sexta-feira, 19 de abril de 2024
quinta-feira, 12 de janeiro de 2023
O assassino de telas
Conheci o
Alfredo numa noite de copos e charros, conversávamos de literatura e poesia, e
logo que o olhei percebi que além de estar todo vestido de negro com uma
estrela branca no peito, era tímido.
No final da
noite levei-o para casa, acomodei-o e dei-lhe comida, e quando o questionava
sobre este ou aquele assunto, o Alfredo apenas me respondia que sim ou que não,
e confesso que me é muito difícil conversar com alguém que quando questionado
apenas responde, sim ou não.
Às vezes,
acordava maldisposto, muito triste, mas sempre pensei que se devia ao facto de
ele estar ausente da família e daqueles que amava.
Nunca percebi a
tristeza do Alfredo.
Hoje, enquanto
assassino telas em branco com os riscos de merda que lá coloco, o Alfredo
olha-me como se me estivesse a dizer…
Oh meu rapaz,
deixa-te de pincelares e assassinares telas porque não tens jeito nenhum para
isso,
E quando olho as
telas assassinadas por mim, percebo que o Alfredo tem toda a razão.
O Alfredo é um
gatinho, é invisível e todas as noites me visita enquanto eu assassino telas e
folhas de desenho.
Coitado do
Alfredo; ter que conviver e coabitar com um assassino de telas e de folhas de
desenho.
Alijó,
12/01/2023
Francisco Luís
Fontinha
(ficção)
domingo, 8 de janeiro de 2023
sábado, 17 de dezembro de 2022
As finas lágrimas do Inverno
Sabes pai
O irmão que me deste não
gosta de poesia
Não gosta de literatura
Arte
O irmão que me deste
Pertence ao grupo
daqueles que não querem ser nada
Percebes pai
Nada.
E ultimamente sentia pena
Do Álvaro de Campos
Ou do AL Berto,
Mas olha pai
Deixei de ter pena deles
Tenho de me preocupar
comigo
E deixar em paz
Em paz o senhor Álvaro de
Campos e o coitado do AL Berto.
O irmão que me deste
Sabes pai
Detesta Proust
Que lhe leia Proust
E sabes pai
Eu adoro Proust.
O irmão que me deste
Passa as noites numa
taberna
E fica à espera que
regresse o comboio de Santa Apolónia
E sabes pai
O coitado ainda não
percebeu
Que o comboio de Santa
Apolónia nunca chegará ao destino.
E sabes pai
O único destino de
verdade
É sem dúvida a morte
Essa sim
Regressa sempre no
horário certo.
Mas o irmão que me deste
Não quer saber de Proust
Ou da morte
Tão pouco se o comboio
sem destino
Regresse
E se regressar
Tanto faz
Será apenas um comboio
entre outros.
Um comboio estúpido
Um comboio que transporta
as finas lágrimas do Inverno
E sabes pai
Ele não sabe
Ele nunca saberá
Que este comboio não
existe
Que este comboio nunca
existirá…
Tal como os livros de
Proust que ele nunca leu
Detesta
E nem quer ouvir falar.
Mas sabes pai
Não estou chateado por me
dares um irmão
Um irmão que detesta
Proust
Que não quer que eu lhe
leia Proust,
Estou chateado
Muito chateado
Pai
Porque o irmão que me
deste é um cretino
Um cretino que nunca será
ninguém
Um cretino
Um falhado
Um falhado que não gosta
de Proust
Que detesta Proust
E não quer que eu lhe
leia Proust.
E espero pai
Desejo muito meu querido
pai
Que o comboio que vem de
Santa Apolónia se estampe contra um lençol de lágrimas
E que morra como morrem
os homens.
E sim pai
Eu gostava de ser um
comboio com partida de Santa Apolónia
E pelo caminho
estampar-me contra uma nuvem de sangue
Uma pequena nuvem com
odor a naftalina,
Depois
Pego “Em busca do tempo
perdido”
E sim pai
O cretino do meu irmão
vai perceber que Proust
Sim pai
Que Proust morreu
esgotado.
Alijó, 17/12/2022
Francisco Luís Fontinha
quinta-feira, 10 de novembro de 2022
Palavras entre marés
Estávamos no Inverno
E das tuas mãos finas
longas e frias
Vinham a mim as palavras
entre marés adormecidas
Sobre a frágil melancolia
dos teus olhos
Um pedacinho de sorriso
meu
Caía sobre o mar de
insónia
Como crianças em
brincadeira
À volta de uma fogueira
invisível
E percebia-se das nuvens
que nos abraçavam
As gloriosas flores em
combustão
Todas as manhãs
Abro a janela para o mar
Limpo a poeira nocturna
que sobre os meus livros dorme
E numa carícia
Invento o sono nos teus
olhos de poesia
Guardo as tuas lágrimas
de luz
Desço as escadas que me
levam durante a noite
Às esplanadas dos grandes
rochedos
Saltamos o muro da
infância
E na tua mão acordam as madrugadas
simples sem sótãos
O poema que trazes no
corpo
Aos poucos
Puxa a minha triste mão
E de um cigarro anónimo
Regressam a mim as
lareiras das tardes sem literatura
Alijó, 10/11/2022
Francisco Luís Fontinha
segunda-feira, 17 de outubro de 2022
Seara madrugada
Escrevo-te,
enquanto acorda em mim
O triste
silêncio da manhã,
E perco-me nos
teus lábios,
Seara madrugada
Dos meus tristes
pecados,
Escrevo-te,
enquanto as minhas palavras
Acordam nos teus
olhos silenciados
Pelo alegre
luar,
Escrevo-te,
enquanto olho este mar
Que leva para
longe todas as minhas madrugadas,
E são infinitas.
Escrevo-te,
janela lunar
Dos medos
envenenados,
No corpo
complexo e invisível
Dos bosques em
esconderijo abraço,
Escrevo-te,
milhafre
Das tardes junto
ao rio,
Nas montanhas do
Adeus…
Escrevo-te,
poema milagre,
Que poisa sobre
ti,
Antes de
terminar o dia.
Escrevo-te, carta
sem destinatário,
Menino dos
calções…
Enquanto fugias
da lareira
Das noites frias
de Inverno.
Alijó,
17/10/2022
Francisco Luís Fontinha
sábado, 8 de outubro de 2022
Borboletas
Gosto de borboletas,
Gosto dos meus poemas,
Gosto de cabrito,
Gosto de leitão,
Gosto das tuas sombras
sobre o meu corpo,
Gosto da geada,
Do frio Inverno,
Gosto,
Gosto dos teus lábios,
Da tua boca,
Gosto dos teus tristes
olhos,
Das tuas finíssimas mãos,
Gosto de borboletas,
Gosto das minhas
palavras,
Gosto do sol,
Da lua,
Gosto das noites
apaixonadas,
Gosto das estrelas,
Gosto de ti,
E não gosto de nada,
Gosto das partes ósseas do
cabrito e do leitão,
Gosto da tua pele,
Do teu perfume,
Gosto de me levantar
cedo,
Deitar tarde,
Gosto de sonhar,
Gosto de envenenar a
saudade,
Gosto de ti,
Gosto de mim,
Gosto,
E gosto muito de fumar…
Gosto muito de
borboletas.
Francisco Luís Fontinha
Alijó, 08/10/2022
domingo, 3 de julho de 2022
O puto
Depois, tínhamos de
inventar o sono. Enganávamos a noite construindo nas paredes do luar
pequeníssimas flores em papel, diga-se; tínhamos trazido da antiga ilha da
solidão todos os leitos do amor proibido. Nas ruas da cidade, ouviam-se os
gritos dos cacilheiros que durante o dia transformavam o tejo em pequenas
estradas de transeuntes e, sob o viaduto em Cais do Sodré, putas finas
guerreavam-se por cinquenta escudos.
O sono, que de algibeira
em algibeira, de lapela em lapela, desenhava-se no pavimento lamacento em
pequenas vozes sinusoidais e ao fim de alguns gritos e gemidos, acabava sempre
por regressar a uma Belém envenenada pelos putos em busca de sexo e depois de
alguns escudos, escondiam-se rio adentro como que crianças em fuga da
literatura que nesta ou naquela rua, se vendia a preço de saldo.
Uma noite mergulhei no
poema da saudade, acreditando que depois do sono, acordarias sobre as lâminas
do medo, mas mal visto, nada poderia na altura vaticinar que as janelas do teu
olhar, hoje, sejam apenas cacos e pequenas migalhas.
O poema, às vezes,
enquanto o poeta fumava cigarros de luz, mergulhava no rio e, ao longe, na
varanda de um paquete que começava, aos poucos, em pequenas manobras, a
aproximar-se de terra, mergulhava e só voltava depois de longas horas de
espera, onde cadeiras e mesas já dormiam.
Hoje, ainda hoje, percebo
que o poeta que sentado na margem do rio fumava cigarros de luz e o menino que
na varanda do paquete via uma cidade imensa a entrar-lhe olhos adentro, eram um
só; eu.
Anos depois, a cidade
transformou-se num imenso sono de meninos em calções, sobre a mesa, o punhal
com que ela numa noite inventada para a ocasião, espetou no peito do poeta, que
ontem, sabia onde habitava o velho poema, e hoje, percebe que esse velho, que
às vezes, vestido de marinheiro, pede esmola no musseque, deixou de pertencer
aos jardins floridos do sonho.
Bebiam-se shots de fumo
que apenas o cacimbo sabia onde se escondiam, depois do sexo, porque a cidade,
aos poucos, começava a desaparecer do espelho tricolor da madrugada; e depois
da chuva, o cheiro intenso da terra queimada. Levantava as mãos a Deus e
agradecia por mais um dia que tinha terminado, e ele, ainda, mesmo a muito
custo, se encontrava vivo e de boa saúde.
Depois, o velho poeta
morreu numa noite de orvalho, mas deixando de acreditar no desejo, sabia que as
margaridas que brincavam no jardim do sono, um dia, regressariam a mim. E hoje
guardo com amor a pequena sílaba que ele me deixou de recordação e em
testamento.
Depois, tínhamos de
inventar o sono. Enganávamos a noite construindo nas paredes do luar
pequeníssimas flores em papel, e mesmo assim, o puto trocava notas de cem
escudos por ninharias que hoje habitam a casa das abelhas em flor.
E sempre que ele cerrava
os olhos, via o imenso mar a entrar musseque adentro como o paquete, em
pequenos roncos, atravessou o tejo até ao cais de desembarque e desfaleceu sem
que ninguém o tenha, até hoje, ressuscitado.
Depois, morreste-me.
Depois, morri nas tuas
mãos.
E sempre que invento o
sono, vejo um musseque a entrar dentro do meu corpo como se fosse uma flecha envenenada,
como se fosse um poema em delírio.
Alijó, 3/07/2022
Francisco Luís Fontinha
quarta-feira, 8 de dezembro de 2021
Cidade das gaivotas amar
Fui à cidade em busca do
teu olhar,
Procurei na cidade, o
silêncio do teu olhar,
Sentei-me junto ao mar,
Na cidade,
Onde perdi os teus lábios
madrugada,
E hoje, habitam os teus
cabelos de vento amanhecer.
Venho da cidade,
Com medo de te perder,
Com medo da alvorada.
Fui à cidade,
Em busca de minha amada,
E na cidade, sentei-me,
No colo da manhã, antes
de acordar.
Estou na cidade,
E sinto o meu corpo a
arder,
Como uma fogueira
desvairada,
Dançando na madrugada,
Brincando no mar.
Venho da cidade,
Oiço as vagas contra os
rochedos nocturnos do desejo,
Que na tua boca,
Se desenha o beijo.
Estou na cidade,
Procuro nela a tua sombra
antes de acordar,
E uma gaivota, te
transporte para o mar,
Para o mar da cidade das
gaivotas amar!
Francisco Luís Fontinha
Alijó, 08/12/2021