Parecíamos pássaros vestidos com casacos de aço
inoxidável e voávamos e voávamos, e voávamos como se lá fora
existisse um fio de silêncio que nos sufocava e víamos às vezes o
colar de pérolas da bruxa má, a mulher velha que vivia na cabana de
pedra com acesso ao destino, perguntávamos-lhe se um dia alguém nos
ia apanhar e cozinhar em chapas de alumínio com molho de rosas em
pétalas vermelhas, respondia-nos sempre a resmungar que
Parvalhões de pássaros que nunca aprendem que o
destino não existe,
E eu, e eles, elas, acreditávamos que sim, que o
destino não existia e era invenção de um velho a que toda a gente
chamava de Armindo e diziam as más línguas que era ele o
responsável pelo andamento do tempo, pois fazia-se passear durante a
noite com uma enorme manivela que servia para dar corda às
pesadíssimas roldanas de papel, os segundos transformavam-se em
minutos, e os minutos corriam de mão dada com as horas, depois,
muito depois as horas vestiam-se de dias, de semanas, meses, e anos,
à espera
Parvalhões de pássaros que nunca aprendem que o
destino não existe,
Que o amor acordasse numa janela de vidro sem
cortinados, apenas a preto e branco a imagem dela, a manhã móvel e
soalheira do ainda não acordado Sábado, tínhamos poesia e fatias
de pão com manteiga derretida nas palavras de ninguém, que o amor
acordasse, se transformasse em homem, se transformasse em mulher, se
À espera que dos parvalhões pássaros nasçam
parafusos de areia e beijos de cetim, e beijos de chita, e beijos com
beijos em beijos quando desce a noite e entra no púbis das mãos de
linho, a minha mãe passava tarde intermináveis a construir colchas
de renda, e eu, quando a apanhava distraída, roubava-lhe os novelos
de linha para os meus papagaios de papel, e voávamos e voávamos, e
voávamos como se lá fora existisse um fio de silêncio, um fio de
silêncio com hálito a renda floreada, lindas, belas, elas
As colchas de renda, voavam também elas como se
fossem papagaios à procura dos lábios da paixão, vivíamos
prisioneiros a uma cratera de tesão que o meteorito tinha deixado
nos nossos corpos flácidos, como as toalhas de linho da avó
Silvina, e elas
Se
À espera dos parvalhões pássaros,
Pássaros vestidos com casacos de aço inoxidável e
voávamos e voávamos, e voávamos como se lá fora existissem
madrugadas sem portas, como se lá fora existissem alvoradas sem
telhados, como se lá fora existissem dois pequenos corpos nas mãos
do velho Armindo, ele hesitava
Ou pego neles ou pego na manivela e dou andamento ao
tempo, curiosamente nós também não sabíamos, e ela dizia-me que
tudo era culpa de Einstein, e eu
Enquanto fumava cigarros com sabor a chocolate não
percebia o que tinha Einstein a ver com o que se tinha passado
connosco, mas fingia acreditar, como finjo acreditar em tudo aquilo
que me dizem, que me disseste, e dizes
Mentiras de porcelana com dentes de marfim, não
importa, um dia voltarás como voltam os pássaros, todos os anos,
vestidos com casacos de aço inoxidável, voltarás um dia, a não
ser que
O velho Armindo deixe de dar à manivela e o tempo
cesse em nós como cessaram todos os desejos de todas as palavras,
como cessaram todas as árvores e todos os rios, e lá fora, ao
longe, uma fragata de pano voa como voávamos antes de chegarem as
amendoeiras em flor, ao longe, muito longe, como cessaram as lâminas
de pele húmida com gotinhas de suor, se os
Parvalhões dos pássaros aprendessem que o destino
não existe,
Tínhamos os casacos mais pesados da cidade, e
ninguém ao regressarmos do dia para vermos, aos poucos, erguer-se a
noite entre os mastros de madeira com as velas de pano amarrotado,
sujo, levemente cintilante como as lâmpadas das escadas que nos
levavam até ao telhado, sentávamos-nos sobre as telhas invisíveis
e falávamos com a lua de prata que sombreava as minguas mãos dos
vagabundos esquecidos sobre as lareiras de vidro, tínhamos os
casacos mais pesados da cidade, e ninguém
“Pesadíssimas roldanas de papel, os segundos
transformavam-se em minutos, e os minutos corriam de mão dada com as
horas, depois, muito depois as horas vestiam-se de dias, de semanas,
meses, e anos, à espera
Parvalhões de pássaros que nunca aprendem que o
destino não existe,”
Ninguém queria saber de nós; de mim, de ti, deles,
delas, dos pássaros e dos casacos de aço inoxidável.
(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
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