(À minha mãe)
Sabíamos que não haveriam facilidades naquele dia
de despedida, os tufos de algodão nos ouvidos, as cordas que
prendiam as nossas bagagens aos ferros enferrujados da carlinga meia
em ruínas, e a outra metade, quase como um dia de chuva que se
desprende das nuvens parecendo-nos um tecido enorme recheado de
buracos, fissuras, pequenas lembranças dos dias engasgados sobre as
árvores da aldeia onde ela nasceu,
Pobre,
Nasci numa aldeia pobre, filha de pobres, num País
pobre, e no entanto, recordo-me de receber a primeira boneca tinha eu
sete anos, na escola, gostava muito da escola, adorava aprender, mas
elas, as freiras eram más como os pregos a espetarem a carne acabada
de nascer, pior do que elas, talvez
Só os mabecos,
Pobres,
Eu e a minha irmã no meio de centenas de meninas,
também elas, pobres, e que nos diziam
“Branco é papel e só serve para limpar o cu”,
Muita porrada, e no entanto
Adorava,
E no entanto
Gostava,
E no entanto
A escola,
Sabíamos que um dia todas as ruas desapareceriam
dos nossos olhos como desaparecem as mangas das mangueiras, sabíamos
que um dia Deus compensar-nos-ia por todos os sacrifícios da nossa
infância, e no entanto
Adorava,
E no entanto
Gostava,
E no entanto
A escola,
Pobres, as casas com paredes transparentes que
podíamos olhar a rua sem movimento, e nem óculos 3D precisávamos,
porque ainda não tinham sido inventados, não havia televisão, e o
cinema, ainda gatinhava pela húmida terra depois das longas tardes
de chuva, e quando me deitava, depois de rezar a Deus que nos
ajudasse e protegesse ouvia e sentia entre as ranhuras da parede do
quarto junto ao guarda-fato
“Branco é papel e só serve para limpar o cu”,
Horrível, muita porrada, e no entanto
Adorava a escola,
E no entanto
Gostava de aprender, sabíamos que não haveriam
facilidades naquele dia de despedida, os tufos de algodão nos
ouvidos, as cordas que prendiam as nossas bagagens aos ferros
enferrujados da carlinga meia em ruínas, e a outra metade, quase
como um dia de chuva que se desprende das nuvens parecendo-nos um
tecido enorme recheado de buracos, fissuras, gostava de aprender
E no entanto,
Tínhamos uma boneca de trapos que um amigo do nosso
pai ofereceu-nos, tinha eu sete anos, e ela, provavelmente dez ou
onze anos, e não víamos as ruas desaparecem dos nossos olhos como
desapareciam as mangas das mangueiras, sabíamos que um dia Deus
compensar-nos-ia por todos os sacrifícios da nossa infância, e no
entanto
Adorava,
E no entanto
Gostava,
E no entanto
A escola,
A escola um amotinado de fantasmas com lençóis
brancos tapando-lhes os cabelos sedosos, horrendos, horríveis, mal
cheirosos, e no entanto
Adorava,
E no entanto
“Branco é papel e só serve para limpar o cu”,
A escola
Uma colónia de sonhos que me ensinou e preparou
para a tua chegada e quando chegaste
Mãe, quero voar,
E nunca mais deixaste de voar e de sonhar.
(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
23/01/2013
Alijó
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