gritos que às vezes eu não sabia se ele estava mesmo doente, se ele se fingia de doente ou pior, se ele estava grávido e a dar à luz
Eu suava, subia dois a dois, os degraus envelhecidos da madeira ranhosa que o velho Fernando deixou quando partiu para a aventura dos montes de areia, sabia-o e sabia-a, ouvíamos docemente o choro de um recém-nascido, e eu, acreditava
Sim, vou ser pai
E ouviam-se do quinto andar – esquerdo, ao terminar o dia, esperava-a à porta da galeria falida onde ela teimava trabalhar, sabendo que as paredes
Nuas, todas nuas
São gémeos,
E juro que ainda hoje não acredito que de um sótão envelhecido, doente, perdido numa cidade que vive sobre a copa das árvores
Tenham saído os meus queridos irmãos,
Loucos,
Pareciam-se como os outros sótãos da cidade, o mesmo rosto, o mesmo tamanho, a mesma cor, e loucos
E que nunca mais apareceu o tio Francisco.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha


Em “Mudanças” de Mo Yan, várias vezes é referido um camião (Gaz 51) de fabrico Soviético, EX-URSS. Por curiosidade, até para perceber se era ficção do autor, dei-me ao trabalho de pesquisar, e realmente existiu e ainda devem existir camiões Gaz 51; fica aqui a respectiva fotografia. Produção (1946-1976)

sábado, 26 de janeiro de 2013

Há alheiras com fotografias a preto e branco

Fictícias palavras nos feiticeiros lábios dos amores incompreendidos, por vezes, perdidamente esquecidos na berma de uma rua sem saída, e ao fundo, bem lá longe, do enorme corredor de orvalho oiço-te balançando entre espadas com lâminas de desejo e ferros de açúcar que se espetam silenciosamente no peito da mulher desenhada numa tela de vidro doirado, abrem-se todas as luzes, e no entanto, ela ficou quieta, dócil, às vezes voa pela casa, e de tecto em tecto, e de espelho em espelho, multiplicam-se
Hoje são milhares, como a formigas sobre as sandes de marmelada numa tarde de praia, as finas areias brancas solidificavam-se nos pés emagrecidos da criança perdida e que procurava os sobejados pingos de saliva que o vento vomitava contra os rochedos de insónia, não dormíamos, não comíamos, e hoje, somos milhares, como as formigas, fictícias abelhas entre dois Sábados consecutivos, ela sozinha, eu sozinho, multiplicam-se, e sobressaem nas camisolas de pura lã virgem, quando as ovelhas do padrinho desciam a montanha, havia noites sinfónicas com hastes e palavras embriagadas pelos cretinos guardas que existem em todas as prisões imaginárias, tantas coisas dentro da minha bocas, coisas
Poucas, muitas, sons, cheiros, tanta coisa em mim disfarçada de palavras, de sombras, de calçadas, enormes dentes de marfim do crocodilo em pau preto, bela escultura, antiquíssima silhueta de arame farpado que dividia Angola e o antigo Congo Belga, e ele
Vou atravessar o rio,
E desapareceu como desapareceram todos os meus sonhos, e como desapareceram os triângulos das minhas folhas de papel, a cartolina resumia-se a um pedacinho de ardósia desnorteada, sem nome, com fome, à procura
Dos velhos machimbombos da agonia em cachimbos de água, lembras-te Fernando?
Dos pasteis de nata embrulhados nos cigarros, hoje são milhares, como a formigas sobre as sandes de marmelada numa tarde de praia, as finas areias brancas solidificavam-se nos pés emagrecidos da criança perdida e que procurava os sobejados pingos de saliva que o vento vomitava contra os rochedos de insónia, não dormíamos, não comíamos, e hoje, somos milhares, como as formigas, e os cigarros de ontem eram os cigarros de hoje, como as horas que
De Sábado em Sábado, entre duas sílabas de tinta dentro do aparo, aglutinado, e às vezes
Apertar-lhe os pescoço como um laço de corda vestida de luz, não matá-lo, não, e às vezes oiço-te desordenadamente caminhando nas pedras azuis poisadas sobre a cristaleira, não matá-lo, não
E às vezes (as alheiras saborosas) atravesso o rio, sento-me do outro lado e recordo entre Sábados e cigarros os cheiros, as luas, as plantas e os pássaros
Do antigo Congo Belga,
As plantas e os pássaros, os cortinados e as janelas do amor, e nunca esquecer as clarabóias da paixão debaixo dos tectos com estrelas de silicone, vícios desfeitos em trapos, e ruas, e calçadas, e espero, desespero
O jantar está pronto,
E eu não quero saber do jantar de hoje,
Do antigo Congo Belga, algumas fotografias, e o arroz com chouriço durante trinta dias de tortura alimentar, e enquanto comia, imaginava que no prato de alumínio viviam os seios da mulher desenhada na tela de vidro doirado, parvalhão
As alheiras óptimas, saborosas,
Como os livros empilhados no pavimento térreo da vida que construí numa noite de tempestade, os barcos morreram, de quê?
Estupidamente afogados no rio que separava Angola e o antigo Congo Belga, ao longe, muito longe, ao fundo do corredor de escuridão uma criança de medo inventa papagaios de papel, sorri, saltita entre dois Sábados e três fotografias do antigo álbum que guarda os mortos momentos das vidas encalhadas por quatro cantos de uma vivenda em Casais, demorava-me
Como os livros empilhados no pavimento térreo da vida que construí numa noite de tempestade, os barcos morreram, de quê?
Demorava-me a barbear, e deixei de me barbear, demorava-me a pentear, deixei de me pentear,
Fizeste a contagem das cabras, Francisco?
Esqueci-me, não contei hoje, e aqui entre nós, entre dois Sábados, nem ontem as contei, que se lixem as cabras e os montes e as terras e as palavras de gordura como torresmos em sandes de marmelada, longe, muito longe, numa tarde de praia, havia abelhas bronzeadas, havia borboletas apaixonadas, por borboletas abelhas bronzeadas, de quê, Francisco?
Afogados no rio que separava Angola do antigo Congo Belga, fotografias a preto e branco, alheiras e chouriças de Trás-os-Montes, o presunto chegava de cá, lá
E os barcos meu amor?
Como serão os barcos apaixonados por traineiras ou cacilheiros? E lá
E os barcos meu amor?
Como os livros empilhados no pavimento térreo da vida que construí numa noite de tempestade, os barcos morreram, de quê?
Afogados meu amor, a fo ga dos...
Todas e todas,
Demorava-me a barbear, e deixei de me barbear, demorava-me a pentear, deixei de me pentear, demorava-me a dormir, e deixei de dormir, demorava-me a comer, e deixei de comer, demorava-me a atravessar o rio, de deixei de ver os salgados comboios em direcção ao infinito, às vezes, poucas, lá longe, muito longe, ao fundo do corredor, terceira porta à direita, ele lá
A fo ga dos,
Como os mármores sobre os telhados de madeira, subia e sentava-se, e eu
E eu ouvia-a soletrar palavras ensanguentadas de um jornal acabado de ser atropelado pelos salgados comboios em direcção ao infinito,
Sabiam-me os poemas que lia a incenso, e deixei de barbear-me porque demorava-me a contar as cabras quando regressavam do pasto, ao fundo, do corredor, (esqueci-me, não contei hoje, e aqui entre nós, entre dois Sábados, nem ontem as contei, que se lixem as cabras e os montes e as terras e as palavras de gordura como torresmos em sandes de marmelada, longe, muito longe, numa tarde de praia, havia abelhas bronzeadas, havia borboletas apaixonadas, por borboletas abelhas bronzeadas, de quê, Francisco?),
A fo ga dos,
Todos e todas,
Entre dois Sábados, nem ontem as contei, que se lixem as cabras e os montes e as terras e as palavras de gordura como torresmos em sandes de marmelada, a fo ga dos, Francisco?
Todos,
Todas,
A fo ga dos...
Como drageias que os loucos comem, como todos, como todas, as tardes perdidas, como todos, como todas, as tardes de janelas encalhadas na areia das fachadas em ruínas, o mar em ruínas, os barcos em ruínas, todos e todas
A fo ga dos.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Incessantes incompletas manhãs da tua ausência


Incompletas todas as manhãs da tua ausência
e sei que o teu perfume brinca no roseiral
esperando pacientemente que acorde um fio raio de sol,

Incompletas todas as lágrimas
recheadas com mel e madrugada
salgada,

Incompletas as tuas dóceis mãos de Primavera
que descem imaginariamente pelas ranhuras do meu corpo embaciado
pelas lanternas da inventada paixão,

Incompletas
as plantas e os pássaros e os lábios da noite vestida de insónia
incompletas as brincadeiras desenhadas numa ardósia
por duas crianças apaixonadas
e incompletas vaidades
entre as paredes cansadas
os livros coxos
mochos
castanheiros cavernais que as tardes construíam no bairro do hospital
chovia e o vento escrevia amor numa seara de trigo
chovia sempre que alguém invocava a dita palavra
que a húmida terra escondeu das incompletas manhãs da tua ausência,

Aglutinavam-se as incessantes veredas lilases dos pilares de orvalho
escrevia-se amor com o espeto de aço inoxidável
e enrolávamos o volante de borracha no pescoço saudável,

Libertos dos cigarros libertos das drogas libertos do álcool
percebíamos que as incompletas manhãs no roseiral
eram plumas viscosas dentro de uma jarra de zinco,

Os telhados verdejantes das malditas ressacas sem corações apaixonados
os velhos e os novos e os defuntos moribundos
dentro de quatro paredes
sentados no chão
a extraírem a raiz quadrada de 3 865 156.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

As plantas carnívoras da menina Margarida

O tecto da igreja desabou, o sacerdote de batina suspensa nos ombros saiu em demandada como se Sábado deixasse de ser Sábado, como se hoje houvessem plantas ornamentais nas esplanadas complexas das varandas em solidão, uma velhinha chorava quando no rádio da vizinha a canção maldita começava a rosnar, e enfurecida, ela
Plantas carnívoras, senhor prior? Sim menina Margarida, a nossa querida igreja foi invadida por carnívoras plantas, sabe-se lá de onde vieram, talvez tentações do ensanguentado e tentador Diabo,
Diabo senhor prior?
Não sei, não sei menina Margarida, mas confesso-lhe que começo a ficar com medo, que já não durmo como dormia, que vejo sombras nas paredes do meu quarto acanhadíssimo, porque nunca há dinheiro para as obras, e os fiéis
Defuntos e não defuntos,
Tesos como os barrotes do senhor Manuel, que ele utiliza como escoras do alpendre semeado sobre o primeiro piso térreo da mansão, quatro paredes com buraquinhos por onde se avista, ao longe, o mar desenhado num lençol que a tia Margarida deixou estendido na varanda, e durante a noite,
Porque,
As faíscas desagradáveis dos silêncios embaciados que o fumo do cigarro do senhor prior deixou ficar sobre as flores embalsamadas, as plantas carnívoras multiplicam-se como de impostos se tratassem, e a velhinha Margarida reclama
A minha reforma já nem me chega para comprar água,
Porquê?
Porque o tecto da igreja desabou, o sacerdote de batina suspensa nos ombros saiu em demandada como se Sábado deixasse de ser Sábado, como se hoje houvessem plantas ornamentais nas esplanadas complexas das varandas em solidão, uma velhinha chorava quando no rádio da vizinha a canção maldita começava a rosnar, e enfurecida, ela contava religiosamente os cêntimos que nunca sobejavam,
E ao longe o senhor prior
Não me fale em cêntimos, menina Margarida, não me fale em cêntimos,
Vou falar-lhe em quê senhor prior? Vou falar-lhe em quê…
Olhe
Porque,
Fale-me em plantas carnívoras, fale-me no Diabo, fale-me
Diga, diga senhor prior,
Fale-me na cidade de Luanda que festeja hoje o seu 437º ano de existência, mas por favor, por favor menina Margarida
Não me fale em cêntimos que me recordam um canino que tive na infância, e que Deus o tem, em qualquer sítio, julgo eu, como
Olhe
Porque,
Como as faíscas desagradáveis dos silêncios embaciados que o fumo do cigarro do senhor prior deixou ficar sobre as flores embalsamadas, as plantas carnívoras multiplicam-se como de impostos se tratassem…
 
(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó


quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

(    )
Sobejaram os cornos pigmentados de sílabas monótonas e sons melódicos das tardes invernais e travestidas de lilases vestidos de cetim, ou então
Que lindos
Ou pior
Vou-me casar, não me chateies,
Ora este,
Casar-se, Com quem?
Se nunca vi esta ave de rapina com alguém, nem sequer com um ramo de flores ao peito, nem sequer apaixonar-se ele conseguiu e a mastronça (ele vestido de ela) agora diz que se vai casar (há cada uma que até parecem duas),
De
Pimenta,
Ou pior do que isso
Desenhar-te em fragrâncias a inocência dos pingos de chuva cinzenta, alta, esguia, égua de longa duração, saltitando sobre as espuma do mar oceano, as gaivotas suspensas nos guindastes de vento enquanto do sacerdote vagarosamente lia as palavras mágicas, ele
Adormeceu em “Aceita” e quando acordou o respeitado sacerdote pronunciava a frase imaginária “Até que a morte os separe”, estremeceu, cambaleou-se como se o vento das tempestades de areia assistisse também ele às cerimónias, lá fora os barcos de recreio brincavam junto ao petroleiro de lábios lânguidos de bâton encarnado em busca de um cigarro de incenso, e quando percebeu que desenhá-la numa branca parede que a inocência transformou em pingos de chuva ao cair da noite, uma rua deixou perder-se dentro da própria cidade de areia, havia livros encadernados em couro que transportavam o peso da agonia, sentia-os, e percebia-os, escondidos nas almas e nos corpos da impossibilidade sombra que as velhas mãos esqueceram nos desejos destinos das línguas de fogo que uma lareira encaixou na baía dos sonhos pincelados a verniz e a perfume de hortelã-pimenta, e respondeu
Não, não aceito,
Em pedaços, cada barco zarpou como zarpam as nuvens depois da chegada do vento, numa das ruas desertas da cidade fantasma, chorava um velho cacilheiro dos anos sessenta, na varanda do quinto andar esquerdo, um velhíssimo esqueleto de prata fumava cigarros de ervas aromáticas, diziam-lhe as vizinhas que era bom para a asma, eu
Deixava aos poucos de acreditar,
Não, não aceito,
Acreditar nos desenhos em fragrâncias que a inocência dos pingos de chuva cinzenta, alta, esguia, égua de longa duração, saltitava sobre a espuma do mar oceano, as gaivotas suspensas nos guindastes de vento enquanto o sacerdote vagarosamente lia as palavras mágicas,
Desisto, vou-me definitivamente embora das ruas desertas da cidade ruim que entrou em mim e desde então, nunca mais fui dono do meu esqueleto de oiro.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

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Sapo Angola

(O amor)

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O amor


O amor transformado em pequenas palavras
o amor
em desejos
desejado
dentro do mar
o amor transtornado em pequenos desenhos na areia
chamo docemente o teu corpo náufrago
e vem até mim a ilha dos sonhos
veste-se de ti
e coloca nos teus lábios os beijos dos pássaros do amor em amor
descem a calçada até chegarem à lua
tua desordem madrugada,

vestem-se de ti
e levas nos seios o silêncio dos poemas escondidos na gaveta da insónia,

não sei se sou eu que te amo
ou se é o meu corpo a desejar-te
quando entras na noite e desces a barra até encontrares na cidade
um porto de abrigo
um peito com marcas geometricamente inventadas
imaginadas
pelo vento que te abriga e obriga caminhando velozmente dentro do mar
o amor transformado em pequenos desenhos na areia,

teimosamente não desisto de resgatar-te das garras clandestinas da tempestade
mesmo não sabendo quem és
ou onde vives
mas sei que te amo
ou desejo
e também sei que te vestes de poema
e escreves nos vidros dos meus olhos
palavras lindas
belas
como todas as flores dos jardins em frente à tua lareira
O amor transformado em pequenas palavras
o amor,

(vestem-se de ti
e levas nos seios o silêncio dos poemas escondidos na gaveta da insónia.)

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Branco é papel

(À minha mãe)

Sabíamos que não haveriam facilidades naquele dia de despedida, os tufos de algodão nos ouvidos, as cordas que prendiam as nossas bagagens aos ferros enferrujados da carlinga meia em ruínas, e a outra metade, quase como um dia de chuva que se desprende das nuvens parecendo-nos um tecido enorme recheado de buracos, fissuras, pequenas lembranças dos dias engasgados sobre as árvores da aldeia onde ela nasceu,
Pobre,
Nasci numa aldeia pobre, filha de pobres, num País pobre, e no entanto, recordo-me de receber a primeira boneca tinha eu sete anos, na escola, gostava muito da escola, adorava aprender, mas elas, as freiras eram más como os pregos a espetarem a carne acabada de nascer, pior do que elas, talvez
Só os mabecos,
Pobres,
Eu e a minha irmã no meio de centenas de meninas, também elas, pobres, e que nos diziam
“Branco é papel e só serve para limpar o cu”,
Muita porrada, e no entanto
Adorava,
E no entanto
Gostava,
E no entanto
A escola,
Sabíamos que um dia todas as ruas desapareceriam dos nossos olhos como desaparecem as mangas das mangueiras, sabíamos que um dia Deus compensar-nos-ia por todos os sacrifícios da nossa infância, e no entanto
Adorava,
E no entanto
Gostava,
E no entanto
A escola,
Pobres, as casas com paredes transparentes que podíamos olhar a rua sem movimento, e nem óculos 3D precisávamos, porque ainda não tinham sido inventados, não havia televisão, e o cinema, ainda gatinhava pela húmida terra depois das longas tardes de chuva, e quando me deitava, depois de rezar a Deus que nos ajudasse e protegesse ouvia e sentia entre as ranhuras da parede do quarto junto ao guarda-fato
“Branco é papel e só serve para limpar o cu”,
Horrível, muita porrada, e no entanto
Adorava a escola,
E no entanto
Gostava de aprender, sabíamos que não haveriam facilidades naquele dia de despedida, os tufos de algodão nos ouvidos, as cordas que prendiam as nossas bagagens aos ferros enferrujados da carlinga meia em ruínas, e a outra metade, quase como um dia de chuva que se desprende das nuvens parecendo-nos um tecido enorme recheado de buracos, fissuras, gostava de aprender
E no entanto,
Tínhamos uma boneca de trapos que um amigo do nosso pai ofereceu-nos, tinha eu sete anos, e ela, provavelmente dez ou onze anos, e não víamos as ruas desaparecem dos nossos olhos como desapareciam as mangas das mangueiras, sabíamos que um dia Deus compensar-nos-ia por todos os sacrifícios da nossa infância, e no entanto
Adorava,
E no entanto
Gostava,
E no entanto
A escola,
A escola um amotinado de fantasmas com lençóis brancos tapando-lhes os cabelos sedosos, horrendos, horríveis, mal cheirosos, e no entanto
Adorava,
E no entanto
“Branco é papel e só serve para limpar o cu”,
A escola
Uma colónia de sonhos que me ensinou e preparou para a tua chegada e quando chegaste
Mãe, quero voar,
E nunca mais deixaste de voar e de sonhar.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
23/01/2013
Alijó

Precisar


Precisava de ti
com as janelas escancaradas
precisava de ti
com as portas amachucadas
precisava
precisava de ti
com o telhado de vidro
e as paredes da tua pele
o meu abrigo
precisava
de ti
sílaba em perigo.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
23/01/2013
Alijó

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

As imagens do poema


Nunca sei se as tardes são frígidas
pacientemente esperando
as noites compridas
nunca sei
se as horas esquecidas
dormem ou não dormem
tal como eu
um pequeno cedro que tomba sobre a calçada
dormem ou não dormem
as pequenas palavras de ti
ditas pela boca em delírios desejos
e tal como eu

Nunca sei
se os relógios que me anunciam as horas esquecidas
têm ou não têm
mecanismos de ti
tal como eu
um pequeno cedro que tomba sobre a calçada

Tal como eu
nunca sei
se nos teus olhos vivem estrelas
ou dormem nuvens de chocolate
nunca sei
e tal como eu
um pequeno cedro que tomba sobre a calçada
sem perceber se as tardes são frígidas pacientemente esperando a melancolia em três actos

E o verdadeiro poema escreve-se com imagens
desenha-se com sons
e nunca sei
tal como eu
as pequenas palavras de ti
ditas pela boca em delírios desejos.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó
E se um dia eu te oferecer flores?
Dir-te-ei que enlouqueceste como enlouquecem as serras depois das tempestades de neve, assim, ficar-me-ás nas entranhas mãos que o perfume dos silêncios mares deixam ficar nas pálpebras tristes dos corpos imperfeitos das cidades vazias, dir-te-ia apenas que o amor é uma coisa, fria, compacta, estranhamente estranha, infeliz, as palavras sobre a aldeia onde nasci, vazia
E se um dia eu te oferecer flores? Provavelmente não será amor, acredito que seja o meu velório, e possivelmente não o será, provavelmente seja um casamento, o teu baptizado, talvez, um dia, percebas os meus poemas que escrevi, e deixei
De escrever?
Sobre a aldeia vazia, perdidamente entre duas distâncias, um ponto insignificante algures no Rossio, ou uma recta paralela ao rio tal como os carris que te levavam para Belém, ou talvez
O que me dizes das flores?
De escrever, ou talvez sobeja um ponto final para colocar no paragrafo em suspenso, à espera que regresses do outro lado da circunferência amarela, os círculos de luz, abelhas envenenadas pelas garras ciumentas da tua boca carnívora, enfeitada com cigarros de enrolar e pedacinhos de pétalas de papel,
Ou talvez
De escrever, desesperar até que a morte nos separe, acredites, não acredites, eu vou partir, oiro, marfim, ou talvez, dir-te-ei que enlouqueceste como enlouquecem as serras depois das tempestades de neve, assim, ficar-me-ás nas entranhas mãos que o perfume dos silêncios mares deixam ficar nas pálpebras tristes dos corpos imperfeitos das cidades vazias, dir-te-ia apenas que o amor é uma coisa, fria, compacta, estranhamente estranha, infeliz,
Ou
Dir-te-ia que os telhados são como as flores que tenciono oferecer-te, ou talvez não, ou
Infeliz,
Ou
Dir-te-ia que os telegramas (telegramas?) dir-te-ia que os telhados de papel sobre a aldeia onde nascia arderam, tal como as flores, tal como os poemas do Inverno de écharpe na cabeça à lareira da sonolência à espera que o livro poisado na mão acordasse e se transformasse em simples criança desenhando sonhos nas paredes escuras, nas paredes frias, dos vidros que guardam as janelas
Do amor.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Os parêntesis curvilíneos das plantas carnívoras

