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foto de: Francisco Luís Fontinha
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Um silêncio de espuma com sabor a areia branca, o
mar, as gaivotas poisadas em mastros invisíveis, brincando,
correndo, sentado, inventando..., sonhando com um ferrugento triciclo
com assento em madeira, pobre, apodrecida, um silêncio de espuma,
saltitando os círculos da infância, com sabor a areia branca,
Mentiras descendo a calçada, abraços, como velhos
guindastes de aço, perdidos entre a cidade dos vidros, mentiras,
correndo, dançando, brincando como as crianças, que somos, ontem,
que fomos, hoje, doces, vaidades imperfeitas, de espuma, os olhos
brilhando entre mim e a minha pobre sombra, a criança, eu, imagino
papagaios em papel descendo a calçada
As mentiras?
Também, como eles, chegando até mim, cansados,
fartos de me ver pendurado na nuvem número cinco do primeiro andar
esquerdo, as escadas, muitas, cansadas, assobiavam como quando eu
imaginava acariciar-te a pele de luminosidade sonsa, insossa, acabada
de transcrever as últimas palavras de ti, o teclado preso nas minhas
mãos, o papel prendia-se-me nos dedos, e eu
Nada fazia, em vez de tentar libertar-me..., sonhava
beijar-te debaixo das acácias em flor, e eu, nada, fértil, as
palavras deambulando sobre a velhíssima máquina de escrever, o teu
corpo transpirava de prazer, a fita prendia-se nos teus seios,
brotava pingos de tinta, o preto e o vermelho, misturavam-se nas
janelas do palheiro de Carvalhais, ouvíamos um som esquisito, tonto,
como as pedras descendo violentamente a montanha do Adeus, eu, eu
desejava-te no meio de toda aquela canalhada porcaria de velharias,
máquina de escrever sobre o teu peito, o zurrar da Singer comendo
pedaços de tecido, os livros, esses, chorando como crianças, que
fomos e que éramos, um dia seremos como os cacos cerâmicos que
brincam na nossa sala de jantar, um dia, um dia
Tu e eu,
Seremos os espelhos desprovidos de quaisquer imagem
nocturna, o preto e o vermelho, sobre o teu corpo, a fita desenrolada
da máquina de escrever, o teclado, esse, mais pezorro do que as tuas
coxas de rosa perfumada, deixavas o papel entalado na ranhura,
batíamos as teclas como se estivéssemos a destruir a espessa e dura
casca da amêndoa encontrada no sótão da casa que tínhamos
inventado dentro de nós,
Tu e eu?
Nunca,
Tu e eu, dentro do silêncio de espuma com sabor a
areia branca, o mar, as gaivotas poisadas em mastros invisíveis,
brincando, correndo, sentado, inventando..., sonhando com um
ferrugento triciclo com assento em madeira, pobre, apodrecida, um
silêncio de espuma, saltitando os círculos da infância, com sabor
a areia branca, eu, a criança brincando com a máquina de escrever
que mais tarde, muitos anos depois, me foi oferecida, o teclado teus
seios rangiam durante a ténue luz do quarto nu embebido no divã com
a colcha azul com flores em sorrisos doirado, o papel, na ranhura,
amarrotado, como hoje, a pele do teu corpo, deitado, sobre uma das
prateleiras da biblioteca, estás misturada em três partes de ti e
uma de livro, pareces o inferno quando corríamos calçada abaixo,
quando o teclado de ti escrevia palavras lindas, como imagens a
preto-e-branco, sempre, sempre antes de acordar o pôr-do-sol...
Tu, e, eu,
Nunca.
(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha