Dos ombros da prima Glória saltitavam os findos
espaços que um suicidário amador deixou cair sobre os canteiros de
rosas vermelhas, “cuidado – pintadas de fresco”, um silêncio
transformado em palavras anunciava a morte do perfume melancólico
que as devidas mãos de fábula exportam para os infindáveis Rossios
das cidades suspensas na mesa número sete da esplanada com sombra
para os defuntos organismos que a pura vaidade incendeia, plantas
Que o velho Horácio semeia,
Colhe,
O ressacado comboio dos sonhos amorfos, das palmas
as palmas para o artista conceituado em turnê pelas janelas da rua
do Alecrim, algures, neste país, algures num outro continente, há-de
sempre existir uma rua como o nome de
Alecrim
Ou
Francisco qualquer coisa,
Tanto faz, dizias-me quando regressava a casa com a
carteira esvaziada pelos vómitos e diarreias diárias, sentíamos o
silêncio frio nas tardes de verão, e víamos, deambulando pela rua,
homens, mulheres, crianças, todos, todas, elas e eles e eles e elas
Ou
A transpiração nocturna caminhando sobre um
pavimento de alumínio entre duas bolhas castanhas, as flores
dormiam, e tínhamos na algibeira meia dúzia de notas de vinte
escudos enroladas como se fossem um tubo de queda, como os que se
utilizam para escoar as águas pluviais quando torrencialmente chove,
ou
Sentíamos os fluídos das madrugadas em flor
entranharem-se nos orifícios vazios que um suicidário amador deixou
cair sobre os canteiros de rosas vermelhas, “cuidado – pintadas
de fresco”, um silêncio transformado em palavras anunciava a morte
do perfume melancólico que as devidas mãos de fábula exportam para
os infindáveis Rossios das cidades suspensas na mesa número sete da
esplanada com sombra para os defuntos organismos que a pura vaidade
incendeia, plantas, ou esperávamos pelo nascimento de um Francisco
qualquer coisa
Ou, ontem, depois de encerrarmos definitivamente as
mãos entrelaçadas nas sereias de amêndoa e darmos-nos conta que
existiam rosas por pintar, mesmo lá no centro do canteiro 2B, no
meio circunflexo, os sexos murchos das aldeias despidas pela solidão
das noite em construção, a vaidade, quando vinha, não era para
todos, e alguns deles, delas, deles e delas
Dormiam duplicadamente como os poemas
incompreendidos que a avó Hortênsia escrevia antes de dormir,
quando dormia, porque ela passava os dias e as noites e as horas e os
minutos e os derradeiros segundos
Acordada,
E eu sabia que a velha era rija, como as pedras de
Trás-os-Montes, e os pinheiros, e os pássaros e os homens, e as
moças pintadas de vermelho, como as rosas de papel
“Cuidado – Pintadas de fresco”, e eu ouvia-as
camuflarem-se no capim de ninguém, sabíamos, que os tubos de areia
depois de mortos tinham dentro de si um líquido espesso, peganhoso
como o mel, mas de cor diferente, pingavam pedacinhos de lágrimas de
vidro, e continuávamos embrulhados nos suores frios das tardes de
verão, e continuávamos embrulhados nas tórridas diarreias de
insónia que as noites traziam de longe, estranhamente, sabíamos que
os hotéis mórbidos das cidades com Rossios à deriva como um barco
espetado num buraco negro algures no espaço longínquo, os quartos
com casa de banho privativa arrumavam-se no quarto andar, e sobre
nós, dormiam as clarabóias das estrelas sem futuro, e eu
Percebia,
E eu
Percebo,
Compreendo,
Não tenho dúvidas,
Ou
(E eu sabia que a velha era rija, como as pedras de
Trás-os-Montes, e os pinheiros, e os pássaros e os homens, e as
moças pintadas de vermelho, como as rosas de papel), que às vezes
tinha sonhos que um velho de cabelo comprido e barba branca me
roubava, e ficava sozinho, sem ninguém, à deriva sobre as alcatifas
do oceano, aos poucos afundava-me, aos poucos deixava de ter força
para remar contra as marés de inferno que o velho de cabelo comprido
e barba branca não quis levar de mim,
Tínhamos
Ou
Já não sei como eram as nossas noites à lareira,
já esqueci
E tão pouco me recordo das janelas de vidros
riscados, as lentes dos óculos dormiam à cabeceira da avó
Hortênsia, e confesso que tinha pena da velha, mas que podia eu
fazer, nada, quase nada, e só depois do mel com sabor a qualquer
coisas estranha, nós pensávamos que um Francisco vinha
E nunca regressou, e todos os tubos de areia
morreram, e todas as bolhas castanhas morreram, e todas as notas de
vinte escudos
Esqueci-me
E todas as notas de vinte escudos ainda hoje brincam
na gaveta da mesa-de-cabeceira da avó Hortênsia, coitada, tão
velha, mouca, e transporta um esqueleto virtual como peças
sobresselentes compradas por um dos netos da última viagem à China,
e tirando isso
Já não sei como eram as nossas noites à lareira,
já esqueci os aviões e os barcos de papel, já não sei como eram
as nossas noites à lareira, já esqueci os aviões e os barcos de
papel e os papagaios de muitas cores que um cordel prendia ao portão
de entrada de um quintal hoje fantasma,
Ouviam-se e deixamos de ouvir,
Esqueci-me
Como era o amor.
(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
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