(    )
Talvez um dia, mas hoje não, hoje não posso amor, Hoje estou em alerta vermelho e o mar está revoltado, provavelmente só comigo, entranha-se-me no peito, arrepia-se-me como os arbustos quando nos deitamos, clandestinas as noites inventadas pelo gago, e que não, hoje não
Não sei,
O fruto está maduro, e eu saliento que hoje estou em Alerta Vermelho, rabugenta, alguns enjoos, matinais e diurnos, comprimentos de onda, a distância
Entre dois enjoos sucessivos,
A terra enrola-se na língua do mar, e o fruto pertence ao gago de barbas compridas sem ondas de enjoos, é necessariamente e não precisamos da Justiça para percebermos que o fruto pertence a quem o colhe, ponto final, paragrafo, travessão
(Tinha nos lábios um fio de espuma que me recordavam os parêntesis curvilíneos das plantas carnívoras do jardim das almas mortas, na boca coabitava um gosto indefinido, espesso, possivelmente amargo e ao mesmo tempo, triste, e cansados acordávamos de madrugada com a boca encharcada de vodka e esqueletos de cigarro depois de esquartejados pelo gago de Alcântara, e ao longe
A ponte a entrar-nos quarto adentro, como as moscas de cinco patas que vimos no festival de música, sem percebermos que estávamos dentro de um cubo frio e doce),
Na boca coabitava-nos um gosto indefinido, espesso, possivelmente amargo e ao mesmo tempo, triste, e cansado como as metáforas crianças das histórias de adormecer, ouvíamos o gago galgando as ruas à procura da ponte dos sonhos - Por porpor fafavoror ondonde fica a re reretreettete, e tínhamos descoberto o amor, as palavras de amor, as flores, as flores de amor, a chuva, de amor
Entre dois enjoos sucessivos,
E diziam-nos que muitos Alertas Vermelhos provocam
E ao longe sabíamos que dentro de nós tínhamos um fio de espuma como os parêntesis curvilíneos das plantas carnívoras do jardim das almas mortas, e provocam
Provocam o vicio da leitura, e provocam enjoos, dois diários, como os submarinos invisíveis que os gagos da cidade dos
E delas verdadeiros poemas com sabor a gotinhas de suor no nu corpo de uma mulher, qualquer mulher é bela, todas são belas, esbeltas, perfumadas, como todas as flores, também elas, e todos os poemas, também eles, belos, todos, e cansadas como os frutos das areias em flor,
Dos
Em flor,
Por porpor fafavoror ondonde fica a re reretreettete,
Ao fundo do corredor vira à esquerda, desça sorrateiramente as escadas de madeira, e
Cidade com jardins de almas mortas onde viviam plantas carnívoras com dentes de prata, a cidade aos poucos escurece, deambula, escura manhã de Inverno, e aos poucos, evapora-se e morre,
E na quarta porta onde diz escritório É lá a retrete, não tem nada que enganar,
E dá factura?
Claro, dá factura, dá enjoos e tonturas, e não, e nunca esquecer os gemidos roubados do rio com cinco cacilheiros no estômago e um petroleiro no fígado
É da vodka diagnostica o doutor parafuso sem a ajuda de meios auxiliares de diagnóstico, enquanto o colega gago diz que devem ser pedras no rim central porque o petroleiro parece inclinado para a direita três pequenos graus de vento, sem sabermos que na enfermaria onde estão os cacilheiros e o petroleiro também temos a presença do louco homem de barba branca e cabelo encarnado que num ápice pergunta-nos
Por porpor fafavoror ondonde fica a re reretreettete, e todos respondemos
Ao fundo do corredor vira à esquerda, desça sorrateiramente as escadas de madeira, e
E nunca se esqueça de inserir a moeda na ranhura.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

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(Os poemas tristes dos poetas tristes
que amam tristemente mulheres invisíveis)

Sapo Angola

domingo, 20 de janeiro de 2013

Coração de areia


(caiu uma árvore sobre a minha inspiração: pedimos desculpas pelo sucedido: Obrigado)

Um volátil coração de areia
desespera pela ensanguentada manhã das palavras feras
que o vento arrancou
das nobres veredas serras,

Sinto o frio orgulho do meu esqueleto cansado
perdido às vezes entre frases e poemas
outras vezes despromovido
mas a maioria das vezes sei que pareço um mendigo com penas,

Que voa não voa e voa
como todos os outros corações de areia
há nas manhãs com chuva
uma lareira que a terra semeia,

Que a terra alimenta
o peito desesperado da eterna santa madrugada
um coração de areia
e mais nada.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

sábado, 19 de janeiro de 2013

Pedra triangular


Para si sou apenas uma invisível árvore de papel
sentada numa pedra triangular
para si sou apenas uma sombra
uma alma penada
uma voz a agonizar
para si sou um barquinho à deriva no mar
com sílabas de espuma
e pálpebras de prata
não sabendo que do amor
vem a claridade das plumas cintilações dos seus abraços clandestinos
para si eu desfaleço como as palavras de ontem
quando o vento entrou no seu peito de acácias e levou o que me pertencia,

Para si sou apenas um corpo em agonia
uma flor cansada
que a madrugada cuspiu contra as amaldiçoadas manhãs de inferno
porque você está ausente
ou
porque
para si sou um pedinte um fantasma um palhaço de circo
embrulhado nas palavras ricas
escritas
pelos palhaços empobrecidos
desamados
todos os dias começados por coxas recheadas em versos complexos,

A cidade que é a sua cidade
dos seus lábios de onde eu oiço os gemidos de gelo
que a noite semeia nas clarabóias palavras que o mar afoga
para si eu não sei o que possa ser
não sou uma árvore porque você detesta as árvores
não sou um pássaro porque você odeia os coitados dos pássaros
pergunto-lhe – O que sou eu para si senhora minha amada?
Talvez um relógio a pilhas
nos braços de uma extinta voz que a sua cidade escondeu
Talvez um buraco nego em soluços depois de comer um hipercubo
pergunto-lhe - O que sou eu para si senhora minha amada?
(fios
fios de música entrelaçados nas janelas do abismo)
indesejadamente eu pertencendo à sua lista do desprezo monótono das suas noites a preto e branco.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

Os poemas tristes dos poetas tristes que amam tristemente mulheres invisíveis

Melódica a cor das tuas mãos, poética, poética do silêncio das tuas palavras, e hoje, tudo parece arder na fogueira da vida, invento-te, hoje, invento-te a partir da poeira insónia da noite passada, invento-te da música que escorre pelos vidros das janelas e aqui e ali, acolá, um rosto de porcelana acorda das lilases bocas que a chuva deixa ficar sobre os telhados de zinco,
Vêm dos poisados cansados versos do teu amor os primeiros desejos que a noite esconde dentro de um cinzeiro de vidro, o falso vidro, a falsa palavra, o falso amor, do beijo, falsificados todos os beijos que o poeta lança sobre a terra agreste dos corpos húmidos sobre as arestas finíssimas que as ranhuras de um coração de diamante traça na espuma do mar depois dos sexos se cruzarem nos infinitos carris paralelos até que a morte os separe, os falsos lemes das enguias e dos patos bravos, as falsas velas agarrando os mastros em verdejantes carícias que um cego lança contra os rochedos e pacientemente aguarda a passagem do vermelho a verde para atravessar a passadeira sombria das mágoas despenhadas entre os candeeiros a petróleo e as nuvens de seda morta, as palavras, as falsas palavras que oiço da tua boca
Que a chuva deixa ficar sobre os telhados de zinco,
Dizias-me que amanhã entrariam de mãos dadas, a esperança e o acreditar, e os “cabrões” nunca chegaram, e os “filhos da puta” ignoraram-me, ausentaram-se, fugiram, escondem-se tomara eu saber onde, que a chuva
Palavras que oiço da tua alegre boca que eu desenhei nas madrugadas enquanto dormias sem perceberes que nas minhas mãos de cor melódica ardiam cigarros velozmente como os carros de corrida numa pista de brincar construída por uma criança, retirava todos os objectos que viviam na mesa da sala de jantar, de troço em troço, as curvaturas, as rectas, todo o circuito ia tomando forma tal como as árvores à medida que vão crescendo, colocava as pilhas numa caixinha de plástico, e ligava o interruptor, os carros a principio pareciam ter sono, mas aos poucos rodopiavam em voltas de caracol até parecerem adultos à procura de clientes nos jardins de Belém
Vai uma voltinha “filho”?
(   )
(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Indomáveis dos desejos escondidos

Nunca percebi o que eles queriam, mas nunca mais a nossa vida pacata foi a mesma, nunca mais tivemos noites com estrelas, e nunca mais vimos a lua
Com olhos de papel e boca de jasmim quando os últimos pedaços de tarde sobem a calçada e da Calçada galgam os muros vestidos de amarelo, pareciam moscardos complexos nas mãos de homens apaixonados, eles e eles, e elas e elas com eles,
E nunca mais vimos a lua transparente nas paredes indomáveis dos desejos escondidos
O que quero ser quando for grande?
Gostava de ser uma abelha sem colmeia, ou, ou uma roda dentada sem veios de aço ou correias transmissíveis, livre, voando como as nuvens quando o vento as leva para lá da janela do sótão e das traseiras do velhíssimo edifício de arame as escadas que levitam como os corpos das almas depois de despregadas dos telhados de vidro, às vezes, gostava
Dos desejos escondidos nas flores de areia que tu guardavas nas algibeiras de tecido aos quadradinhos como as grades das prisões, ou como as calças de um pescador quando saboreia docemente o seu cachimbo de algodão, e outras vezes
Gostava
Que as árvores carrancudas, sisudas, e de poucas falas, brincassem comigo, conversassem comigo, e no entanto, abraço-me a elas, e elas
E outras vezes, gostava, que o jantar fosse uma pintura numa tela com muitos beijos de acrílico e bocas de pastel e lábios de chocolate pincelados ao de leve com o bâton vendido pelo cigano da rua do Alecrim Doirado, gostava, e elas acreditavam que do céu vinham as notas de vinte euros que eu lhes dava (   )

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Um seixo de aço com faces gretadas

Entranhavas-te em mim como se fosses um seixo de aço com faces gretadas, dormias nos meus abraços enquanto lá fora brincavam as amoreiras de luz com as sombras amarguradas dos pinheiros doentes, havia lagartas nas tuas mãos, havia pétalas de ciúme que desciam da boca da lua, havia um circo pobre onde estava sentada uma menina sem cabeça, havia, uma boneca no chão ao lado da menina sem cabeça, e a boneca falava, e a boneca sorria, e a boneca
Aos tropeções nas cordas que amarravam o tecto do circo ao cais de embarque, havia cadeiras de espuma com cinzeiros de prata para os fumadores, havia cadeiras de espuma com clarabóias de vidro para os poetas e para os amantes dos poetas, aos tropeções, havia palavras no centro do palco de mão dada com os tigres e com os leões, imaginava-me na selva Africana, e ao longe sentia os gemidos dos mabecos quando a noite se despedia das sanzalas e entrava pelo corredor do prédio da rua das Naus, sexto andar, sem elevador, ofegante tu, quando me abraçavas e eu dormia nos teus abraços,
Entranhavas-te em mim como se fosses um seixo de aço com faces gretadas, dormias nos meus abraços enquanto lá fora brincavam as amoreiras de luz com as sombras amarguradas dos pinheiros doentes, achava-te magro ao ponto de me perguntar até quando
E respondias-me que enquanto deus quiser,
E se deus não quiser, e se deus definitivamente desistir dos telegramas que te mantêm em pé como os cristais da mesa da sala antes de os levarem para a derradeira penhora, se eu pudesse, se eu pudesse penhorava-te, porque és apenas meia dúzia de ossos sem cabeça, e eu via a cidade engordar com os sobejos de luz que os dias deixavam esvoaçar das asas de papel das gaivotas embriagadas, se eu pudesse penhorava-te, porque és apenas uma mão recheada de pedras que um miúdo aproveita para partir os vidros da velha escola com olhar para os plátanos de algodão, e respondias-me que
Aos tropeções nas cordas que amarravam o tecto do circo ao cais de embarque, havia cadeiras de espuma com cinzeiros de prata,
Os abraços onde eu dormia não sentindo os sons tropeços dos rolamentos constipados pelas correntes de ar que atravessavam a montanha e escondiam-se nas traseiras da avenida vinte e cinco de Abril, todas as cidades, aldeias, todas as vilas
Um avenida vinte e cinco de Abril,
A ponte em círculos ao lado da menina sem cabeça onde dormia uma boneca com mãos de vidro e lábios de estrelas e flores imaginadas por um poeta enquanto olha o espelho da morte, e do outro lado, do outro lado estão as lágrimas da saudade, em Abril, de Janeiro até hoje, amanhã levantará amarras o pequeno circo pobre, levará a menina e a boneca, e a ponte (   )

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Histórias de açúcar

(    )

Nuas não verdadeiras doce tua vida de cidade sem rio, não verdadeiras, todas as falsas janelas com vidros de linho, falsas portas em falsa madeira das árvores que tombaram com o sono e o vento deixava-as como serpentinas de aço enroladas em arbustos com vista para o rio, havia lua, encharcadas de melodias e palavras poeticamente afáveis, belas, nuas
Nas horas de sentido único de uma rua sem saída, ao fundo, um edifício de chocolate com braços de prata, e nos olhos, pequenas pérolas em drageias para combater a insónia, tua
Doce tua,
Inventava-te histórias
Não verdadeiras,
Histórias de crianças que nasceram em Luanda, histórias de crianças que brincavam em Luanda com papagaios de papel e nas sombras ínfimas das mangueiras escondia a solidão do silêncio, inventava-te histórias, inventava-te laranjas com sumo de tomate, inventava-te o amor, e todas as palavras escritas nos muros da paixão
(e confesso que detesto conversar e inventar histórias sobre crianças que nasceram em Luanda, recordo-me das ruas, do mar, dos machimbombos, recordo-me do todos os cheiros, e das cores que a terra húmida construía nos corpos de veludo, e confesso, que detesto)
Os muros da paixão, as mãos dos muros da paixão
(e confesso)
Que detesto os lábios, a boca, os olhos
(e confesso)
Que todas as histórias que te inventei não verdadeiras, falsas, que detesto
(e confesso)
Que a primeira vez que vi socalcos, chorei, como choravam as meninas das minhas histórias de açúcar quando um fino tímido fio de chuva descia e descia, descia os socalcos e entranhava-se no Douro, e chorei
(e confesso)
A primeira vez que vi socalcos.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
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(Do outro lado do muro)
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terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Do outro lado do muro

Vivíamos encostados aos muros do medo, e não sabíamos que do outro lado do muro crescia livremente o sol, e não sabíamos que do outro lado do muro brincava livremente a lua, e não sabíamos que do outro lado do muro havia nuvens de todas as cores, do outro lado do muro, não sabíamos
Que vivíamos como serpentes envenenadas pelas enxadas silenciosas das tardes de xisto, quando, que nunca soubemos que do outro lado do muro havia livros com palavras, que nunca soubemos que do outro lado do muro havia triciclos enferrujados com assentos de madeira apodrecida pelas chuvas que amansavam o rancor raivoso do capim livremente do
Outro lado do muro,
Faltava-nos a comida líquida, sólida ou gasosa, faltavam-nos os alicerces que não deixavam cair os edifícios que do outro lado do muro chegavam ao céu, e os pássaros determinados na coragem esquecida no terminal ferroviário ocupavam apenas os andares próximos do chão, pavimento encardido pela saliva dos habitantes com cabeça de serpente e espírito de dobradiça complicada, as portas de acesso pesadíssimas até dizer chega, ouvíamos as plataformas petrolíferas que meia dúzia de gajos inventaram fazendo-nos acreditar que tínhamos petróleo, e petróleo nenhum
Fome,
Raramente havia sol e os nossos corpos pareciam fachadas em ruínas, brancas, mortas, lilases às vezes, muita
Fome,
Raramente vivíamos, deixamos de viver, deixamos de comer, deixamos de dormir, deixamos de amar, deixamos
Outro lado do muro
Fome,
Deixamos de perceber quando era dia, deixamos de perceber quando era noite, deixamos de perceber que dentro da nossa carne existiam duzentos e seis ossos a que não sei a razão, porque nunca percebi, chamavam de
Esqueleto,
E perguntava-me,
E perguntava-lhes,
A fome sabes o que é, o que são esqueletos, o que são árvores, o que são pedras, flores sabes dizer-me o que é uma flor? Define-me o que é o amor
Um rio que corre em direcção à fome,
Outro lado do muro,
Ama-se, vive-se, chora-se de alegria, e grita-se de tristeza, do outro lado do muro sabem o que é o amor, do outro lado do muro sabem explicar-me porque voam os pássaros, ou
Porque amam as mulheres, os homens, os homens e as mulheres, as mulheres, e todas as nuvens de todas as cores, esqueleto,
E perguntava-me,
E perguntava-lhes,
“Vivíamos encostados aos muros do medo, e não sabíamos que do outro lado do muro crescia livremente o sol, e não sabíamos que do outro lado do muro brincava livremente a lua, e não sabíamos que do outro lado do muro havia nuvens de todas as cores, do outro lado do muro, não sabíamos”, e perguntava-lhes
Hoje, hoje vi uma luz cinzenta com um pontinho encarnado, sabes o que é?
Do outro lado do muro
É a paixão disfarçada de lanterna (   )

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Eu só

(   )
Não tínhamos água e só, eu só, e só da velha Gricha jorrava a glicerina fresca com o diabo no rabo ao ditado corrigido pela senhora professora com a bata branca e a menina dos três olhinhos poisada na secretária, olhava-nos, sorria-nos, gostava de nós a gaja
Também eu,
Também eu gostava da gaja que subia a calçada de madrugada, e juro, não era senhora casada nem a menina dos três olhinhos, mas tinha um corpo esculpido num pedaço de granito que eu tentei copiar e desenhar na parede da sala, não, na parede do quarto, não, na parede da cozinha, não
Só tínhamos um compartimento amplo, enorme, com bolinhas coloridos ao bolor que descaiam do tecto como se fossem dois mamilos acabados de nascer, e balões, e serpentinas, e perguntavam-me
Vivem num circo? Respondia-lhes que não, Não vivo num circo, mas a nossa vida é um espectáculo colorido, tínhamos uma casa com muitas janelas e poucos vidros, tínhamos uma sanita velhíssima que quase sempre estava com gripe e tínhamos que a levar às urgências do hospital, no tempo que ainda havia
Hospital?
Urgências nocturnas? E eu achava normal não existirem pássaros durante os sonos nocturnos que passava à janela a contabilizar os automóveis friorentos que desciam a calçada de luz dos candeeiros enferrujados que iluminavam os vultos esquisitos, os vultos de pedra cinzenta, no tempo que ainda havia
Gajas vestidas de sanita, sentava-me e adormecia, e sonhava com papagaios de papel,
As gélidas escadas de sal dormiam abraçadas aos suspiros da fonte da Gricha e eu achava normal não existirem pássaros durante os sonos nocturnos, nem clarabóias, nem chaminés com acesso ao céu, passava horas à janela, desenhava dentro da cabeça imagens a preto e branco que só as fotografias sabiam explicar, que só só da velha Gricha jorrava a glicerina fresca com o diabo no rabo ao ditado corrigido pela senhora professora com a bata branca e a menina dos três olhinhos poisada na secretária, olhava-nos, sorria-nos, gostava de nós a gaja, que muitas vezes me aqueceram as mãos de água-fresca como pasteis de feijão ou natas com sabor a Sábados à tarde, como eu
Nunca percebi as mulheres suspensas nos calendários do barbeiro,
Como eu
Nunca percebi as mulheres suspensas nos calendários do sapateiro,
Como eu
Nunca percebi as gélidas escadas de sal que dormiam abraçadas aos suspiros da fonte da Gricha e achava normal não existirem pássaros durante os sonos nocturnos quando se esqueciam de mim à janela a contabilizar os automóveis friorentos que desciam a calçada de luz dos candeeiros enferrujados que iluminavam os vultos esquisitos, os vultos de pedra, simples moças a entrarem em casa de madrugada, congelados os tentáculos de cobre que reluziam e brilhavam debaixo das estrelas de cetim, a nossa casa não tinha vidros, alguns estavam vivos, outros, outros já tinham partido para outros destinos, e a porta de entrada ficava encerrada durante a noite apenas com um cordel que pela parte de dentro era unido por dois pregos, também eles, velhos
Eu só
Eu acreditava que as meninas dos calendários do barbeiro, eu
Eu só
Eu acreditava que as meninas dos calendários do sapateiro, eu
Acreditava
Que eram anjos que voavam dentro dos cubos de madeira que as tempestades de areia, depois de cair a tarde sobre nós, deixavam cair como se fosse abelhas quando procuram o pólen nas flores loucas, nas flores íngreme, ou nas gajas nocturnas com braços de plástico, acreditava
Nos anjos da fonte da Gricha
Eu só.


(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó
14/01/2013

domingo, 13 de janeiro de 2013

Solstício da paixão


O sol só
guerreiro da paixão
dentro de quatro paredes em sofrimento
o sol só
só à espera das delícias de um coração
que traz o vento


o vai e vem das coisas amargas
tuas sílabas em imagens parvas


o sol
e a lua
nua

só entre quatro paredes de aço inoxidável
o destino meu
meu querido menino
sem as luzes das estrelas do céu
como um ferrugento barco saudável
afável
nas palavras e nas nádegas mergulhadas em sal e versos cansados
gemem os corpos amados
o sol e o vai e vem das coisas amargas
tuas sílabas em imagens parvas
nua a lua tua


o sol
e a lua
nua

o sol só
em pedaços de xisto com manteiga e mel
eu e o desgraçado papel
onde escrevo palavras
amargas
que saboreio em ré e em dó...

sol

o vai e vem das coisas amargas
tuas sílabas em imagens parvas.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó
(  )
Porque só tenho duas...
Subiam, desciam, e vias-me
E vias-me partir de barco debaixo do braço, chapéu na cabeça, e com as sandálias na outra mão por causa da areia, não a reia dos teus lábios, mas a areia fina e fútil da praia, pousava as sandálias, despia-me e colocava a roupa sobre elas, estava nu, e quando tinha o barco em posição para a partida, entrava, sentava-me, sorria ao olhar os restos mortais que tinham sobejado de mim
As sandálias, os calções, e um ou outro parafuso que à partida eu achava que não seriam necessários, e se o fossem, paciência, depois de estar em alto mar, nada a fazer, nada, a não ser, mergulhar profundamente nos oleados maciços das marés aldrabadas pela voz de um solitário, coitadinho, coitados
Dos satélites vestidos de mulher às voltas de um planeta a que toda a gente apelidava de árvore fantasma, esqueleto vagabundo, sentinela sonâmbulo das noite embriagadas com óleo vegetal e sardinhas de conserva, Vou-me a ela
Coitadinho dos coitados plásticos da marmita onde os restos de comida serviam para alimentar um regimento inteiro, muitos, entre a Calçada e os Jardins junto ao rio, os automóveis estacionavam-se e abriam-se as portas de porcelana das bonecas das meninas
Vou-me a ela
A quem o colhe, nem mais, tenho pena das tuas sílabas suspensas nos teus lábios de areia branca, tenho pena das malditas luzes e das rodas-dentas esquecidas na mesinha-de-cabeceira, e à tardinha, dizia-te simplesmente que as meninas eram falsas, nunca existiram, e tal como as bonecas de porcelana e os automóveis de cerâmica, e tal como as meninas e os meninos da Calçada
Vou-me
Adormeciam como os fósforos cansados dos finais de tarde, quando entravas em casa de barco debaixo do braço e dizias-me
Olá amor, regressei,
E eu sabia que tu não regressavas, e eu sabia que continuavas em alto mar à procuras das coisas impossíveis,
Olá amor, regressei,
Atiravas os chinelos para debaixo do sofá, poisavas o barco em cima da mesinha da sala de visitas, despias a camisola e os calções, e mergulhavas nos lençóis de seda da nossa montanha de Primaveras nocturnas que o mar desenhava nas estrelas dos meus seios de papel mata-borrão, e eu via a caneta de tinta permanente em lágrimas azul-cansado que nas moribundas nuvens espetavam no peito nu da melancolia noite,
Olá amor, regressei
Às sandálias, aos calções, e um ou outro parafuso que à partida eu achava que não seriam necessários, e se o fossem, paciência, depois de estar em alto mar, nada a fazer, nada, a não ser, mergulhar profundamente nos oleados maciços das marés aldrabadas pela voz de um solitário, coitadinho, coitados
Amor
Olá regressei,
E eu sabia que tu não regressavas.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó