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sábado, 5 de fevereiro de 2022

Pedaço de mundo submerso

 

Quando o corpo se deita na tela, uma voz em pequenos murmúrios e gemidos abraça-se às pinceladas manhãs de Primavera. A tinta, as tintas, o pincel, todos são o coração ensonado da imagem sombreada das lâminas do desejo. A fotografia ergue-se como se erguem todas as crianças quando ouvem a voz da mãe; o filho perfeito, esse espaço entre a noite e o dia, não existe. As cores são a saudade, quando a mão do artista acaricia esse corpo de luz e sombra, quando o artista os olha

E nada como um pequeno beijo junto ao mar.

Todos os barcos, todas as cores, dançam agora sobre a tela inanimada, quase a desfalecer; a morte ocorre quando o artista dá por concluída a sua obra; mas será que a obra fica assim, tão simplesmente, concluída? A obra é como um filho, só fica concluído quando morrer e, transforma-se em pó.

As mãos, alicerçam-se aos lábios da tela, o cavalete espreita pela janela e percebe que a tempestade se aproxima, que os barcos estão a regressar rapidamente a terra, neste caso, à tela. O artista, chora. O corpo, suspenso na tela, vacila e, percebe-se que existem pequeníssimas gotículas de suor; a pele absorve as cores primárias, cerras os olhos e liberta um uivo de silêncio.

Assim, a tela entre pequenos gemidos e outros tantos sons inaudíveis, encosta-se às mãos do artista, rodopia em sentido anti-horário e, desce até às profundezas do abraço. Alguém me sabe dizer o que fazem as mãos do artista quando a obra termina? Nada. São os olhos da arte.

Sentem-se as fugazes candeias, quando dentro do atelier uma parcela de luar ilumina o corpo terminado, pronto a ser vendido. O artista constrói corpos para venda e, quem comprar os corpos construídos pelo artista, através das mãos, olha-os. O submundo das profundezas mais esguias, carrega no peito o cansaço do dia, carrega nas mãos, os olhos do amanhecer, quando ainda todos dormem, mesmo os corpos mais preguiçosos deitados na tela.

A tela é um monstro que se alimenta do corpo, pequenas cores misturadas numa tarde de Inverno e, sabendo que todos os corpos são desprovidos de lábios, aqui podemos dizer que o beijo é proibido. O sagrado desejo, quando a mão, um dos olhos da tela, desliza até encontrar as coxas envenenadas numa tarde de silêncio, assim, percebe-se que os dias, que as noites, que tudo, que nada, fazem sentido nesta tela imaginária que é a vida.

Se a vida são cores em movimento numa tela nua, branca, suspensa num cavalete, o exercito de pinceis e espátulas são o criador Deus quando acordou ao terceiro dia. Os mandarins da insónia poisam sobre a minha sombra desejada por uma sombra de medo, ao fundo, lá longe, um pequeno cardume de peixes em papel colorido, aproximam-se e, todos, devoram-me, restando depois, uma tela nua e vazia.

Como sempre, existe dentro de nós uma tela nua, vazia, recheada de medo. E este pedaço de mundo submerso, alimenta-se das palavras que o poeta vomita sobre os corpos deitados na tela; ninguém percebe o desejo do artista, quando com um punhado de pinceis e algumas espátulas, transforma o branco em corpos, com asas, que voam em direcção ao mar, e o mar nunca será um filho de Deus.

As mais belas canções de uma infância entre lápis de cor e bolas de plasticina, e depois do lanche, um papagaio colorido mergulhava no cacimbo solidão de mais uma tarde junto às mangueiras.

E este pedaço de mundo submerso, ergue-se entre os rochedos e os corpos pincelados na tela.

 

 

 

Alijó, 05/02/2022

Francisco Luís Fontinha