domingo, 27 de fevereiro de 2022

Silêncio no teu olhar

 

Silêncio no teu olhar

Menina das flores desenhadas,

Saudades do mar

E das palavras abraçadas.

 

Menina do meu luar,

Descendo a calçada,

Menina dos beijos de beijar,

Enquanto dorme a madrugada.

 

Silêncio no teu olhar

No poema adormecido,

Silêncio de amar,

 

Amar o verso encantado.

Menina do poema perdido,

Perdido no meu corpo envenenado.

 

 

Alijó, 27/02/2022

Francisco Luís Fontinha

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Instantes

 

Somos instantes.

Sombras adormecidas,

Nas mãos do poema,

Somos cansaços,

Pinturas abstractas,

Somos liberdade,

Das palavras,

Nas palavras,

 

Somos nada.

Somos a noite,

Enquanto dormem os esqueletos de vidro,

Somos guerra,

Somos fome,

Somos instantes,

Pessoas sem nome,

Nesta vida sem sentido.

 

Somos abraços

Dos beijos que voam,

Somos luar,

Somos a fogueira,

Somos instantes,

Somos a pedra,

Somos o vinho…

Somos pedaços.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 26/02/2022

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

 

Se és o vento,

Leva-me.

Se és um abraço,

Abraça-me.

Se és um beijo,

Beija-me.

 

Se és um livro,

Deixa-me escrever em ti,

Desenhar os teus lábios

Na manhã quando acorda.

Se és a lua,

Semeia a luz no meu corpo cansado,

 

Quando chora.

Se és uma tela,

Deixa-me pintar em ti a Primavera,

Como fazem os pássaros,

Ou as flores,

Como fazem as palavras,

 

Se és uma lágrima,

Diz-me que o poema não morreu,

Diz-me que as palavras

São fertilizante para as tuas tristes noites;

Se és sol…

Não te canses de me iluminar.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 23/02/2022

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Nuvem granítica da saudade

 

Às vezes, o sol parece uma nuvem escura,

Fria,

Às vezes, o sol parece um sonho,

Um jardim florido.

Às vezes, as palavras parecem uma tempestade,

Um dia estupidamente feio.

Às vezes, o mar é uma ilha,

Outras,

Um corpo cansado,

Às vezes, o sol parece uma fogueira,

Ou um poema recheado de nadas.

Às vezes, eu sou o sol,

Outras,

Sou a nuvem granítica da saudade…

Às vezes, temos o sol pincelado de noite.

Às vezes, temos a noite pincelada de sol…

Às vezes, o sol parece uma nuvem escura,

Fria e cinzenta.

Às vezes, o sol é um pássaro,

Uma flor esquecida na avenida.

Às vezes, temos o sol,

Às vezes, o sol tem-nos a nós.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 21/02/2022

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Ausência

 

Ausento-me.

Enquanto o sono se despede de mim,

Enquanto esta fogueira me consome,

Enquanto o dia se derrete,

Enquanto a lua se deita,

Enquanto o medo me absorve.

 

Ausento-me.

Enquanto o silêncio habita neste corpo,

Enquanto estes ossos não se transformam em pó,

Ausento-me.

Enquanto o mar não entra pela janela,

Enquanto a morte não me vem buscar.

 

Ausento-me.

Enquanto ainda tenho beijos,

Enquanto ainda existem abraços,

Enquanto este relógio não pára de caminhar…

Ausento-te.

Enquanto este poema não morre.

 

Ausento-me.

Enquanto esta cidade não dorme,

Enquanto este rio não deixa de correr para o mar.

Ausento-me.

Ausento-me,

Enquanto escrevo e a tua mão não deixar de me tocar.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 19/02/2022

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Seis pedras

 

Seis pedras na mão,

Quando acorda a alvorada,

Seis poemas enganados,

Seis poemas adormecidos,

Seis pedras na mão,

Seis estrelas cansadas,

Seis livros de nada,

Nos seis dias sem descanso,

 

Seis vozes que escuto,

Nas primeiras seis horas do dia,

Seis rios entroncados,

Nas traseiras da montanha,

Seis pedras,

Seis navios,

Seis pedras na mão,

Às seis horas da tarde,

 

Seis destinos.

Seis pedras,

Seis meninos,

Nas seis flores,

Seis pedras,

Seis manhãs…

Seis palavras,

Nas seis mortes do poeta.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 17/02/2022

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Supérfluo amanhecer

 

Supérfluo amanhecer

Quando as palavras

Avançam contra o peito do homem,

Quando as flores se esquecem de envelhecer,

Quando o homem deixa de ser homem,

Quando uma criança faminta,

Se ergue entre as paredes da insónia.

 

Supérfluo amanhecer

Quando as palavras

Avançam contra o peito do homem,

O mar vacila na escuridão,

Quando o homem deixa de ser homem,

Quando as palavras em combustão,

São balas para a espingarda da saudade.

 

Supérfluo amanhecer

Quando as palavras

Avançam contra o peito do homem,

Quando o homem mata o homem, quando o homem é palavra envenenada

Nos poemas de morrer;

Supérfluo amanhecer

Quando o homem dá conta que a noite é uma enxada.

 

 

 

Alijó, 16/02/2022

Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Flores de Inverno

 

O último suspiro que paira no rosto de uma criança,

A última fotografia que a noite absorve,

O último silêncio dos peixes em cardume,

Nas últimas palavras da enxada do sono.

O último desejo da tempestade,

Quando desce sobre a aldeia o veneno,

O último poema da saudade,

Que aprisiona todas as palavras do inferno.

A última pedra onde se senta,

Em frente à última paisagem pincelada de branco,

O último adeus,

Do penúltimo cigarro.

A última pedra arremessada sobre a escuridão,

Quando todos os pássaros festejam,

Quando todos os pássaros dançam…

Quando todos os homens e mulheres… morrem.

A última oração.

A última tarde de Inverno,

Quando as flores choram,

E a chuva se despede do sorriso de uma criança.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 15/02/2022

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

 

Quando te apetece desistir dos teus sonhos e, a pessoa que te ama te diz: não desistas, eu estou aqui. Isso é, dia de S. Valentim.

Quando acordas e percebes que tens uma tempestade sobre ti e, a pessoa que te ama desenha um sorriso no teu rosto, isso é, dia de S. Valentim.

Quando a pessoa que te ama abdica de uma ida a um bar, jantar fora ou de um fim-de-semana porque tens de ficar fechado no escritório à volta de equações, isso é, dia de S. Valentim.

Dia de S. Valentim é todos os dias, todas as horas, minutos e segundos.

 

Ao amor,

 

 

Saboreio-te entre as nuvens manhãs

Como se fosses o fruto poético da alvorada,

A canção que desce a ribeira,

A palavra escrita no teu olhar.

Saboreio-te entre as nuvens manhãs

Como se fosses a jangada invisível dos sonhos,

Quando acorda a noite e,

Temos dentro de nós a saudade.

Saboreio-te entre a nuvens manhãs

Como se fosses o poema quando nasce,

Grita e,

Chora.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 14/02/2022

domingo, 13 de fevereiro de 2022

Poema envenenado

 

Não sei porque chove

Neste poema envenenado.

Não sei porque chove

Nestas palavras sem nome.

Não sei porque chove

Neste corpo cansado,

Cansado da fome.

 

Não sei porque chove

Nos teus lábios de amanhecer.

Não sei porque chove

Na tua boca de luar.

Não sei porque chove

Neste corpo de morrer,

De morrer junto ao mar.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 13/02/2022

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Máquina de escrever

 

Na máquina de escrever

Escrevo o teu nome

E desenho os teus lábios de cereja,

Pinto a tua boca

Com pinceis de desejo,

Escrevo o teu nome,

Desenho o teu beijo.

Na máquina de escrever,

Agradeço por pertenceres à minha sombra,

Quando ainda ontem,

Eu mergulhava na tela luar.

Na máquina de escrever,

 

Eu, sou o poema,

Sou a geada suspensa na madrugada,

Sou o verbo amar,

Quando a noite

Não tem medo a nada.

Na máquina de escrever,

Sou o poeta,

Ou outro gajo qualquer,

Sem identidade,

Sem nome,

Que caminha na tua mão,

Feliz por ser.

 

 

Feliz por ter,

Ter uma máquina de escrever.

Na máquina de escrever,

Dentro do velhinho teclado,

Há uma gota de amor

Dançando na insónia.

Na máquina de escrever,

Onde me sento e deito,

Como uma pedra selvagem…

Neste corpo em viagem,

Neste corpo que chora no teu peito.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 11/02/2022

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

 

Avança mar adentro

Vestido de Dragão,

Não o mereço,

A tempestade e o vento,

Não o mereço,

Cada pedacinho do teu coração,

Cada momento.

