Vivíamos encostados aos muros do medo, e não
sabíamos que do outro lado do muro crescia livremente o sol, e não
sabíamos que do outro lado do muro brincava livremente a lua, e não
sabíamos que do outro lado do muro havia nuvens de todas as cores,
do outro lado do muro, não sabíamos
Que vivíamos como serpentes envenenadas pelas
enxadas silenciosas das tardes de xisto, quando, que nunca soubemos
que do outro lado do muro havia livros com palavras, que nunca
soubemos que do outro lado do muro havia triciclos enferrujados com
assentos de madeira apodrecida pelas chuvas que amansavam o rancor
raivoso do capim livremente do
Outro lado do muro,
Faltava-nos a comida líquida, sólida ou gasosa,
faltavam-nos os alicerces que não deixavam cair os edifícios que do
outro lado do muro chegavam ao céu, e os pássaros determinados na
coragem esquecida no terminal ferroviário ocupavam apenas os andares
próximos do chão, pavimento encardido pela saliva dos habitantes
com cabeça de serpente e espírito de dobradiça complicada, as
portas de acesso pesadíssimas até dizer chega, ouvíamos as
plataformas petrolíferas que meia dúzia de gajos inventaram
fazendo-nos acreditar que tínhamos petróleo, e petróleo nenhum
Fome,
Raramente havia sol e os nossos corpos pareciam
fachadas em ruínas, brancas, mortas, lilases às vezes, muita
Fome,
Raramente vivíamos, deixamos de viver, deixamos de
comer, deixamos de dormir, deixamos de amar, deixamos
Outro lado do muro
Fome,
Deixamos de perceber quando era dia, deixamos de
perceber quando era noite, deixamos de perceber que dentro da nossa
carne existiam duzentos e seis ossos a que não sei a razão, porque
nunca percebi, chamavam de
Esqueleto,
E perguntava-me,
E perguntava-lhes,
A fome sabes o que é, o que são esqueletos, o que
são árvores, o que são pedras, flores sabes dizer-me o que é uma
flor? Define-me o que é o amor
Um rio que corre em direcção à fome,
Outro lado do muro,
Ama-se, vive-se, chora-se de alegria, e grita-se de
tristeza, do outro lado do muro sabem o que é o amor, do outro lado
do muro sabem explicar-me porque voam os pássaros, ou
Porque amam as mulheres, os homens, os homens e as
mulheres, as mulheres, e todas as nuvens de todas as cores,
esqueleto,
E perguntava-me,
E perguntava-lhes,
“Vivíamos encostados aos muros do medo, e não
sabíamos que do outro lado do muro crescia livremente o sol, e não
sabíamos que do outro lado do muro brincava livremente a lua, e não
sabíamos que do outro lado do muro havia nuvens de todas as cores,
do outro lado do muro, não sabíamos”, e perguntava-lhes
Hoje, hoje vi uma luz cinzenta com um pontinho
encarnado, sabes o que é?
Do outro lado do muro
É a paixão disfarçada de lanterna ( )
(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó