Uma casa com quatro janelas voava sobre a manhã
apodrecida que do Douro acordava, devagarinho, e aos poucos, pedaços
milímetros de saudade subiam os pinheiros vadios e os pássaros
bebés brincavam solitariamente com minhocas e azeitonas em compota,
eu ainda não era nascido, e dizia-se baixinho que as paredes tinham
ouvidos,
O vento era tão forte naquela manhã que tivemos de
nos acorrentar aos poucos muros em xisto que sobejaram das
tempestades de areia vindas do outro lado da rua, o quintal benzia-se
e rezava, e um crucifixo de areia prendia-se voluntariamente a uma
árvore enfeitiçada pelo silêncio do amor proibido, havia claridade
suficiente para que eles se vestissem e zarpassem como barcos
encapuçados fugindo da polícia politica que o Estado tinha
inventado, e eu que ainda não era nascido não podia dizer que o
Presidente do Conselho era
“Um grande filho da puta”,
Às vezes tinha medo da escuridão quando caia a
noite em Luanda, olhava o céu nocturno e sentia os limites entre
quatro parêntesis e a casa da aldeia com quatro janelas, em círculos
procurava os ouvidos das paredes, e em vão
Nada, nunca os vi, mas apercebia-me que às vezes em
nossa casa os adultos conversavam baixinho, e muito devagar, eu
questionava-os, e eles diziam que eram conversas de adultos,
perguntava-lhes porque só eu é que jantava e eles
Não temos fome,
Curiosamente, nunca tinham fome, e curiosamente hoje
percebo que o faziam para que o jantar chegasse para mim, e eu que
ainda não era nascido não podia dizer que o Presidente do Conselho
era
“Um grande filho da puta”,
Como todos os Presidentes do Conselho de todas as
ditaduras, e curiosamente
Não temos fome meu filho,
Mergulhávamos sonambulamente nos barcos com
algarismos pintados com restos de tinta que uma lata de sardinhas
trazia na algibeira, e quase tenho a certeza que o mar queria
comer-nos, mas nós éramos fortes e estávamos acorrentados a um fio
invisível de aço que prendia-nos a tenda de lona ao muro anão de
xisto com artrose e percebia-se que da coluna vertebral vinha um
perfume estranho, como as palavras que o rio reflectia antes de
chegarmos ao mar, e a chuva tomava conta de nós, e a chuva
misturava-se nas garras dos senhores residentes do Conselhos de todas
as ditaduras, os assassinos
Também amam e sofrem de desamor, respondiam-nos
eles quando viemos encaixotados dentro de uma casa com quatro
janelas, atravessamos o oceano como pássaros dentro de uma gaiola de
vidro, e quando regressava a noite eu ouvia-os
Não temos fome,
E eu sabia que tinham, e eu sabia que a casa com
quatro janelas de vidro voava sobre a manhã apodrecida que do Douro
acordava, devagarinho, e aos poucos, pedaços milímetros de saudade
subiam os pinheiros vadios e os pássaros bebés brincavam
solitariamente com minhocas e azeitonas em compota, eu ainda não era
nascido, e dizia-se baixinho que as paredes tinham ouvidos,
E hoje sei que tinham, e hoje ainda têm,
Quatro janelas e voam sobre o Douro.
(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Sem comentários:
Enviar um comentário