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O Rio,
Nos intervalos fazíamos amor e as tardes
intermináveis pareciam pequenos ponteiros de segundos enrolados nas
folhas das mangueiras, o relógio estonteando minhocas de neblina nos
buracos friorentos, no inverno, que o gesso da parede do quarto
transpirava sobre os nossos corpos molhados, chovia, sempre chovia em
nós, e ambos amávamos loucamente aquele rio
Qual rio,
qualquer um, sem nome, idade, sonhos, sexo, crenças
religiosas, nada, não queríamos saber de nada, apenas que o
amávamos loucamente
O rio,
Indolente, faminto, todo o amor aprisionado dentro
de um velha caixa de sapatos, tudo envelhecido desde o último
encontro e visita à prateleira onde dormem os pequenos bonecos de
trapos, o chapelhudo não lá, o chapelhudo ficou lá, longe, fora, e
todas as cartas de amor ou as cartas poucas do amor prometido, também
elas, lá, longe, do outro lado da rua,
Nua
Também tu?
Escrevias-me silenciosamente nos meus olhos quando
não tínhamos papel, Escrevias-me silenciosamente nos meus olhos
quando não tínhamos caneta ou lápis ou esferográfica,
Escrevias-me silenciosamente nos meus olhos quando não tínhamos luz
e às vezes
Faltavam-nos as palavras de “meda”, pequenas,
poucas, algumas perdiam-se nos nossos lábios que um largo com
palmeiras desenhava nos paralelepípedos graníticos que a noite
escondia como tu te escondias na prateleira onde dormiam
Os ditos bonecos de trapos, alguns construídos com
pedaços da tua saia, outros com os restos mortais esqueléticos das
minhas calças de ganga, e ainda tínhamos outros, os mais
“escurinhos” fazíamos-los com os sobejos de sabão e restos de
caligrafia, a minha, tão, tão
Também tu? Quando me pressionavas para deixar de
fumar, e nua
A rua dos sentidos perdidos, as alfaias em busca de
tractores agrícolas como dentes afiados a rasgarem os extensos
torrões de açúcar granulado, de cana, beterraba, adulterado em
Sacavém ou noutro local qualquer, bebíamos o afamado uísque das
noites de boémia quando as caves abarrotadas semeavam o barrento
hálito de insónia em exíguos espaços nocturnos, ela, ela
E eu respondia-lhe que não tinha paciência para
beijos enfermos e caricias sonolentas,
E partia sem percebermos se era de dia, sem
percebermos se era de noite, sem percebermos
(Havia bananas em fartura que acabavam por
apodrecer, caíam as mangas e uma pasta viscosa preenchia os
segmentos de rectas em vazio que de quem e além apareciam no
pavimento de cimento, cruzava os braços e imaginava pequeníssimos
regos de sumo de manga como ribeiras a caminharem para os braços de
um grande amor a que toda a gente chamava de rio),
Sem percebermos que o amor é assim; nasce, cresce,
torna-se adulto e morre, como todas as coisas, e eu respondia-lhe que
não tinha paciência para beijos enfermos e caricias sonolentas, e
eu respondia-lhe que o inferno é aqui.
(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha