Vivia numa caixa de sapatos tamanho trinta e cinco,
com seis anos vi e calcei o meu primeiro par de botas, ouvia o meu
pai
Temos de compra umas botas ao rapaz,
Questionava-me, perguntava-me,
O que são botas?
Começava o frio e eu estava habituado aos calções
e às sandálias de couro, não tínhamos nada, ou pior, tínhamos
tudo aquilo que muitos não tinham, mas como diz o OUTRO
AGUENTAMOS, ENTÃO NÃO AGUENTAMOS? Claro que
aguentamos e felizmente estamos os três vivos e de boa saúde, eu
sabia-o como sabia que seria difícil andar com umas botas
pesadíssimas e depois de as descalçar os meus pequeninos pés
pareciam pedaços de tecido, escuro, com bolinhas escuras, e eu
pensava
Deve ser das noites de Inverno, pensava eu e hoje
digo-o
E pensava muito bem, pois o Inverno realmente
enrija-nos os ossos e alguns de nós ficamos mais despertos, outros,
como eu, mais aparvalhado, e ainda outros, coitados dos outros
Moribundos como as geadas de Janeiro, passamos o
Natal no interior da penumbra branca, esguia, solidamente como a neve
suspensa na grade enferrujada da varanda com vista para a Praça,
acordei cedo, corri desassossegadamente para a inventada chaminé e
dava-me conta que nada existia dentro da bota que tinha deixado ficar
sobre o fogão como sempre o tinha feito em Luanda (não como uma
bota mas com um sapato), pensei
De certeza a causa mais provável é a pesadíssima
bota, depois imaginei um senhor vestido de vermelho com barbas
brancas, um pouco barrigudo, olhei para a inventada chaminé e
nenhuma dificuldade encontrei para o dito senhor não me ter deixado
alguma coisa, enfureci-me e mentalmente insultei-o, e chamei-lhe
todos os nomes possíveis e imaginários, comecei e, Boi e terminei
em filho da puta, até que um dos meus irmãos mais velhos me
explicou
Não vês rapaz que ele ainda não tem a tua nova
direcção, e confesso que não percebi, Direcção, que direcção?
O que é uma direcção? E ele explicava-me pacientemente que era a
minha nova morada e eu a chorar perguntava-lhe Porquê, Porque
viemos, e se fosse hoje ele talvez me dissesse que o meu nome não
constava da base de dados, mas eu estava ontem, e ontem eu só tinha
uma folha de papel selado com vinte e cinco linhas, mas
Vou entregá-la a quem? Ontem não se podia reclamar
de nada, como ia eu queixar-me do homem vestido de vermelho com
barbas brancas e algo de barrigudo? Não podia,
Mas como diz o OUTRO
AGUENTAMOS, ENTÃO NÃO AGUENTAMOS?
Eu e os meus pais e os meus irmãos mais velhos e os
nossos vizinhos e os vizinhos dos vizinhos,
Todos
Aguentamos e estamos vivos e de boa saúde.
(texto de ficção)
@Francisco Luís Fontinha
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