Avança mar adentro

Vestido de gaivota,

Não o mereço,

Palavras e tempo,

Não o mereço,

Tantos círculos à minha volta,

Tantos círculos em lamento.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 09/02/2022

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

As três sílabas do sono

 

São estas pedras,

Onde me sento e te suplico,

As três sílabas do sono;

O medo,

A saudade,

A solidão.

 

São estas pedras,

O silêncio que alimenta a noite,

A escuridão das estrelas,

Quando se ergue o beijo,

Quando se deita a manhã…

Quando morre um relógio de pulso.

 

São estas pedras,

O corpo que brinca na montanha,

A criança que corre,

A criança que chora;

São estas pedras,

As pedras sem hora.

 

 

Alijó, 08/02/2022

Francisco Luís Fontinha

domingo, 6 de fevereiro de 2022

O prometido beijo

 

Voávamos entre a sombra do desejo e o beijo adormecido. Tínhamos dentro do corpo o silêncio que a noite depositou junto à praia das areias brancas. Ouvíamos o uivo dos lobos que regressavam da montanha, olhavam-nos e sentavam-se junto a nós.

Pegava num pequeno livro de poesia e lia-lhes poemas dispersos, diga-se, apenas os lobos a percebiam. Puxava de um cigarro embrulhado em solidão e, permitindo aos olhos alguma lubrificação, pequenas lágrimas de incenso se despregavam do rosto e acabavam por morrer no pavimento íngreme da eira.

Estava sol. Dentro dela, sem o saber, crescia um pedacinho de ninguém, uma coisa de milímetros, como se fosse apenas mais um poema. Havia gaivotas à nossa volta, num dos retractos, aparecia uma nuvem de pura lã virgem, que em pequeníssimos círculos, se dirigia para o mar. Talvez depois de acordar, esse minúsculo ser fosse apenas um fio de nylon esquecido num qualquer sonho, de uma qualquer manhã, sem remetente.

Desciam os pássaros o musseque. Uma Bedford amarela, puxada por um pequeno cordel, inventava ruelas e caminhos térreos, logo que depois, aparecia o velho Alberto e, nunca dando o ar da sua graça, lamentava-se da poeira causada pela mesma. O sonho, condutor da dita Bedford amarela, nunca se cansava do árduo trabalho, e de vez em quando, num pequeno caderninho, apontava cada silêncio que lhe aparecesse pelo caminho.

Eram chuvas sem medida.

Chegava a casa e, sobre um pedaço de ferro e zinco, um menino esperava-o; e todos os dias, ao final do dia, o menino recebia o prometido beijo, diga-se que, nunca era igual; o de ontem não é igual ao de hoje e, o de hoje jamais será igual ao de amanhã. Há quem lhe chame de amor, mas o menino, chamava aos beijos de: pedacinhos de insónia, camuflada pelo perfume das acácias.

Pela manhã, erguiam-se todos os pássaros e acordavam todas as flores, dos pequenos charcos que restavam da tempestade anterior, poucos ou nenhuns já existiam; quase todos eles, mortos.

Voávamos entre a sombra do desejo e o beijo adormecido e, acreditávamos que o dia seguinte, aquele que ainda não existia, certamente ia ser melhor do dia que estava prestes a terminar. E assim, aprendi a enganar os dias, e ainda hoje o faço, até que um punhado de flores tombem sobre o meu corpo e, uma gaivota voe em direcção ao mar.

Eis o teu retracto.

Eis a tua morada.

Porque eram chuvas sem medida.

 

 

 

Alijó, 06/02/2022

Francisco Luís Fontinha

As tristes palavras

 

As palavras são abraços

Ao corpo do poema amar,

São cansaços,

São beijos de beijar.

 

São lágrimas de chorar,

São silêncios suspensos na alvorada,

As palavras são sorrisos de encantar,

São desejos de nada.

 

As palavras são alegria,

São tristeza,

As palavras são melodia,

 

Na manhã acordada.

As palavras são abraços de subtileza,

São o destino, são tudo e não são nada.

 

 

Alijó, 06/02/2022

Francisco Luís Fontinha

sábado, 5 de fevereiro de 2022

Pedaço de mundo submerso

 

Quando o corpo se deita na tela, uma voz em pequenos murmúrios e gemidos abraça-se às pinceladas manhãs de Primavera. A tinta, as tintas, o pincel, todos são o coração ensonado da imagem sombreada das lâminas do desejo. A fotografia ergue-se como se erguem todas as crianças quando ouvem a voz da mãe; o filho perfeito, esse espaço entre a noite e o dia, não existe. As cores são a saudade, quando a mão do artista acaricia esse corpo de luz e sombra, quando o artista os olha

E nada como um pequeno beijo junto ao mar.

Todos os barcos, todas as cores, dançam agora sobre a tela inanimada, quase a desfalecer; a morte ocorre quando o artista dá por concluída a sua obra; mas será que a obra fica assim, tão simplesmente, concluída? A obra é como um filho, só fica concluído quando morrer e, transforma-se em pó.

As mãos, alicerçam-se aos lábios da tela, o cavalete espreita pela janela e percebe que a tempestade se aproxima, que os barcos estão a regressar rapidamente a terra, neste caso, à tela. O artista, chora. O corpo, suspenso na tela, vacila e, percebe-se que existem pequeníssimas gotículas de suor; a pele absorve as cores primárias, cerras os olhos e liberta um uivo de silêncio.

Assim, a tela entre pequenos gemidos e outros tantos sons inaudíveis, encosta-se às mãos do artista, rodopia em sentido anti-horário e, desce até às profundezas do abraço. Alguém me sabe dizer o que fazem as mãos do artista quando a obra termina? Nada. São os olhos da arte.

Sentem-se as fugazes candeias, quando dentro do atelier uma parcela de luar ilumina o corpo terminado, pronto a ser vendido. O artista constrói corpos para venda e, quem comprar os corpos construídos pelo artista, através das mãos, olha-os. O submundo das profundezas mais esguias, carrega no peito o cansaço do dia, carrega nas mãos, os olhos do amanhecer, quando ainda todos dormem, mesmo os corpos mais preguiçosos deitados na tela.

A tela é um monstro que se alimenta do corpo, pequenas cores misturadas numa tarde de Inverno e, sabendo que todos os corpos são desprovidos de lábios, aqui podemos dizer que o beijo é proibido. O sagrado desejo, quando a mão, um dos olhos da tela, desliza até encontrar as coxas envenenadas numa tarde de silêncio, assim, percebe-se que os dias, que as noites, que tudo, que nada, fazem sentido nesta tela imaginária que é a vida.

Se a vida são cores em movimento numa tela nua, branca, suspensa num cavalete, o exercito de pinceis e espátulas são o criador Deus quando acordou ao terceiro dia. Os mandarins da insónia poisam sobre a minha sombra desejada por uma sombra de medo, ao fundo, lá longe, um pequeno cardume de peixes em papel colorido, aproximam-se e, todos, devoram-me, restando depois, uma tela nua e vazia.

Como sempre, existe dentro de nós uma tela nua, vazia, recheada de medo. E este pedaço de mundo submerso, alimenta-se das palavras que o poeta vomita sobre os corpos deitados na tela; ninguém percebe o desejo do artista, quando com um punhado de pinceis e algumas espátulas, transforma o branco em corpos, com asas, que voam em direcção ao mar, e o mar nunca será um filho de Deus.

As mais belas canções de uma infância entre lápis de cor e bolas de plasticina, e depois do lanche, um papagaio colorido mergulhava no cacimbo solidão de mais uma tarde junto às mangueiras.

E este pedaço de mundo submerso, ergue-se entre os rochedos e os corpos pincelados na tela.

 

 

 

Alijó, 05/02/2022

Francisco Luís Fontinha

Lágrimas do mar

 

Voa…

Liberta-te das palavras

Enquanto dorme o luar.

Voa…

Desenha a tua sombra

Nas lágrimas do mar.

Voa…

Do rio à montanha,

Enquanto a montanha não sabe chorar.

E se queres voar,

Voa…

Voa… sem medo de amar.

 

 

Alijó, 05/02/2022

Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Árvore feiticeira

 

Dentro de ti, a silenciada espada do amanhecer, os solstícios do desejo, quando acorda o luar e, sem o perceberes, lança-te às estonteantes palavras que semeio na alvorada. Uma das portas de entrada, aquela em que é visível a madrugada, voa sobre o infinito céu um pedacinho de nada, do outro lado do quintal, nas traseiras junto ao muro, habita o poço desprovido de luz, apenas mais um buraco, como tantos outros; negro.

O poço negro acorda. Ergue-se e, depois da sua higiene diária, toma o pequeno-almoço nas sombras da tela pintada na noite anterior. Do pincelado negro, observa-se na tela um pedacinho de saudade, não muita, mas percebe-se que está lá; assim seja, como todos os poemas excluídos do grande livro, como todas as abelhas, extintas na neblina.

Dentro de ti, as paisagens imaginadas numa noite sem sono, dentro de ti, todas as alvoradas que estão para nascer, que vão nascer, como se fossem mais um filho, como se fossem mais uma desculpa para adormecer.

E, no silêncio desejo, acorda o abraço. O ingreme corpo, que te pertence, saltitando entre a pilha de livros, junto à janela, e a árvore feiticeira, aquela onde brincam, durante a noite, os teus gemidos.

Desce sobre nós o infinito e, de régua e esquadro, o homem de bata branca traça pequenos triângulos, rectângulos e círculos de luz.

Um dia, um dia percebi que tinha sobre mim um círculo com olhos verdes; porquê verdes? Porque sim, apenas.

Era um calmeirão de um círculo, trazia na algibeira uma pequena caixa de fósforos e um cinzeiro, depois, muito mais tarde, percebi que ele era eu; hoje.

Vivíamos junto ao aeroporto. Logo que abri os olhos, depois de estar em casa, habituei-me a olhar os pássaros que logo em seguida poisavam numa pista inventada pelo sono: porque choras!

Dentro de ti, as pequenas parcelas sombreadas de um velho espantalho, sentado no meio do trigo e, quando vinham os pássaros, estes mesmos homens de trapos, vacilavam; não percebiam se deveriam disparar a espingarda do sono, ou correr em direcção a eles. Quase sempre, ou sempre, desistiam de viver.

Como desistem os gemidos que habitam na árvore feiticeira.

 

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 04/02/2022

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

O menino dos calções

 

Uma sílaba de silêncio desce a calçada, do outro lado da rua, em frente ao mar, dorme a saudade abraçada aos peixes inventados por um miúdo, apenas retractei os descosidos calções, porque quanto à restante vestimenta, nada mais a acrescentar, talvez uns sapatos rotos ou uma camisa descolorida, que para quem como eu, não sabe as cores, é indiferente.

Quando eu tinha a idade deste miúdo, construí um pássaro em cartão prensado. Passei três dias e três noites debaixo de uma mangueira, árduo trabalho para uma criança da minha idade e, depois de pronto, libertei-o; ao contrário de Ícaro, a minha obra de arte nem sequer conseguiu atravessar o musseque, despenhando-se junto a um pequeno charco de saudade. Mais tarde, percebi que precisava de aulas de Física, Matemática e Aerodinâmica.

Hoje, passo os dias a desenhar pássaros num pequeno caderno adquirido em Paris, no Louvre. Os pássaros são poemas envenenados pela tempestade, são pequenos silêncios na madrugada, mesmo assim, sabendo que após os ter desenhado eles levantam-se e vão para muito longe, é um dos meus prazeres; dar vida a rabiscos.

Deitava-me sobre a terra húmida. Olhava as estrelas e não percebia que o Universo é infinito, ou talvez não o seja, ou talvez quase finito, mas sabia que os pássaros que hoje desenho e as estrelas que olhava em menino, dormiam juntos.

Da terra, aos poucos, começaram a emergir pequenas bolas de fogo. Os meus pássaros, os primeiros que desenhei, começaram a voar em direcção ao mar. Fui ao galinheiro e libertei todas as pombas e galinhas, acabando por salvá-los da fogueira enviada por Deus: os pássaros, esses, arderam um pouco mais tarde. Cinzas que ainda hoje brincam nas ruas de uma cidade morta, desejosa por que acorde a madrugada.

Um dia acordará a madrugada e os meus pássaros serão livres como as flores que a minha mãe tinha no jardim. Como todos nós, deveríamos ser livres.

Ao pássaro que acabei de desenhar, vou apelidá-lo de “menino dos calções”.

 

 

 

Alijó, 03/02/2022

Francisco Luís Fontinha

Sombras de chorar

 

São cinzas,

São lágrimas,

São tristeza,

São os olhos do mar.

São palavra,

São a revolta,

São beleza,

São os poemas de amar.

 

São distância,

São cidade,

São a saudade,

São as canções de embalar.

São equação,

São o que são,

São,

São sorrisos luar.

 

São cinzas,

São lágrimas,

São tristeza,

São as telas de pintar.

São a música,

São a letra,

São a tempestade,

São as palavras a caminhar.

 

São a falsidade.

São promessas da montanha,

São vento,

São lâmina de barbear.

São azeitonas,

Uvas insignificantes,

São laranjas,

São sombras de chorar.

 

 

 

Alijó, 03/02/2022

Francisco Luís Fontinha