sábado, 9 de fevereiro de 2013

O menino húmido com pétalas de papel crepe

Conheci um velho, fumava cachimbo e tinha como hobby encantar e desencantar as serpentes invisíveis de um circo ambulante, apaixonei-me pelo circo desde muito novo, fascinava-me olhar as luzes, as mulheres que voavam sobre a circunferência em formato de palco, no chão apenas um tapete de lona, sobre as cadeiras uma penumbra de giz brincava nas ardósias masculinas que acompanhavam os filhos, e as filhas, e as mulheres, e as namoradas, e os namorados, e todas as moscas devido à presença de animais domesticados que o domador ia desenhando numa parede verde com flores amarelas, conheci o velho Domingos e desde esse dia
Nunca mais o esqueceu, iam passear para os descampados longínquos das casas de madeira e zincadas, como as chaves de casa, ou quando se abriam os portões dos quintais com mesas de madeira, e cadeiras de cimento, e sobre as mesas, garrafas vazias de cerveja Cuca, botões em decomposição que saltavam das camisas que aos poucos inchavam como pedaços de esponja com as chuvas de fim de tarde, e ele entre voos e fantasias, acreditava que um dia ia ser artista de circo, malabarista, trapezista ou encantador de serpentes como o velho Domingos, acabou por ser mordomo e apaixonou-se pela patroa,
Saboreava as quitetas com o molho de sombra de mangueira, de olhos vendados, noite e dia, lembrava-se das ondas do mar de barcos em fila para entrarem na barra, um triste rebocador puxava-o até que ele depois de encostar na plateia, sentava-se, alinhava-se na cadeira e empurrava as pernas até encontrar os silêncios de capim do recinto onde tinham atracado o circo dos sonhos, os barcos misturados com as bailarinas, em círculos concêntricos, e acabavam a noite a extrair a raiz quadrada dos seios da menina Augusta, que sobre as mesas de madeira dos quintais, e cadeiras de cimento, e sobre as mesas, garrafas vazias de cerveja Cuca, botões em decomposição que saltavam das camisas que aos poucos inchavam como pedaços de esponja com as chuvas de fim de tarde, ela só, e só ela, abraçava-se à serpente que só o velho Domingos com os seus dedos de arame sabia entreter,
Eu era um menino húmido com pétalas de papel crepe,
(fico triste, muito deprimido, quando termino a leitura de um livro e começo a leitura de um novo, e fico com a sensação que algo dentro de mim se perdeu, morreu, enterro as personagens antigas e visto-me com as novas, apago com o apagador o giz da história de ontem e recomeço esta noite com uma nova história, e às vezes tenho a necessidade de deixar uma história em suspenso, hoje não sei, se recomeço “O Ano Em que Zumbi Tomou o Rio” de José Eduardo Agualusa, ou comece um novo que espera por mim há tempos infinitos e que por falta de tempo ou paciência fui deixando para o futuro, e hoje, hoje talvez pegue no “Livro do Desassossego”, porque não? Terminado o livro “Dentro do Segredo” de José Luís Peixoto, que dizer? Que uma tristeza se apoderou de mim como os tentáculos de um polvo em volta do meu pescoço de cana de açúcar; e por mais que eu tente, não consigo imaginar-me a viver num País como a Coreia do Norte),
Prefiro ser mordomo e loucamente apaixonado pela minha patroa, senhora distinta, frágil como uma semente de girassol, foi artista de circo, trapezista nas nocturnas noites de Luanda, sobre o arame não havia igual, e tal como as serpentes do velho Domingos, também ela necessita de uns dedos de arame com sabor a baunilha, e beijos e beterraba, e
Havia flores no cabelo da Patroa, o mordomo, loucamente apaixonado pelos circos ambulantes que aportam nas cidades e aldeias e vilas e mares clandestinos das avenidas mortas pelo tédio das grandes e longas mãos que engolem a flauta do velho Domingos, e a serpente de areia saltita em pedaços de milímetros amarrotados nas manhãs antes de acordarem as sombras do tio Francisco, o amor, o amor e a velha paixão de amar o desconhecido poema com palavras de vidro, e
E
Eu era um menino húmido com pétalas de papel crepe,
E
Nunca mais o esqueceu, iam passear para os descampados longínquos das casas de madeira e zincadas, como as chaves de casa, ou quando se abriam os portões dos quintais com mesas de madeira, e cadeiras de cimento, e sobre as mesas, garrafas vazias de cerveja Cuca, botões em decomposição que saltavam das camisas que aos poucos inchavam como pedaços de esponja com as chuvas de fim de tarde, numa parede verde com flores amarelas.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Barbies madrugadas com seios de prata

Não sei
nunca percebi as tuas palavras despidas
e nuas
não sei e não percebo as antigas línguas de fogo
que as tuas mãos aprisionam como o fazem todos os amores das noites inventadas,

Acordam os amantes e as lágrimas derramadas
barbies madrugadas com seios de prata
e olhos em penumbra escuridão aos lábios em marés de silêncio
não sei
como será a lua depois da morte,

Não sei
como será o amor depois do vidro coração
se partir e repartir em pedacinhos
que as alvoradas cintilações adormecem
e comem como se comem as torradas com fénix dilacerada,

E nada
nem a noite
nem a triste madrugada
nem uma janela desesperada
no asfixiar sémen das palavras por dizer,

Ela suicida-se nos peitos amargos dos amantes de luz
deita a cabeça
cerra hermeticamente os olhos de solidão
puxa por um cigarro esquecido sobre a mesa-de-cabeceira
e percebe que ele há nove meses que não fuma,

E não sabe
e eu também não sei
se é menino
menina
ou gémeos contratados como as estrelas de papel dos orgasmos nocturnos,

Que voam
voam como pássaros imundos
sujos
sem cigarros como eu
como eu há nove meses sem fumar.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Fingidos torrões de açúcar

Desejava morangos, ofereceste-me pêssegos com sabor a ácido acetilsalícilico, hesitei, depois deste-me um pau de carvão para escrever o meu nome na parede do sono, tentei, sabes que sim, mas foi tão difícil, e não consegui, desisti, e mergulhei
Na triste insónia da dor que as madrugadas deixam ficar sobre os corpos húmidos dos amantes antes de partirem, e trazem depois o dia, tristes às vezes, límpidos, suados, molhados como as folhas das árvores depois da miudinha chuva de fim de tarde, nas Primaveras cansadas, entre pedras de paixões proibidas e os vidros fumados dos pulmões doentes do velho de mãos encardidas pelo tempo dos sonhos, ouvia-te mergulhar nas lágrimas dos poemas de amor que a tua mãe tinha semeado, antes de partir para o eterno descanso, e assim nasceu o primeiro beijo, construído com hélices de tungsténio e as turbinas que os púbis desprotegidos das montanhas deixam ficar junto à ribeira das águas onde brincavam as palmeiras do largo com pavimento em paralelepípedo,
Ontem havia cenouras ao jantar, cansavam-me os pêssegos com sabor a ácido acetilsalícilico, e confesso, a ti, só a ti, o que eu desejava mesmo eram morangos com pétalas azuis e olhos esverdeados, como as nocturnas miúdas que esperam pelo amor junto aos candeeiros a petróleo, sílabas, palavras cada uma a cinco cêntimos
Vai uma voltinha, meu querido poeta?
Inseria a moeda na ranhura, fincava os dentes como se tivesse na minha boca um aloquete made in China, e eu sentia o perfume das flores mortas dentro dos lençóis de carqueja que até chegar ao cimo da montanha desgovernada, eu, o desgraçadinho homem das sete palavras e meia, ia deixando aqui e ali, e hoje, hoje a montanha parece um ninho de morcegos, quartos duplos com casa de banho privativa, pequeno-almoço incluído, por uma módica quantia de vinte e cinco euros, a pensão envelhecia, do proibido amor, que
Vai uma voltinha, meu querido poeta?
O poeta desgraçadinho, aquele que desejava morangos em vez de pêssegos com sabor a ácido acetilsalícilico
Desculpa, não percebi,
E as portadas da noite desciam até encobrirem todas as árvores da cidade que um coração de xisto alimentava, acariciava, que todos os homens fingiam não existir, que todas as mulheres diziam ser um embuste, falso, maligno, o coração de pedra, e no entanto, eu
Desculpa?
Eu prefiro os corações de pedra aos fingidos torrões de açúcar.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Vulcão de areia


Um vulcão de areia
entranha-se na minha pedra mão
como se os Sábados fossem silêncios de prata
cansados do orvalho que durante a noite
poisa levemente sobre as árvores nuas,

Acreditava eu
que os bichos tinham na algibeira beijos de silício
e ramos de alecrim
acreditava ela
que eu escrevia palavras nos lábios das estrelas,

E suspendiam-se em mim
as garras perfeitas das canetas de tinta permanente
que sobre a solidão de uma folha de papel
sozinha
desenhava sorrisos com dentes de poesia mórbida,

Ouviam-se os corredores da morte
procurando as suas almas
e mesmo assim
acreditava que me amavas
como os pássaros amam os pedacinhos de sol das searas abandonadas,

Tinha medo das cartas de amor
que nunca conseguiste escrever
porque dentro de ti
há uma janela com diamantes
que deixa fugir todas as palavras belas que a paixão amealhou.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

A catalogadora de ossos

As cerejas pareciam loucas de ciúme enquanto ele saboreava um cacho de uvas cor de sílabas mentirosas e sorrisos de poeira, e conforme o retirou da nobre videira assim foi saboreando cada bago, bolinhas de sumo com sabor inconfundível, bolinhas imaginárias com olhos de prata apontando os desfiladeiros que o levavam até ao rio, curvas de carris caminhavam como se fossem grãos de areia a descer a montanha, bem lá no altíssimo altar da natureza, jazia um abrunheiro com bronquite e ao lado, na cama número treze, um pequeno pessegueiro a queixar-se de dores intensas na coluna, o médico, um castanheiro de meia-idade tinha-lhe diagnosticado reumatismo agudo, devido à doença da Tinta, em frente a ele, na cama número nove dormia o limoeiro, que devido aos sedativos que sobejavam dos pingos das bolhas castanhas que uma fina prata de alumínio derramava, pedrado como os seixos brancos dos mares clandestinos, há dois dias que tinha levantado voo e apenas víamos o corpo esquelético sobre os cobertores de aço onde se deitava, o resto
Ninguém sabia onde encontrar,
Tinham-se esquecido de encerrar as janelas, estava vento, tínhamos medo que a sua força levasse os frágeis ossos do adormecido limoeiro, uma roseira, experiente catalogadora de ossos, numerou-os, e um a um, todos, como se fossem pedras de granito quando um ricaço qualquer as resolve transladar para outro local, a bananeira, desenhadora e escritora, fez o respectivo esboço, e assim, tínhamos a garantia que tudo o que acontecesse ao coitado do limoeiro, sempre o podíamos reconstruir, e levá-lo para outro local, se necessário,
Tenho quarenta e sete anos, sou um plátano e perdi vinte e cinco quilogramas, e tudo por apenas três drageias por semana, agora sinto-me..., sinto-me como se tivesse vinte anos, o tronco está mais delgado, e os meus ramos, encolheram, e agora até já consigo sentar-me num dos bancos de madeira que vivem no jardim ou baixar-me e colocar a caixa vazia de cigarros na papeleira, e tudo quase sem esforço, e tudo por pouco dinheiro,
E ninguém sabia onde encontrá-lo, na aldeia até já tinham pedido ao senhor Prior para rezar uma missa pela sua pecadora alma, e em uníssono diziam
Coitado do limoeiro, no fundo era um desgraçado, e tirando o vício, uma jóia, uma jóia de árvore
O senhor Prior rezou a missa pelo seu desaparecimento, ao centro da Igreja tinham colocado a fotografia a preto e branco de quando ele ainda era uma árvore robusta, forte, e nem a mais agreste das tempestades a conseguiam derrubar, mas agora, agora vive na agonia de partir sem que venham a saber a verdadeira história dele, e talvez por essa razão, hoje relate a vida e os saborosos limões que este meu amigo limoeiro deu, vendeu, e se não fosse o maldito vento
Ninguém sabia onde o encontrar, e o maldito vento conseguia arrastar as rochas do fundo do mar até ao santuário, nas algibeiras viemos a descobri pedaços de corda de nylon, não percebíamos qual a sua utilidade, mas hoje sabemos que foi com essas mesmas cordas que o triste limoeiro se suicidou, quando acordou da sonolenta paixão pelas bolhas castanhas, amarrou-se com uma das pontas da corda de nylon e a outra ponta prendeu-a a um dos pilares da enfermaria, depois
Depois coitado, ninguém sabia onde o encontrar,
E depois, quando já a noite poisava sobre o pavimento irregular da enfermaria-montanha, ergueu-se, cruzou os braços e voou em direcção ao abismo, e gritava enquanto sufocava
Detesto mentiras, Detesto mentiras, Detesto...

