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Inocência dos sonhos, a cidade plantada na copa de
uma árvore, debaixo dela brincam crianças de cabelo castanho,
meninos, meninas, homens, mulheres, silêncios de oiro, rios cansados
de regressarem ao mar das oliveiras, entre a montanha dos pilares de
areia e a táctil mão de desejo que ela, a minha única irmã,
transportava para as cavernas do ciúme, havia a noite, triste, e
tínhamos acabado de perder todas as estrelas do céu, penhoradas as
nuvens, pergunto-me
Que faço eu aqui? Não sei, mas tenho a certeza que
os meus irmãos são loucos, e que as acácias salgadas do meu primo
Augusto são processos revolucionários em curso, doutorados pelos
bares e caves da cidade, ouviam-se gemidos de luz quando atravessava
de eléctrico cidade, a mesma cidade a que todos chamávamos
Cidade da inocência dos sonhos,
Alguns azuis, outros, outros encarnados, confesso,
gosto do vermelho, mas prefiro o negro, a noite é negra, os buracos
negros, evidentemente, são negros, gosto, adoro, amo, as palavras
pretas e pretos que voam dentro dos meus poemas, amo as cidades
negras vestidas de branco e inventadas pelas mãos de uma criança
negra, preta, húmida
A cidade
Toda nua,
E
Às vezes,
E às vezes ouviam-se orgasmos de mel nas colmeias
dos sótãos perdidos dos edifícios perdidamente apaixonados pelos
carros em miniatura que o menino António trazia nos bolsos do bibe,
chegava à escola, e de bata branca, senta-se numa carteira
carunchosa, velha, a mesma onde se tinha sentado o pai, o avô, e o
tio Francisco, que diziam ser louco e que depois de ter vivido dez
anos na Coreia do Norte, nunca
A cidade
Toda nua,
Às vezes, e dizem que nunca mais apareceu,
evaporou-se, como as lâminas de barbear que o aldrabão do meu
vizinho me vende, riscadas, velhas, com as janelas extintas em fios
de aço, ouviam-se todas nuas
As árvores onde vivia a cidade da inocência dos
sonhos, quinto andar – esquerdo, ao terminar o dia, esperava-a à
porta da galeria falida onde ela teimava trabalhar, sabendo que as
paredes
Nuas, todas nuas
Como os pássaros que viviam no meu pobre sótão,
coitado, com um cadastro infernal de doenças, diabetes, colesterol,
próstata e nunca esquecer o reumático, e ainda eu não tinha
chegado ao primeiro andar já ele em queixumes e aos gritos que às
vezes eu não sabia se ele estava mesmo doente, se ele se fingia de
doente ou pior, se ele estava grávido e a dar à luz
Eu suava, subia dois a dois, os degraus envelhecidos
da madeira ranhosa que o velho Fernando deixou quando partiu para a
aventura dos montes de areia, sabia-o e sabia-a, ouvíamos docemente
o choro de um recém-nascido, e eu, acreditava
Sim, vou ser pai
E ouviam-se do quinto andar – esquerdo, ao
terminar o dia, esperava-a à porta da galeria falida onde ela
teimava trabalhar, sabendo que as paredes
Nuas, todas nuas
São gémeos,
E juro que ainda hoje não acredito que de um sótão
envelhecido, doente, perdido numa cidade que vive sobre a copa das
árvores
Tenham saído os meus queridos irmãos,
Loucos,
Pareciam-se como os outros sótãos da cidade, o
mesmo rosto, o mesmo tamanho, a mesma cor, e loucos
E que nunca mais apareceu o tio Francisco.
(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
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