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Uma grade de aço com boca de quadriculas

Cessaram-se-lhe todos os ínfimos pingos de chuva que mergulhavam nos olhos vendados do homem prisioneiro da janela dos sonhos, havia silos de areia para ornamentar o regresso das navalhas de prata que docemente alimentariam o peito almofadado, acordava o vento que dançava abraçado aos ramos cintilantes das eternas manhãs desprovidas do orvalho semeado durante a noite por um vagabundo com um chapéu de palha seca, começava a chover pedacinhos de botões de açúcar, e mesmo antes de cessarem-se-lhe todos os ínfimos pingos de chuva que mergulhavam nos olhos vendados, ele cuspia pequenas golfadas de vento que fazia correr as folhas mortas que poisavam sobre a relva como um cobertor de lã sobre uma cama imaginária, que todos sabíamos, só ele, apenas ele, conseguiria ver, tocar, deitar-se nela, os dias passava-os sentado numa pedra granítica que tinha sobejado da reconstrução do cais do silêncio, e tinha por hábito cruzar os braços e fincar os lábios nos dentes de gesso há muito fora de validade,
Eu temia o regresso às árvores de poeira com ramos de algodão, sentia-lhes o cheiro intenso quando um interruptor de luz desligava-me os aparelhos vários que dentro de mim habitavam, e que eu já me tinha habituado, tão habituado, que muitas das vezes nem de dava conta que vivia com electrodomésticos no interior do meu estômago, ou um exaustor no interior dos meus pulmões calcinados pelo betuminoso que eu pisava na rodovia que me levava até casa, sentia-me completamente só, e nem os pássaros embalsamados, também eles sós, dormiam tão tristemente como eu dormia, quando as noites chegavam e eu fazia de conta que não estava em casa, batiam-me à porta e eu sabia que do outro lado ninguém à minha espera, talvez um velho morcego, em voos nocturnos, ou um pedra da calçada que se tenha soltado quando da passagem do eléctrico,
Ele acreditava nos abraços do amor e nas relíquias de espuma que o desejo deixava ficar sobre a mesa de pedra no centro do quintal, em volta, uma ramada servia de parede diurna e que quando da vindima colhiam uvas ranhosas completamente embriagadas pelas abelhas do senhor António Joaquim José de Pedro, e um enormíssimo ramo de flores com apetites de pólen esvoaçava como esvoaçavam as gaivotas sobre os velhos cacilheiros que o antigo Tejo abrigava como um pai quando pega no seu filho, e o beija, e o acaricia, e lhe diz baixinho,
Deus te proteja, meu querido filho,
Desconheço se algum dia o meu pai fez o mesmo, e se o fez, nem sequer me apercebi, porque perante Deus não existo, como não existo
Ele tinha medo do sono,
Como não existo nos dias ímpares, como não existo estatisticamente neste País de marinheiros sem embarcações robustas, e as poucas que existem, são como o xisto dos socalcos do Douro, parecem esponjas que absorvem toda a água, e os rios tornam-se chatos, amargos, tristes, e de olhar carrancudo,
Ele tinha medo do sono, vestia-se de preto, e no pouco cabelo que lhe cambaleava sobre a cabeça, prendia-lhe uma rosa com um arame de oiro, descia e subia os poste da iluminação pública, e não quero mentir, mas dizia-se que ele era filho da noite e da Lua crescia, fruto de uma relação proibida e extraconjugal, como muitas, e tantas, algumas felizes, outras
Como não existo quando os sons da Primavera dançam no cimo da copa das árvores, como não existo quando me olhas como um louco, um morto-vivo, moribundo, murmúrio magma dos seios de marfim que um artesão esculpiu nas paredes de mármore do meu empobrecido túmulo, como nunca existi
Outras, um fumo azul-celeste rompia a sujidade húmida do cachimbo usado pelo velho António Joaquim José de Pedro, sabíamos que no tabaco bolorento misturava-lhe as drageias para a próstata, insónia e reumático, às vezes, quando não se esquecia, introduzia também pequenos grãos de pólen para as constipações, dizia-nos ele quando lhe perguntávamos o que faziam grãos de pólen misturados no tabaco de cachimbo,
Hoje ninguém se interessa pelo magnetismo que tinham e têm os espectáculos de circo, a magia da inocência, as pálpebras de lona suspensas no tecto embaciado das matinés embrulhadas no ténue cacimbo da saudade, ouviam-se os lilases sorrisos da menina trapezista sobre um arame invisível, eu conseguia ouvir-lhe a respiração ofegante, trémula às vezes, em gemidos de Pôr-do-Sol, outras,
Ele tinha medo do sono,
Duas galinhas tinham acabado de morrer por afogamento, e o zinco que as cobria, em círculos no quintal do vizinho, eu gostava dele porque às vezes via-o em pequenos voos em volta das mangueiras, e com um saco de rede, recolhia todas as sombras que encontrava, dizia-nos que serviam para nas horas vagas fazer pequenas esculturas que posteriormente as vendia na Baía de chocolate banhada pelo mar de amêndoa, e também sejamos francos, o que são duas galinhas e três ou quatro chapas de zinco?, trocos, miúdos (de frango?), bonecos de borracha pendurados num triciclo enferrujado, como eu, que deixei de existir, que deixei
Medo do sono,
Colorir-me com o medo do senhor António Joaquim José de Pedro e quando acordar em mim a insónia, fazer de conta que não existo, como sei que nunca existi
Para ti, para mim, para eles, para elas,
Em vidro opacos completamente mergulhados nas roldanas de um relógio de pulso, e sabia-o
Que nunca existiram pingos de chuva,
E sabia-o
Que nunca existiram olhos vendados,
E sabia-o
Que nunca existiu um homem prisioneiro e a janela dos sonhos era uma grade de aço com boca de quadriculas que faziam sombra nos silos de areia.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Envergonhados barcos em loucos oceanos de gelo

Que faço eu sobre este pedaço de gelo esquecido no intranquilo mar da solidão? Perguntavam-se-lhes homens com cabeça de abóbora e olhos de cinzento amanhecer, não respondiam, cerravam os lábios de giesta nas rochas onduladas do faminto monte dos milagres incompreendidos, olhávamos-nos, e víamos entre os poste de cimento que seguravam as velhíssimas videiras, constituindo assim a ramada mais longa e indigesta da aldeia dos bebés filhos da água, os feridos pássaros pelos suspiros das almas gémeas, havia
Que faço eu aqui, meu querido?
Peso? Espaço? Solidão ou paixão em limites parêntesis das quadriculas enumeradas pelo professor de Matemática, via nas equações o sofrimento das palavras, dos homens, e das mulheres disfarçadas de flores com pétalas de sol, e no entanto, não me respondes à simples questão
Que faço eu aqui, meu querido?
Havia pinheiros velhos com bengalas de sombra e da penumbra escuridão dos olhos cinzentos dos homens com cabeça de abóbora uma atmosfera de embriaguez soltou-se da mesa com piso de mármore onde deixavas ficar os pedaços de papel e a caneta esfomeada, sem tinta, secos os mamilos da poesia, e no entanto
Quando me perguntas
O que faço eu aqui?
Não sei minha pobre filha com sabor a morango, e no entanto, uma navalha entranha-se-te e olhas-me de soslaio sabendo tu que nas minhas mãos vivem grãos de pólen e sementes de aveia, e tu apenas desejas que eu te responda à simples questão
Que faço eu aqui, meu querido? E dizes-me que não és abelha, Eu não sou uma abelha, portanto não preciso do pólen das tuas mãos, confesso em voz baixa que
Ela tem razão, como têm todas as noites de vigia que eu passava a olhar as bandeiras pintadas de orvalho quando desciam a calçada as meninas com borboletas pintadas na saia, sobre os cabelos tinham uma vaga escura vinda do oceano quando ainda tínhamos oceano em casa, abríamos a janela e encontrávamos os lábios da doce nuvem pintalgada de desejo e olhar doentio, e quantas vezes perdemos o que desejamos por nos calarmos? Ouvia-a enquanto queimava alguns dos meus desenhos na lareira, e confesso em voz baixa que começo a ficar um sonhador liquefeito, e confesso em voz baixa que começo a ficar sonolento, e sinto-me escorrer para a sarjeta em frente à casa dos pilares de areia, cheira-me a ferro fundido, a aço emagrecido, cheira-me a bolhas de luz com dentes de alumínio, e
Quando me perguntavas
O que faço eu aqui?
Dizia-te que havia pinheiros velhos com bengalas de sombra e da penumbra escuridão dos olhos cinzentos dos homens com cabeça de abóbora uma atmosfera de embriaguez soltava-se da mesa com piso de mármore onde deixavam ficar os pedaços de papel e a caneta esfomeada, sem tinta, secos os mamilos da poesia, e no entanto, tal como ontem, hoje, amanhã, continuarás a perguntar-me
O que faço eu aqui?
E eu perguntar-te-ei se gostas de cá andar
Gostas de cá andar? No mundo? Responder-me-ás
E vais esconder-te nos dejectos das palavras em cio,
Como os rios misturados nos envergonhados barcos, ao longe sente-se o latido de um canino solitário, talvez, tal como a caneta de tinta permanente, aquela que há pouco ficou esquecida sobre a mesa de mármore, esfomeada, sem tinta, com os mamilos da poesia secos, extintos, talvez eu tenha de assassinar a mulher de porcelana e o homem de vidro, que vivem, que vivem perguntando-me
O que fazemos aqui? Quantos éramos antes de possuirmos o teu corpo?
Que vivem disfarçados e disfarçadas como as raízes dissolvidas no almofariz da noite voadora com penas de cetim, havia, havia, havia em cada electrão um raio ínfimo com a capacidade de transformarem-me em gelo, e assim, deitava-me liquefeito e acordava solidamente sorridente, como as perdizes cansadas que deixaram de voar no monte da fantasia, bastando-lhes para isso, baixarem bruscamente a temperatura do amor confuso, fusco, vigiado por cabeças de alfinete ante do Big Bang, e depois eu ficava um pedaço de gelo esquecido no intranquilo mar da solidão.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
 

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(A aritmética do amor)

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Sapo Angola

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

(   )
Que o segredo acordava todos os dias pela madrugada, vestia-se de negro, descia as escadas até à cave e abrindo uma porta de madeira prensada, começava o enfezado caminho através dos perpétuos corredores da morte, um labirinto de desenhos pintados com lápis de cor e acrílico sobre tela de linho, rodeavam o tecto fingindo o céu com as estrelas, as verdadeiras estrelas que a loucura semeou nas varandas dos edifícios perdidamente apaixonados pela cidade, muitos, muitos sucumbiam até derreterem-se, e via-os a despirem-se e apenas ficava o líquido pegajoso de chocolate fora de validade, passaram os anos, e todas as ligaduras que suspendiam as cabeças de areia à velha janela, acordaram e quando se olharam ao espelho da enfermaria, todas, gritaram
Agora somos pó,
Hoje, vivem eternamente prisioneiros dos aviões de papel,
Gritaram e não abri a porta, fingi que dormia profundamente, e quem do outro lado incessantemente procurava por mim, acabou por desistir, como todos aqueles que me procuram
Agora somos pó,
Desistem, morrem, fogem durante a noite enquanto os carris de aço dormem como flores de abelha nas esplanadas de mel, queria pintar-me de preto, vestir-me de preto, construir umas asas de mulher apaixonada com pele cremosa e suada, com cabelo curtíssimo, corte tipo rapazola, e voar até que a morte nos separasse, e voar
(Gritaram e não abri a porta, fingi que dormia profundamente, e quem do outro lado incessantemente procurava por mim, acabou por desistir, como todos aqueles que me procuram),
E eu não sabia que o amor pode viver numa esquina de um prédio em ruínas no centro da cidade, e eu não sabia que o amor pode viver dentro de uma árvore de tecido com olhos verdes, ou castanhos, ou mesmo azuis, porque eu sou um parvalhão e um grandessíssimo estúpido, e não sabia que o amor vive e está em todo o lado, e em cada esquina um poeta procura por palavras, porque
Eu não sabia
Agora somos pó,
Porque o amor é uma coisa esquisita, indefinida (para mim, claro, que sou um grandessíssimo estúpido e parvalhão), e eu não sabia que o amor pode ter asas, e voar, como os pássaros que vejo todas as noites poisados sobre a mesa-de-cabeceira, juntamente com o “Dentro do Segredo” de José Luís Peixoto, e confesso, confesso que não sabia que o amor era isto, coisas, papeis nas paredes da inocência, cabelos soltos no vento da manhã saborosamente que uma caneta de açúcar vai escrevendo no relógio de pulso do poema acabado de escrever, porque
Eu não sabia
Agora somos pó,
Porque eu não sabia,
Que todos, alguns, desistem, morrem, fogem durante a noite enquanto os carris de aço dormem como flores de abelha nas esplanadas de mel, queria pintar-me de preto, vestir-me de preto, construir umas asas de mulher apaixonada com pele cremosa e suada, com cabelo curtíssimo, corte tipo rapazola, e voar até que a morte nos separasse, e voar, voar, e voar até à morte do poema,
Porque eu não sabia que o amor é tão simples com a aritmética...

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Madrugadas de areia


Desenho-te vezes sem conta
nos lençóis obscuros de púrpura neblina
quando do cais dos teus seios de infância
há barcos em silêncio
e ondas invisíveis no sorriso da tua pele ornamentada,

Finjo que nunca te amei
como acredito que as árvores têm palavras amigas
quando encosto o meu ouvido ao tronco sólido sentindo o desejo
e a mágoa desajeitada das sílabas sem papel nem tinta permanente
quando regressas a casa e finges que eu não existo,

Não me importo
como nunca me importei
com o dinheiro
riqueza
casas com piscina,

Nada me faz feliz
a não ser
desenhar-te incessantemente nos lençóis obscuros de púrpura neblina
quando do cais dos teus seios de infância
há barcos em silêncio,

Há casas desabitadas
com telhados de vidro
há flores de cartolina com pincéis de lábios de ti menina
menina dos sonhos de oiro
quando regressa a noite,

E finges que sou um livro sobre uma mesa-de-cabeceira
louca como todas as mesas-de-cabeceira
trôpega como todos dos guarda-fato com espelhos convexos
e dentes perplexos
como as bocas das cansadas madrugadas de areia...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

O fim dos dias

O fim dos dias,
Ontem tinha a certeza que das poucas coisas que me restavam eram estes poucos poeirentos livros, alguns antigos, mais velhos do que eu, alguns até mais velhos que o meu pai, outros, oferecidos por mulheres apaixonadas, outros, coisa nenhuma, apenas amizades que prezo e sempre prezei, o mais importante da vida são os amigos, claro que eu sou apelidado de louco e muitos irão pensar que estou errado, outros, outros que tenho razão, e outros ainda, que sou um parvalhão sem eira nem beira, e talvez o seja, e talvez não
E fico sempre assim, assim como? Assim, sempre que assisto ao fim dos dias, assim como se eu fosse um vulto vestido de sombra à procura de um espelho, olhava-me e via do outro lado alguns arbustos e um pedaço de rio em relâmpagos cinzentos acabando por despenharem-se nas raízes da paixão, como os limos, como os orgasmos que voam entre quatro paredes, como eles, os toques disponíveis no Facebook (servem para quê?), explicam-me que
Servem para não me ficar a dormir enquanto conduzo, isto é, enquanto escrevo, que servem também para eu perceber que estou vivo, ou
Para anunciarem-me o fim dos dias
Será?
Sim, o fim dos dias sem eira nem beira, oiço-os e fico furioso quando me dão toques e quando respondo, não me respondem, tal como a noite quando regressa, saio de casa, fecho hermeticamente a porta de entrada, meto as chaves na algibeira, puxo por um cigarro virtual, e
Fica dia,
Volto a meter o cigarro virtual na algibeira, volto a tirar vagarosamente as chaves, abro a porta de entrada, entro em casa, e
Fica novamente noite,
Desisto,
O fim dos dias,
(Manuseio-o e aprecio a beleza de um Cachimbo construído pelo artesão João Reis, é lindo, e felizmente tenho um entre mãos, manuseio-o e recorda-me os silêncios intermináveis das noites em que eu ainda conseguia voar entre quatro paredes como os orgasmos, ou com um pouco de sorte encontrar nas centenas de poeirentos livros alguns com a tua dedicatória, possivelmente existirá um, um apenas, como os toque que não servem para nada
A não ser,
A não ser proibir-me de adormecer enquanto escrevo),
O fim dos dias, os vultos meus pintados no espelho do guarda-fato, queria ficar sempre lá, como um prisioneiro condenado a prisão perpétua, até que um toque me acordava e libertava,
Abaixo as ditaduras e todos os ditadores deste planeta, abaixo as paixões e os amores das flores carnívoras, abaixo as janelas e as fotografias e os rios que dormem nas cidades de vidro, abaixo os toque, os malditos toques que não servem para nada, rigorosamente nada,
Como uma, apenas uma se existir, dedicatória num dos meus velhos e poeirentos livros,
Na fogueira que cresce, se alimenta, e sorri, à lareira
A tua lareira embrulhada em sonhos e quadradinhos de chocolate, há palavras por dizer, e frases por escrever, e
O fim dos dias,
E
Sim, o fim dos dias sem eira nem beira, oiço-os e fico furioso quando me dão toques e quando respondo, não me respondem, tal como a noite quando regressa, saio de casa, fecho hermeticamente a porta de entrada, meto as chaves na algibeira, puxo por um cigarro virtual, e
E
(acabo de receber mais um toque “virtual”).

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Cachimbos de Prata

Um pedacinho de névoa
entranha-se na tua doce boca vestida de alecrim
e das algibeiras insónias madrugadas
acordam as imagens fictícias do orvalho incendiado pelo incenso doirado
olho-te vagarosamente no espelho mental das árvores danificadas
pelos ventos e tormentos que em ti navegam
perdidamente como uma gota de água
esquecida num banco de pedra debaixo de um plátano tresmalhado
e doente apaixonado
pelos orifícios indistintos do velho jardim
um pedacinho de névoa
entre os teus lábios narcisos e a tua língua rosa com pétalas de amor,

Oiço a tua mão voraz desenhando letras nocturnas
em nuvens de seda
oiço os teus gemidos transversais contra as paredes do velhíssimo relógio
suspenso no peito cansado e triste do homem das sete patas de madeira oca
oiço a voz rouca de um cachimbo de prata
saltitando
dançando
nas eiras graníticas das canções que a infância comeu
em pequenos torrões de açúcar
misturados com sílabas de céu estrelado
e sandes de marmelada
ao pequeno-almoço,

Pedia-te sossego e tu desaparecias de mim
dançando
saltitando
como um cachimbo de pedra adormecida pelas vagas contra os rochedos
dormíamos dentro dos ouvidos da praia
e antes de encerrarmos definitivamente os cortinados da Aurora Boreal
entrava em nós o Rossio vestido de gente
com mãos de noite
ouvíamos o rio nas catacumbas do amor
a pintar estrelas de luz
e luas de papel
e eu sabia que tu nunca mais irias regressar das salivas amargas do primeiro amor...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Mentiras de porcelana com dentes de marfim

Parecíamos pássaros vestidos com casacos de aço inoxidável e voávamos e voávamos, e voávamos como se lá fora existisse um fio de silêncio que nos sufocava e víamos às vezes o colar de pérolas da bruxa má, a mulher velha que vivia na cabana de pedra com acesso ao destino, perguntávamos-lhe se um dia alguém nos ia apanhar e cozinhar em chapas de alumínio com molho de rosas em pétalas vermelhas, respondia-nos sempre a resmungar que
Parvalhões de pássaros que nunca aprendem que o destino não existe,
E eu, e eles, elas, acreditávamos que sim, que o destino não existia e era invenção de um velho a que toda a gente chamava de Armindo e diziam as más línguas que era ele o responsável pelo andamento do tempo, pois fazia-se passear durante a noite com uma enorme manivela que servia para dar corda às pesadíssimas roldanas de papel, os segundos transformavam-se em minutos, e os minutos corriam de mão dada com as horas, depois, muito depois as horas vestiam-se de dias, de semanas, meses, e anos, à espera
Parvalhões de pássaros que nunca aprendem que o destino não existe,
Que o amor acordasse numa janela de vidro sem cortinados, apenas a preto e branco a imagem dela, a manhã móvel e soalheira do ainda não acordado Sábado, tínhamos poesia e fatias de pão com manteiga derretida nas palavras de ninguém, que o amor acordasse, se transformasse em homem, se transformasse em mulher, se
À espera que dos parvalhões pássaros nasçam parafusos de areia e beijos de cetim, e beijos de chita, e beijos com beijos em beijos quando desce a noite e entra no púbis das mãos de linho, a minha mãe passava tarde intermináveis a construir colchas de renda, e eu, quando a apanhava distraída, roubava-lhe os novelos de linha para os meus papagaios de papel, e voávamos e voávamos, e voávamos como se lá fora existisse um fio de silêncio, um fio de silêncio com hálito a renda floreada, lindas, belas, elas
As colchas de renda, voavam também elas como se fossem papagaios à procura dos lábios da paixão, vivíamos prisioneiros a uma cratera de tesão que o meteorito tinha deixado nos nossos corpos flácidos, como as toalhas de linho da avó Silvina, e elas
Se
À espera dos parvalhões pássaros,
Pássaros vestidos com casacos de aço inoxidável e voávamos e voávamos, e voávamos como se lá fora existissem madrugadas sem portas, como se lá fora existissem alvoradas sem telhados, como se lá fora existissem dois pequenos corpos nas mãos do velho Armindo, ele hesitava
Ou pego neles ou pego na manivela e dou andamento ao tempo, curiosamente nós também não sabíamos, e ela dizia-me que tudo era culpa de Einstein, e eu
Enquanto fumava cigarros com sabor a chocolate não percebia o que tinha Einstein a ver com o que se tinha passado connosco, mas fingia acreditar, como finjo acreditar em tudo aquilo que me dizem, que me disseste, e dizes
Mentiras de porcelana com dentes de marfim, não importa, um dia voltarás como voltam os pássaros, todos os anos, vestidos com casacos de aço inoxidável, voltarás um dia, a não ser que
O velho Armindo deixe de dar à manivela e o tempo cesse em nós como cessaram todos os desejos de todas as palavras, como cessaram todas as árvores e todos os rios, e lá fora, ao longe, uma fragata de pano voa como voávamos antes de chegarem as amendoeiras em flor, ao longe, muito longe, como cessaram as lâminas de pele húmida com gotinhas de suor, se os
Parvalhões dos pássaros aprendessem que o destino não existe,
Tínhamos os casacos mais pesados da cidade, e ninguém ao regressarmos do dia para vermos, aos poucos, erguer-se a noite entre os mastros de madeira com as velas de pano amarrotado, sujo, levemente cintilante como as lâmpadas das escadas que nos levavam até ao telhado, sentávamos-nos sobre as telhas invisíveis e falávamos com a lua de prata que sombreava as minguas mãos dos vagabundos esquecidos sobre as lareiras de vidro, tínhamos os casacos mais pesados da cidade, e ninguém
“Pesadíssimas roldanas de papel, os segundos transformavam-se em minutos, e os minutos corriam de mão dada com as horas, depois, muito depois as horas vestiam-se de dias, de semanas, meses, e anos, à espera
Parvalhões de pássaros que nunca aprendem que o destino não existe,”
Ninguém queria saber de nós; de mim, de ti, deles, delas, dos pássaros e dos casacos de aço inoxidável.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Ao léu entre abraços e cansaços


Os cansaços que a vida me deu
de abraços em pedaços de sol
os carrascos cansaços de uma manhã ao léu
como as cartas do Pacheco (Luiz Pacheco, Cartas ao Léu)
os silêncios das espigas poesia
entre cansaços e carrascos
os teus e os meus abraços
dentro de uma barcaça em dias de alegria,

Havia
havia poucas ou nenhumas cartas de amor
que palavras eu diria
à lareira a saudade que ardia
da lareira o sorriso de uma bela e linda flor
havia cigarros de conserva com molho de tomate
havia
e eu sabia que das minhas pobres mãos nascia
e crescia
um lindo menino de nome alicate
coitado coitadinho
enfezado como os orgasmos da menina fantasia,

Os cansaços que a vida me deu
poucos
abraços e beijos às bocas que o velho com cabeça de abobora
semeou e plantou e dizimou
não sabendo que eu sabia
que havia
laranjas e limões para a sobremesa
disfarçada de melancia,

E havia
homens amantes do sol
e mulheres que amavam a lua
e eu
não sabia
e eu
percebia
e eu
farto da escrita de porcaria
que faço
e invento sem saber e perceber
que um dia vou morrer,

E alguém vai dizer
escrever
que grande merda este gajo nos deixou
porque os cansaços que a vida me deu
me tirou
e o amor derretido em paixão
arde docemente à lareira
a mesma lareira onde se aquece a flor
disfarçada de amor
que da minha mão
me amou
ou vai amar,

quando perceber
que eu
que eu sou filho do mar...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

A caixinha de sapatos

Vivia numa caixa de sapatos tamanho trinta e cinco, com seis anos vi e calcei o meu primeiro par de botas, ouvia o meu pai
Temos de compra umas botas ao rapaz,
Questionava-me, perguntava-me,
O que são botas?
Começava o frio e eu estava habituado aos calções e às sandálias de couro, não tínhamos nada, ou pior, tínhamos tudo aquilo que muitos não tinham, mas como diz o OUTRO
AGUENTAMOS, ENTÃO NÃO AGUENTAMOS? Claro que aguentamos e felizmente estamos os três vivos e de boa saúde, eu sabia-o como sabia que seria difícil andar com umas botas pesadíssimas e depois de as descalçar os meus pequeninos pés pareciam pedaços de tecido, escuro, com bolinhas escuras, e eu pensava
Deve ser das noites de Inverno, pensava eu e hoje digo-o
E pensava muito bem, pois o Inverno realmente enrija-nos os ossos e alguns de nós ficamos mais despertos, outros, como eu, mais aparvalhado, e ainda outros, coitados dos outros
Moribundos como as geadas de Janeiro, passamos o Natal no interior da penumbra branca, esguia, solidamente como a neve suspensa na grade enferrujada da varanda com vista para a Praça, acordei cedo, corri desassossegadamente para a inventada chaminé e dava-me conta que nada existia dentro da bota que tinha deixado ficar sobre o fogão como sempre o tinha feito em Luanda (não como uma bota mas com um sapato), pensei
De certeza a causa mais provável é a pesadíssima bota, depois imaginei um senhor vestido de vermelho com barbas brancas, um pouco barrigudo, olhei para a inventada chaminé e nenhuma dificuldade encontrei para o dito senhor não me ter deixado alguma coisa, enfureci-me e mentalmente insultei-o, e chamei-lhe todos os nomes possíveis e imaginários, comecei e, Boi e terminei em filho da puta, até que um dos meus irmãos mais velhos me explicou
Não vês rapaz que ele ainda não tem a tua nova direcção, e confesso que não percebi, Direcção, que direcção? O que é uma direcção? E ele explicava-me pacientemente que era a minha nova morada e eu a chorar perguntava-lhe Porquê, Porque viemos, e se fosse hoje ele talvez me dissesse que o meu nome não constava da base de dados, mas eu estava ontem, e ontem eu só tinha uma folha de papel selado com vinte e cinco linhas, mas
Vou entregá-la a quem? Ontem não se podia reclamar de nada, como ia eu queixar-me do homem vestido de vermelho com barbas brancas e algo de barrigudo? Não podia,
Mas como diz o OUTRO
AGUENTAMOS, ENTÃO NÃO AGUENTAMOS?
Eu e os meus pais e os meus irmãos mais velhos e os nossos vizinhos e os vizinhos dos vizinhos,
Todos
Aguentamos e estamos vivos e de boa saúde.

(texto de ficção)
@Francisco Luís Fontinha

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(uma casa com quatro janelas)
Sapo Angola

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Uma casa com quatro janelas

Uma casa com quatro janelas voava sobre a manhã apodrecida que do Douro acordava, devagarinho, e aos poucos, pedaços milímetros de saudade subiam os pinheiros vadios e os pássaros bebés brincavam solitariamente com minhocas e azeitonas em compota, eu ainda não era nascido, e dizia-se baixinho que as paredes tinham ouvidos,
O vento era tão forte naquela manhã que tivemos de nos acorrentar aos poucos muros em xisto que sobejaram das tempestades de areia vindas do outro lado da rua, o quintal benzia-se e rezava, e um crucifixo de areia prendia-se voluntariamente a uma árvore enfeitiçada pelo silêncio do amor proibido, havia claridade suficiente para que eles se vestissem e zarpassem como barcos encapuçados fugindo da polícia politica que o Estado tinha inventado, e eu que ainda não era nascido não podia dizer que o Presidente do Conselho era
“Um grande filho da puta”,
Às vezes tinha medo da escuridão quando caia a noite em Luanda, olhava o céu nocturno e sentia os limites entre quatro parêntesis e a casa da aldeia com quatro janelas, em círculos procurava os ouvidos das paredes, e em vão
Nada, nunca os vi, mas apercebia-me que às vezes em nossa casa os adultos conversavam baixinho, e muito devagar, eu questionava-os, e eles diziam que eram conversas de adultos, perguntava-lhes porque só eu é que jantava e eles
Não temos fome,
Curiosamente, nunca tinham fome, e curiosamente hoje percebo que o faziam para que o jantar chegasse para mim, e eu que ainda não era nascido não podia dizer que o Presidente do Conselho era
“Um grande filho da puta”,
Como todos os Presidentes do Conselho de todas as ditaduras, e curiosamente
Não temos fome meu filho,
Mergulhávamos sonambulamente nos barcos com algarismos pintados com restos de tinta que uma lata de sardinhas trazia na algibeira, e quase tenho a certeza que o mar queria comer-nos, mas nós éramos fortes e estávamos acorrentados a um fio invisível de aço que prendia-nos a tenda de lona ao muro anão de xisto com artrose e percebia-se que da coluna vertebral vinha um perfume estranho, como as palavras que o rio reflectia antes de chegarmos ao mar, e a chuva tomava conta de nós, e a chuva misturava-se nas garras dos senhores residentes do Conselhos de todas as ditaduras, os assassinos
Também amam e sofrem de desamor, respondiam-nos eles quando viemos encaixotados dentro de uma casa com quatro janelas, atravessamos o oceano como pássaros dentro de uma gaiola de vidro, e quando regressava a noite eu ouvia-os
Não temos fome,
E eu sabia que tinham, e eu sabia que a casa com quatro janelas de vidro voava sobre a manhã apodrecida que do Douro acordava, devagarinho, e aos poucos, pedaços milímetros de saudade subiam os pinheiros vadios e os pássaros bebés brincavam solitariamente com minhocas e azeitonas em compota, eu ainda não era nascido, e dizia-se baixinho que as paredes tinham ouvidos,
E hoje sei que tinham, e hoje ainda têm,
Quatro janelas e voam sobre o Douro.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Uma nódoa num pano pornográfico


Todos eles me dizem e salivam nas paredes do orvalho
que eu não tenho coração
que eu sou uma nódoa num pano pornográfico
à janela do tempo indeterminado
oiço-os dentro dos buracos e respiram
e se alimentam nas vãs mensagens sem destinatário
não vou regressar
e recuso-me a absorver-me nas planícies que a paixão tece
e vagabundeia sabendo que às vezes
lágrimas
há lágrimas de chocolate
na aldeia do desejo,

há uma lareira com vista para o Douro
lá encosta-se e poisa a mulher mais bela
e ardem pedaços de videira
e se aquecem as palavras sem livros onde dormirem
e se aquecem abajures de linho
há uma claridade intensa
da paixão das almas e dos xistos com olhos de diamante
lá encosta-se a Deusa adormecida
como o Douro em cascatas até ao cimo da montanha
lá encosta-se o desejo de um coração de prata
com sabor a lilases flores que o Inverno atormenta
e a lareira não cessa de amar.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

As coxas de diamante lapidado

Me perdi, desencontrei, me amei e chorei por você, me perdi, e me cansei, me desorientei, tudo, tudo por você, sonhei, escrevi versos sobre a luminosidade das pálidas tardes que eu inventava para
Para você,
Inventei um sol e uma lua, construí jangadas de beijos e pintei
Para você,
E pintei o céu nocturno das planícies complexas dos orvalhos destinos em círculos de luz com olhos verdes e cabelo castanho, havia uma rosa dentro e um livro que eu roubei
Que tu roubaste num público jardim,
Que eu roubei de um silêncio de Primavera, para você, me perdi, desencontrei, e me amei
E chorei, inventei as loucas abelhas das paredes de xisto, e me cansei de procurar as ditas palavras do amor, me amei, e me apaixonei, tudo
Por você,
Amanhã serei um fio de solidão suspenso entre dois postes de iluminação, amanhã serei uma bola de neve com uma cenoura e duas azeitonas, muitos vão acreditar
E dizerem
Este é o dito António das névoas, homem de poucas palavras, desamado, desacreditado, este é ele, aquele que vocês diziam ter poderes mágicos na língua e que das mãos saiam versos, afinal, afinal este não é ninguém, por você
Amei, e chorei, e sonhei, e tombei
No pavimento térreo das amoreiras voadoras, tive sonhos e tive grandes loucuras sobre barcos com lentes de contacto, tive o céu ao meu dispor, e nada disso eu quis, não quero, detesto, as palavras do amor, os versos que escrevo, os versos que reescrevo, invento, a ventosidade, alimento-me das dálias masculinas e femininas dos jardins da Babilónia, e
Amei, e chorei, e sonhei, e tombei, da Babilónia para você
Um magnifico frigorífico a cores, uma máquina de café expresso, alguns livros e umas telas ranhosas que em horas vadias o dito António das névoas desenhou e pintou, tudo, tudo para você,
E hoje pergunto-me onde está ele? Nunca mais o vi, nunca mais ouvi os seus lamentos quando se sentava na varanda, quando puxava de um cigarro maroto, e desabafava palavras dele com as minhas palavras, quando misturava o fumo dele com o meu próprio fumo, e hoje
(Pergunto-me),
(    )
(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha