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sábado, 14 de janeiro de 2023

O trezentos milhões

 Descobri agora que sou o espermatozóide número trezentos milhões, ao meu lado, já algo cansado, tinha o espermatozóide número duzentos milhões; e quase ao mesmo tempo, quando chegados ao óvulo, pimba.

Éramos dois à entrada, depois, passado algum tempo, e devido a uma qualquer avaria na linha de montagem (parece que o engenheiro responsável tinha saído e o operador da DEX34CD, máquina de grandiosa importância, tinha ido cagar às traseiras), ficamos apenas um.

Isto tudo para o autor demonstrar que dentro dele vivem dois gajos; o mesmo corpo, os mesmos lábios, o mesmo pénis e de feitios diferentes.

O meu pai, homem de muita sorte, porque tendo dois rapazes habitando ambos apenas um corpo, só teria de fazer uma única despesa. Só teria no futuro de comprar um par de calças em vez de dois, um par de sapatos em vez de dois e assim por diante…

Crescemos, um gostava do mar, o outro, pelo contrário, não gostava do mar. Um gostava do dia, quanto ao outro, odiava o dia e amava a noite, enquanto o outro que amava o dia, e de vez em quando, amava a noite, fugiu um dia do dia e abraçou-se também ele à noite.

Enquanto um fode o outro olha e enquanto o outro olha o outro fode.

E assim temos vivido e assim vamos morrer; um a foder o outro.

 

 

 

 

 

Alijó, 14/01/2023

Francisco Luís Fontinha

O paraíso – Continuação

 Adão olha para Deus, acaricia o cabelo de Eva e responde à questão colocada por Deus; e se para Eva tinha sido maravilhoso, para Adão

Um poema mergulhado no sono, onde as palavras são facas afiadas na boca do luar, uma mão que desce da alvorada e poisa nas margens do rio.

Deus, sorriu.

Convém dizer que Deus já tinha criado a nespereira, a pedra, o homem e a mulher e a vagina, e claro, a maquineta de fotocópias e os cigarros.

Faltava criar o mar, os peixes, todas as restantes árvores e arbustos, os pássaros, a literatura e a poesia.

Adão em silêncio, pega na mão de Eva e leva-a até ao rio (o autor alerta que os rios já tinham sido criados por Deus), senta-se sobre a pedra onde tinha passado a noite anterior a fotocopiar a vagina e num pequeno sussurro diz a Eva,

Sabes meu amor, agora sei o significado do desejo e do prazer e da paixão e do amor.

Eva olha-o e responde-lhe que também ela, também ela tinha descoberto o desejo e a alegria de ser desejada; dois corpos que se desejam e se perdem na neblina de um olhar.

Enquanto Deus olhava pôr-do-sol desenhado nos olhos de Eva, dá-se conta que ambos tinha acabado de descobrir a poesia.

A poesia das pequenas gotículas que crescem nos corpos quando em desejo, estes, se transforma num só e o corpo deixa de ser corpo, o corpo veste-se de poema, grita, geme e ama.

 

 

 

Alijó, 14/01/2023

Francisco Luís Fontinha

(ficção)

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

O paraíso

 Uma certa noite, Deus percebeu que não tinha mais nada para fazer, meteu as mãos na algibeira e pensou,

Que faço agora?

Pensou, pensou, pensou…

E de tanto pensar, resolveu criar o homem (Adão).

Não contente com a sua criação, começou a caminhar em pequenos círculos às voltas de uma fogueira e pensou…

Isto não me agrada nada, mesmo nada.

Até que teve a brilhante ideia de criar a mulher (Eva), e depois a vagina.

Adão olha a mulher, olha a vagina, ficou um pouco acabrunhado e em cortinados de timidez porque era a primeira vez que via algo de tão belo, e pergunta a Deus,

Meu Deus, elas são tão belas.

Deus olho-o e responde-lhe

Sim, sim, elas são muito belas, mas agora tens de trabalhar, vês aquela pedra, ao lado da nespereira que mesmo à pouco criei?

Sim, meu Deus, vejo.

Vais até lá, sentas-te sobre a pedra e com a maquineta das fotocópias vais ficar a noite toda a fotocopiar a mulher (Eva) e a vagina.

Adão dirigiu-se até ao pedregulho, sentou-se, puxou de um cigarro, ligou à corrente eléctrica a maquineta das fotocópias e vai nisso,

Toca a fotocopiar vaginas.

Concluindo ao romper da manhã que todas as vaginas eram iguais, e que a única diferença estava nas vaginas cerebrais, estas sim, diferentes de corpo para corpo, subiu o talude e deitou-se junto a Eva.

(é sempre bom relembrar que o autor deste texto adora a mulher, a vagina, mas entre as duas vaginas, às vezes, a vagina cerebral é aquela que nos dá mais prazer)

E Deus fez o homem e a mulher com o intuito de estes procriarem e que a espécie humana continuasse por muitos milhões de anos, mas Deus esqueceu-se de explicar ao nosso querido Adão e à nossa querida Eva o que era o prazer, e assim, ambos, aos poucos, enquanto a noite se masturbava nos lábios da lua, foram descobrindo o significado do prazer.

Adão, olha para as mãos, e com elas começa a acariciar todo o corpo de Eva, e esta em pedacinhos de gemido, de olhos cerrados, contorcia-se parecendo um arbusto quando o vento incide e em pequenos círculos, este, inicia uma dança geométrica e infinita como

se houvesse uma pauta, pauta essa onde constavam todas as notas do prazer.

Depois cobriu-a de beijos, beijando cada pedacinho do corpo de Eva.

Adão sentia-se nas nuvens,

Deus já dormia, acordou com todos aqueles gemidos, sentou-se na cama e tapou os ouvidos com as mãos,

Adão sorria-lhe, Eva desenhava um pequeno sorriso; o resultado da resolução da equação do prazer; o primeiro orgasmo.

(quer o autor salientar que sendo a mulher e a vagina a maior criação de Deus, porque todo o resto que criou é merda, o autor considera que a vagina cerebral é sem dúvida a maior criação de Deus)

Quem nunca sentiu prazer enquanto lê um texto, um poema ou enquanto olha para uma qualquer obra de arte?

A esse prazer todo, Deus todo-Poderoso, criador do céu e da terra, chamou-lhe de orgasmo cultural.

Pela manhã, Deus acorda, levanta-se da cama e quando sai para a rua e acende um cigarro, vê o Adão e a Eva, deitados no chão, abraçados, acorda-os e pergunta-lhes,

Então, meus filhos?

Eva olha-o e responde-lhe,

Maravilhoso, meu Deus. Maravilhoso.

 

(não acreditando o autor em Deus, e respeitando o autor todos os credos e fés, e respeitando muito o autor a mulher e tudo  oque ela representa, pede o autor desculpa a todos aqueles que possam sentir-se ofendidos; não é o intuito deste texto de ficção ofender nada nem ninguém)

 

 

 

 

 

Alijó, 13/01/2023

Francisco Luís Fontinha

(ficção)

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

O assassino de telas

 

Conheci o Alfredo numa noite de copos e charros, conversávamos de literatura e poesia, e logo que o olhei percebi que além de estar todo vestido de negro com uma estrela branca no peito, era tímido.

No final da noite levei-o para casa, acomodei-o e dei-lhe comida, e quando o questionava sobre este ou aquele assunto, o Alfredo apenas me respondia que sim ou que não, e confesso que me é muito difícil conversar com alguém que quando questionado apenas responde, sim ou não.

Às vezes, acordava maldisposto, muito triste, mas sempre pensei que se devia ao facto de ele estar ausente da família e daqueles que amava.

Nunca percebi a tristeza do Alfredo.

Hoje, enquanto assassino telas em branco com os riscos de merda que lá coloco, o Alfredo olha-me como se me estivesse a dizer…

Oh meu rapaz, deixa-te de pincelares e assassinares telas porque não tens jeito nenhum para isso,

E quando olho as telas assassinadas por mim, percebo que o Alfredo tem toda a razão.

O Alfredo é um gatinho, é invisível e todas as noites me visita enquanto eu assassino telas e folhas de desenho.

Coitado do Alfredo; ter que conviver e coabitar com um assassino de telas e de folhas de desenho.

 

 

Alijó, 12/01/2023

Francisco Luís Fontinha

(ficção)

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Um poema de merda

 (Os teus poemas são uma merda, meu caro Francisco. São uma merda os teus poemas, são uma merda os teus textos, os teus desenhos; tu és uma merda)

 

Todas as manhãs um barco de insónia descia a Calçada da Ajuda, no porão, carregado de ossos e outras bugigangas, um pequenote saltitava de feliz e contente; às vezes, as crianças são felizes e sorridentes, mesmo calçando e vestindo o espelho da pobreza.

E ser pobre não é defeito. Este pequenote, carregando uns calções e nada mais de que isso, brincava em cima dos três caixotes que sobejaram de uma longa viagem, viagem essa que ainda hoje não chegou ao seu destino.

(os teus poemas são uma merda, meu caro Francisco)

No exterior do barco, um jovem soldado, de pistola na mão e apontando-a à cabeça, dispara: contra as paredes amarelas do muro da vergonha, um amontoado de miolos deu cor e brilho, obra de arte que durante semanas, mesmo depois da dita parede ser raspada e pintada, tornava-se assim atracção mundial.

(a arte de uma cabeça estoirada e lançada contra uma tela invisível)

À noite, o pequenote saía do porão, saltava do barco e em corrida descia toda a Calçada como se fosse à procura de um qualquer Cacilheiro que tinha ficado da tarde que já se tinha finado, e andasse por ali… ou por aí.

(Os teus poemas são uma merda, meu caro Francisco. São uma merda os teus poemas, são uma merda os teus textos, os teus desenhos; tu és uma merda)

Chegando ao rio, sentava-se junto à água e ficava horas a contar sombras e luzes que chegavam da outra margem, olhava o Cristo Rei e a Ponte que foi Prof. Dr. Oliveira Salazar e depois baptizada de vinte e cinco de Abril e acreditava que um dia, um dia todo aquele rio e todos aqueles barcos seriam só dele.

Horas depois e já o pequenote estando farto da Ponte, do Cristo Rei e de tantos barcos, zarpava e estacionava os calções em Cais do Sodré onde adormecia num qualquer quarto com janela para o inferno e sem casa de banho privativa.

(Os teus poemas são uma merda, meu caro Francisco)

E numa tarde de neblina o pequenote desapareceu sem deixar uma carta ou um poema…

Talvez um poema de merda, meu caro Francisco.

Um poema de merda.

 

 

 

 

 

Alijó, 09/01/2023

Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

O plátano de Alijó

 Vivíamos em cima das árvores. Umas eram baixas e atarracadas, outras, altas e esguias, e um dia quando acordo, manhã cedo, percebi que estava sentado numa cadeira de praia, e esta por sua vez, estava poisada sobre a árvore grande (centenário plátano de Alijó) e sem ajuda, fosse ela qual fosse, era impossível eu descer. E se caminhasse em frente, morria.

Ainda pensei atirar-me do plátano abaixo e em pequenas brincadeiras com o centro de massa do meu corpo, voar até que me estatelasse sobre o paralelepípedo da calçada, talvez fosse a maneira mais fácil de descer, mas em vez disso, gritei pela minha mãe,

Mãe…

Mãe…

Sim filho,

Preciso de descer,

E ela deixando tudo o que estava a fazer, vai na minha direcção, aos poucos, sobe o plátano e quando já estava em cima dele, colocou-me a mão na face, agachou-se sobre mim, pegou-me no colo e trouxe-me até ao rés-do-chão; a estrada.

Foi um processo longo e moroso, mas valeu a pena.

Aprendi a andar, aprendi a comer, aprendi a falar e a dormir e a amar.

Às vezes, muitas vezes, apeteceu-me subir novamente para o plátano centenário ou para cima de outra árvore qualquer, mas graças a Deus, não o fiz;

(Não invoques o nome de Deus, sou herege).

Tenho algumas horas de voo, cruzei o Oceano, andei doze dias sobre o mar, sentei-me, numa qualquer noite, sobre a linha do equador, adormeço estava ainda no hemisfério Sul e quando acordo e me dou conta, bem… já estava no hemisfério Norte.

Chegando aqui, nos primeiros dias, perdi-me numa qualquer rua. Depois comecei a passear barcos pela mão desde a farmácia do hospital até à Gricha, e desta até à farmácia do hospital; subia a rua, descia a rua, às vezes sentava-me em frente à casa dos Noura, quando estava cansado, quando da varanda, a minha mãe

Luisinho, cuidado com os carros.

(olhava-a e percebia que ela estava triste, talvez mais triste de que eu, e hoje penso por que razão a minha mãe se preocupava com os carros em Alijó de 1971; ainda hoje se vêem mais barcos pelas ruas e lixo de que automóveis, mas já sabemos que as mães são muito protectoras com os filhos).

Seis meses depois, fui passear barcos para o bairro do Hospital, casa número quinze, rés-do-chão. Anos mais tarde, eu e os barcos, assentámos arraias na avenida vinte e cinco de Abril, e aí, comecei, muito lentamente, a subir às árvores.

Até que sem perceber, vejo-me em cima do plátano centenário de Alijó, e por lá andei alguns anos.

Anos. Anos demais.

 

 

 

Alijó, 04/01/2023

Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Têm poesia, meu amor… poesia das tuas mãos

 (a todas e a todos que me foderam a cabeça durante este ano, desejo-lhes um ano de merda, aos outros, um feliz ano e que todos os seus sonhos se concretizem. E aos que falam de mim, que lhes nasça um pinheirinho no cu)

 

 

 

Levas-me ao céu, sabias?

Olha, do céu venho eu e não trago nada, subi, desci escadas, sentei-me junto à casa dos milagres, puxei de um cigarro, peguei num livro de Gogol e nem almas mortas eu vi.

Não digas isso, levas-me mesmo ao céu, e desenhas em mim o silêncio da noite, e quando estou nos teus braços sinto-me uma gaivota sem terra para poisar, um pedacinho de sono à espera do luar, ou uma gigantesca onde de mar, nos teus braços sou um barco sem vontade de aportar, pássaro, nos teus braços sou foguetão em direcção a Marte, Saturno, nos teus braços sou as luas de Júpiter, e se o tempo parasse, ou mesmo se a Terra deixasse de girar, eu, a tua eterna amada, era a criança mias feliz do Universo.

Olha, do céu venho eu e não trago nada. Nada. Tudo está caro, e até o dinheiro está caro. Por um grama de desejo, dois quilogramas de prazer e mil beijos, paguei uma noite de silêncio e dois orgasmos.

Ouvíamos Pink Floyd, lá fora, uma cascata de lágrimas que se desprendiam das tristes nuvens, poisava docemente sobre o pavimento faminto do sonho, as tuas mãos silenciadas pelas minhas, percorriam-me o corpo como se eu fosse uma lâmina de sono em pequenos voos sobre as alegres planícies de centeio que propositadamente deixamos ficar na fotografia da noite passada, e sim, levas-me ao céu, ergues-me sobre a meticulosa mediatriz do desejo, e quando sinto as tuas mãos no meu ventre sei que a manhã não acordará mais, como nunca mais acordaram as tílias do nosso jardim.

Escreves no meu corpo o mais belo poema de amor, e quando as tuas mãos em desejo abraçam o meu desejo, sim, levas-me ao céu, levas-me ao céu sem que eu precise de coisas complicadas, as simples chegam-me, não preciso de mais nada; tenho tudo.

Quero ser a tua tela, a tela onde deixas as tuas cores e os teus sonhos, a tela onde sei que habitam sóis, estrelas da tarde e todos os mares da tranquilidade, quero ser a música que ouves, ou o livro que pegas com todo o carinho, que manuseias sem qualquer pressa, e olha… podes fazer de mim o teu livro, o teu sono, podes…

Subi, desci escadas, sentei-me junto à casa dos milagres, puxei de um cigarro, peguei num livro de Gogol e nem almas mortas eu vi, ao menos se eu tivesse visto uma, uma só alma. E é do céu que eu venho e nada trago, nem consegui conversar com Deus, mas também para que eu queria conversar com Deus… eu que quase não converso com ninguém, eu que não acredito em Deus, no diabo, nas almas de Gogol, eu que apenas sou uma palavra disfarçada de insónia, que quase não come, que quase não voa… como posso eu, eu, levar-te ao céu?

Mas levas-me, meu querido.

Daqui oiço o silêncio, olho pela janela e vejo um gajo com uma bilha de gás às costas, como se a Terra esteja quase a deixar de ser Terra e passar a ser…

As tas mãos, meu amor?

Que têm as minhas mãos, minha querida?

Sei lá… têm tanta coisa…

Têm palavras, têm cor, têm todas as madrugadas e têm poesia…

Poesia, meu amor.

Poesia?

Poesia das tuas mãos…

 

 

 

 

 

Alijó, 30/12/2022

Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Carta de um pastor (poeta) às suas quatro ovelhas

 Minhas queridas ovelhas,

 

Lanço ao fogo estas minhas pobres palavras com o sofrimento alicerçado ao peito, que estas, se transformem em cinza, e vós, minhas queridas, nunca saibam o que vos escrevo.

Ontem, pela noite adentro, quase às três horas da madrugada, peguei num pequeno livro, abri-o e no final da página li – o leão é o Rei da selva. (de mão trémula, senti o medo disfarçado de luz)

Puxei de um cigarro, e sentado numa cadeira de vime, de perna cruzada, e de janela aberta com fotografia para o quinteiro, ouvi a (estrelada) em conversa cavaqueira com a ovelha da minha vizinha, a (tulipa), e a minha vizinha, a Joaninha, ao telefone com o namorado ou com a namorada ou com o Presidente Associação de Musas Inspiradoras (AMI), o que falavam, não o sei, mas pelo ar de exaltação dela, tudo se resumia a fotografias tiradas junto ao rio.

(o rio, sem saber porque choravam as ovelhas, também ele, desatou a chorar)

E ao longe, a ponte abraçada à neblina que a manhã semeava na sombra dos braços do luar, começava a erguer-se o silêncio que regressava da caçada da noite anterior.

Pela aparência do silêncio,

Caça nenhuma.

A (estrelada), que uma certa tarde foi atingida com uma pedra na pata, pedra lançada pelo rapazote Serafim, um rapaz, comunicador e com estrutura de artista, e já farto de levar a (estrelada) para o pasto; pimba. Uma pedra certeira na pata e acabaram-se as tardes no pasto. Esperto, este artista, Serafim, poeta, fadista, barbeiro, agricultor e sedutor.

À noite, enquanto a minha vizinha se encontrava na escuridão com o namorado, ou com a namorada ou com o Presidente da (AMI), a ovelha (tulipa), saltava do terceiro esquerdo e num ápice, fazia-se passear na minha varanda em pequenas provocações para fazer crer à minha ovelha (estrelada) a boa forma física com que estava; coisas de ovelhas. Vaidosas.

Serafim desconhecia que no futuro iria ter um sobrinho poeta e pastor de quatro ovelhas; mas também ele desconhecia que o leão era o Rei da Selva, tão pouco desconhecia onde encontrar a selva, e apenas sabia apontar no mapa a sua localização. Um dia, descobriu a paixão.

E sabem, minhas queridas, dá sempre jeito um poeta ser pastor, pois assim, ou talvez não, ou talvez sim, oiço do AL Berto que “o mar entra pela janela e que o soldado falha o degrau do eléctrico que vai para a Ajuda, e não sabe se ele fode ou se ele ajuda”,

E da Ajuda,

Uma carta de amor para a Província.

 

Minhas queridas quatro ovelhas,

 

Espero que estejam bem, quanto a mim, vou andando, uns dias bem, outros menos bem, e outros…

O soldado dispara a bala na cabeça.

Dizem que foi por amor.

Ignora o silêncio, escreve luar na vidraça, e deita-se sobre a cama à espera que o sabor do uísque desapareça da boca e depois, após algumas horas de sono, sair em busca de engate.

A loucura dos pássaros. A (estrelada) desmaiou quando percebeu que eu era um favo de mel e que dormia junto à Torre de Belém e que era procurado por homens, homens em busca de sexo; eu, apressadamente, fugia. Em passo apressado, em corrida desmedida que apenas a (estrelada) consegui imitar, até que entrava num bar junto ao Museu dos Coches e uma amiga me acolhia na casa de banho. Depois, voltava novamente a vaguear pela cidade.

Sabes, minhas queridas…

Deixei há muito tempo de ter notícias do Serafim, e agora que o recordo, com ternura e com paixão, de sobrinho para tio, digo-vos que o meu tio artista ainda hoje me escreve cartas; e actualmente, apenas ele me escreve e um qualquer parvalhão que deixa comentários no meu blog, que provavelmente não percebe de poesia, o que é a paixão e a insónia e que teima que eu, o poeta e pastor de quatro ovelhas, o traí. O sonho tomou conta dele.

Os ciúmes das minhas ovelhas quando vêem a ovelha da minha vizinha (tulipa) em passeios nada apressados na minha varanda. E se a deixassem, acredito que voava.

Voava como eu voei sobre a cidade que acabava de acordar, e quando metia a mão na algibeira, um pedaço do mar salta e começava a descer a calçada.

A Ajuda – quanto ao eléctrico, já não me lembro, mas que “o soldado falha o degrau do eléctrico que vai para a Ajuda, e não sabe se ele fode ou se ele ajuda”, esse sim, nem fode nem ajuda.

Ontem, depois de uma sessão de poesia, e depois de muitos uísques e algumas radiografias de sono, entramos num bar, no Bairro Alto, sentamo-nos, pedimos uísque e, homens beijavam-se apaixonadamente. Puxei de um cigarro e resolvi, quando regressasse ao quarto escrever-vos; e cá estou eu, minhas queridas. Ausente numa Lisboa que sempre me pertenceu e que hoje é apenas um sonho, um comboio para Cais do Sodré e pouco mais…

O suor entranhava-se no corpo como o cacimbo de outras latitudes, e uma abelha começou a poisar no meu favo de mel.

Afinal, não é o leão o Rei da selva.

Os Reis, os Reis são os papagaios em papel que a minha mãe construía e que hoje guarda junto ao peito, para quando tiver saudades minhas, recordar-me.

O poeta, pastor de um rebanho de quatro ovelhas, hoje, escreve cartas aos olhos do mar.

Até breve, minhas queridas ovelhas!

 

 

 

 

 

Alijó, 30/11/2022

Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 29 de novembro de 2022

A paixão – segundo o poeta enforcado

 O tejo

 

Se Deus estivesse no meio de nós, nunca tínhamos feito amor naquele silêncio que abraçava a noite, junto ao Tejo.

Enquanto trocávamos carícias na ardósia da insónia, sentia as tuas mãos em pequenas brincadeiras no meu peito, mordias-me a orelha esquerda, como se eu fosse um pequeno poema em construção sobre a maré que cobria os nossos sexos; e a paixão incendiou-nos, que do teu corpo em gotículas de prazer, eu, eu ouvia o mar.

 

O circo

 

Tínhamos quinze anos e querias que eu fugisse contigo e transformar-me em trapezista. Como seria feliz hoje se fosse trapezista, em vez disso, preferi ser poeta; o enforcado.

 

Os barcos

 

Imagino-os deitados sobre mim na cama dos sonhos, pegam na minha mão e levam-me em grandes caminhadas pela cidade, junto ao mar.

Hoje, sou o comandante de todos estes barcos em cartão, todos estes barcos que habitam dentro do meu peito, e às vezes, durante a noite, oiço os apitos de todos os luares de Luanda.

Como é bom, ter a vossa mão, meus queridos!

 

 

 

 

Alijó, 29/11/2022

Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Conversa com Deus

 Nunca vi o mar.

Se eu pudesse, desenhava o mar nos teus olhos, se eu pudesse, escrevia o poema nos teus lábios quando nasce o Sol, depois, subia à montanha mais alta do planeta terra e conversava com Deus; se eu pudesse conversar com ele, não lhe diria nada, como nada digo com quem converso.

Mas reconheço que tenho uma certa inquietação e digamos que…

Um desejo?

Não, minha querida, não.

Mas se eu pudesse, perguntava-lhe onde estão todos os papagaios em papel que lancei, e hoje, brincam juntamente com ele, no céu.

Mas reconheço que tenho uma certa inquietação e digamos que…

Medo?

Não, minha querida, não,

Sabes, nunca tive medo.

Pela manhã pedíamos uísque, torradas e cigarros, depois, levantávamos voo sobre a cidade e só voltávamos quando sabíamos que todos os barcos que dormiam no Tejo já tinham zarpado em direcção ao terceiro esquerdo da rua nas floreiras adormecidas; subíamos as escadas, cambaleando no sono invisível da madrugada, abríamos a porta de entrada, com acesso a uma pequena divisão onde adormeciam livros, discos e sombras e fotografias, depois abríamos a janela e da rua chegavam a nós todos os nomes que tinham passado pelos corpos que às vezes deixávamos junto à esplanada, o Tejo, cansado da noite, deitava a cabeça nas minhas pernas, declamava-lhe um poema e ficávamos assim, invisíveis, até que a noite descia sobre nós – na algibeira, cinco cêntimos de euro.

As palavras que lançávamos contra a parede que dava acesso à varanda, e sempre que acreditávamos que tínhamos o Sol escondido no peito, depois de bateram contra a janela, acabavam por regressar a nós.

E se podíamos deitar fora todas as coisas possíveis e imaginárias, às palavras, nunca o conseguimos, até que um dia, eu e o mar, começamos a lançar da varanda, papeis escritos e rasurados, desenhos, riscos, diversa mobília e um par de calças; e não sabíamos que a paixão tinha tomado conta das nossas mãos, e uma noite, percebi que tinha a minha mão entrelaçada com a mão do mar.

Medo?

Não, minha querida, não,

Sabes, nunca tive medo.

Fiquei tão feliz, olhei-o e pela primeira vez, beijei o mar.

Um desejo? E o Tejo?

Não, minha querida, não.

A alvorada trazia a nós todas as canções que a noite semeava num qualquer bar, numa qualquer rua, junto ao rio. Do meu mar, aquele que nunca tive a oportunidade de olhar, escrever ou pintar, chegavam a mim todos os silêncios que um poeta medíocre como eu, poderia ter.

E mesmo assim, quando me faltavam as palavras, tocava-lhe nos seios, e já com as minhas mãos nas suas coxas poéticas que apenas a noite consegue descrever (eu nunca serei capaz de o fazer), deixava sobre a sua pele o mais belo poema de amor.

Acusaram de homem louco. Acusaram o poeta de medíocre, e hoje vende versos ao domicílio com a promoção de leve dois e pague um. E não é preciso adivinhar o resultado, quando ninguém consome poesia nos dias de hoje; a fome.

O desejo invadia-nos naquele apartamento e no terceiro esquerdo da rua nas floreiras adormecidas, eu e o mar, escrevíamos no pôr-do-sol as lágrimas das manhãs que teimavam em regressar sempre ao teu púbis, como se este, ao contrário das ruas e de todos os esconderijos da cidade, fosse o único lugar do planeta terra onde poderia encontrar Deus; e ele, nunca me quis ouvir.

Um desejo?

Não, minha querida, não.

E a paixão habita neles como habitam em mim os papagaios que fazem companhia a Deus, nos céus de Luanda.

 

 

 

 

 

Alijó, 28/11/2022

Francisco Luís Fontinha

(ficção)

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

As frestas do teu olhar

 As frestas do teu olhar deixavam entrar as finíssimas lâminas de luz que em viagem regressavam dos rochedos em flor,

Inventa-me, enquanto acredito nas feras amansadas das tristes noites de Primavera.

Deste veleiro em busca do vento, oiço as canções das tuas lágrimas, com que te escondes enquanto as flores do meu jardim, entre os parêntesis da manhã, correm para o mar.

E o mar ergue-se na alvorada, ele é pássaro, ele é nuvem, ele é a luz…

O corpo flutua nas tardes junto ao cais, a caneta que dá vida às palavras, separa-se do corpo, troce-se sobre a mesa, e esta cidade sufoca-me,

O cigarro morre,

Entre olhares, a rádio em ecos desvairados, os animais em círculos, caminham para o areal em sinfónica maldade da noite, quando a paixão mergulha nas mãos de um mendigo; as flores, meu amor, as flores que transportas nos teus olhos cinzentos e de mil e uma palavras, o barco morre, e termina o luar nas tuas mãos.

Este mar de insónia, morre-me,

E acredito que as palavras que deixo no teu diário, também vão morrer, de tédio.

Cruzas os braços, e também eu, de tédio, morrerei numa tarde de sono. Agora, vêm a mim a tua mão, pegas no meu olhar, e em pequenas fatias de paixão, voamos em direcção ao Sol.

Sou o sono, oiço-te.

E estamos vivos porque as cancelas da noite nos prendem ao calendário diurno das tardes em poesia, beijo-te e invisivelmente, sou a fera metálica das lareiras em chama, e ardem nos teus braços as flores cintilantes do olhar.

A tua voz, morre-me,

E morrem-te as minhas palavras em ti, como morrem todos os poemas que escrevo.

Voamos em direcção ao Sol, como voaram todas as abelhas das colmeias que habitavam junto ao rio. Depois, os sonhos mergulharam nos degraus que nos levavam até ao sótão.

E este barco dorme docemente nos teus seios, quando a minha boca inventa em ti as sonâmbulas lágrimas dos socalcos floridos; um barco, um barco de silêncio nas tuas coxas, meu amor.

E cai sobre ti a alvorada e as frestas do teu olhar.

 

 

 

 

Alijó, 25/11/2022

(Francisco)

(ficção)

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

As gaivotas do meu jardim

 Um dia, quando acordei, dei-me conta que tinham desenhado o mar no tecto da minha alcofa, e desde então, nunca mais esqueci o mar.

Tinha alguns meses, as melódicas equações do sono chegavam a mim através de um pequeno radio a pilhas, invenção da minha mãe, com o som muito baixinho, deliciava-me; qua maior felicidade podia ter um bebé, ouvir música e observar a imensidão do mar no tecto de uma alcofa.

(Francisco) quando a luz incendeia os meus lábios, e uma nuvem abraça-se ao teu cabelo encantado das noites sem dormir, todo o mar poisa sobre mim.

O mosqueteiro protegia-me dos insectos, e pelas pequeninas quadriculas chegam a mim os primeiros raios de luz, como se à minha volta existisse uma janela com vista para lado nenhum.

Às vezes, as gaivotas entravam pela janela e desenhavam voos rasantes no tecto da alcofa e eu comecei a acreditar que um dia, um dia também faço como elas. E ainda recordo o dia em que zarpei e fiz o meu primeiro voo sobre as periferias de Luanda; foi lindo, pai. Lindo.

Depois queria ser comandante de um petroleiro, ou paquete, e durante a tarde, enquanto desenhava e recortava vestidos de chita para o meu maior amigo, um parvalhão de um boneco, pequenos petroleiros de insónia desenhavam pequenos quadrados no pavimento do corredor, depois ouvia os apitos em despedida, e percebia que um dia, um dia também faço como elas. A tarde despedia-se de nós, poisávamos todos os apetrechos da costura, lanchava e começa a desenhar o sono na janela que dava para o jardim, e enquanto a minha mãe confeccionava o jantar, novamente zarpava e sobre a cidade, deliciava-me com o silêncio dos mabecos.

O sono tomava conta de mim.

As palavras absorviam-me, e nas paredes da sala comecei a desenhar figuras estranhas, letras e números. E um dia vou ser como elas.

(Francisco) como são lindas as flores dos teus olhos!

(Francisco) como são lindos os teus lábios e os teus olhos!

Perdi o interesse pelo mar, comecei a apaixonar-me por barcos, barcos grandes, que o meu pai, todos os Domingos, me leva a ver; e enquanto os olhava, sonhava que um dia, um dia seria como elas. (Francisco) como são lindas as tuas mãos!

(Francisco) e dos teus cabelos as lágrimas do silêncio poisam no meu peito!

E quando regressava a casa, sentia-me o comandante de todos aqueles navios; um pequeno círculo com olhos verdes brincava na minha boca, e sabia que um dia, um dia, mãe,

(Francisco) as tuas mãos são lindas, meu amor.

Um dia, mãe, um dia eu e tu vamos voar sobre as gargalhadas desta linda cidade e esta cidade será a nossa eterna sepultura.

Queria ser como elas. Queria voar sob as estrelas que durante a noite desciam do Céu e deitavam-se junto a mim, pegava-lhes na mão e adormecia até que acordava e dava-me conta que estava junto ao mar, pertinho do tecto da alcofa, sentado sobre o triciclo que em sonâmbulos soluços ia percorrendo todo o quintal até que quando me aproximava do portão de entrada, o homem que puxava os machimbombos pelas ruas da cidade, regressava, e com um beijo, fazia-me acreditar que todo aquele silêncio se devia aos meus pequenos voos que durante a tarde fazia sobre as sanzalas envenenadas de pequenos charcos de água. O odor a terra queimada abraçava as minhas mãos…

(Francisco) o desejo de quando os olhos são as estrelas de uma tarde de Domingo.

Um dia, um dia serei como elas e fartei-me do mar que tinha desenhado no tecto da alcofa, um dia serei como elas e fartei-me do pequeno radio a pilhas, um dia serei como elas e fartei-me dos barcos e de ser o comandante de todos aqueles navios de insónia.

(Francisco) dois olhares em desejo que apenas uma parede de silêncio consegue afugentar, e no pescoço, a corda do poeta enforcado.

Os dedos esticados, o papel sobre a mesa em delinquentes beijos que depois de eu adormecer, desapareciam como tudo, desde que nasci.

E um dia serei como elas.

(Francisco) as tuas mãos poisadas na sombra da minha mão, da algibeira retirava o mar que trouxera e que durante alguns anos esteve desenhado no tecto da minha alcofa, e quando acordei, todos os barcos da minha infância olhavam-me como me olharam quando me viram pela primeira vez e pensavam que eu tinha regressado da lua ou do sol; tão tristes, mãe, estão as flores do teu jardim e as primeiras gaivotas que me ofereceste.

(Francisco) a paixão tomou conta dele, vendeu a alma ao diabo e dizem que hoje habita numa ruela de medo onde se senta numa pequena cadeira e de cigarro em cigarro, sonha com o regresso das gaivotas. Um dia, um dia vou ser como elas.

A cidade despedia-se de nós, e em pequenos milímetros de sombra, zarpamos em direcção aos búzios das manhãs sem madrugada.

(Francisco) poisa a tua cabeça no meu peito enquanto todos aqueles barcos aguardam o regresso do comandante; à janela, uma flor que só a luz consegue desenhar no velho mosqueteiro, percebe o que é a paixão.

 

 

 

 

 

Alijó, 24/11/2022

Francisco

(ficção)

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Teu nome – Caos

 Nunca lhe dei um nome. Olho-o, suspenso na parede fria e só como todos os meus livros, empilhados em estantes, frias e sós, mas esta pintura que neste momento observo, não tem nome. Não sei quem é o pai, quem é a mãe, tão pouco se gosta de literatura, poesia, música ou de arte; e que nome dar a uma pintura, suspensa numa parede fria e nua e só – como todas as pinturas que faço, frias, nuas e sós.

Irei chamar-lhe Caos.

O Caos nasceu numa tarde qualquer de Verão, como quase todas as minhas pinturas, e ao contrário de mim, que nasci num belo Domingo de Sol de Janeiro e às sete e trinta da manhã, o Caos nasceu numa tarde de Julho ou de Agosto, tanto faz.

Tem olhos verdes, e se o olharmos bem, tem no rosto o secreto mar do deserto. Perdoa-me, mas meu filho serás, como todas as outras minhas pinturas.

Nunca te dei um nome, enquanto te olho, e percebo que estás de braços abertos e estás suspensa nessa parede fria e nua e só, tenho pena da noite que mais tarde te abraçará. E que todas as estrelas se alicercem na tua boca,

E também não sei se tens irmãos.

E todas as paredes são frias e nuas e escuras e sós; e quando regressar a noite, mudarás novamente de nome, e de Caos, quem sabe, passarás a madrugada, quem sabe, passarás a noite, quem sabe, passarás a lua,

Quem o sabe.

As cores da tua pele incendeiam a luz ténue do teu olhar, um comboio de lata emerge da cozinha, e corredor adentro, entra no quarto, e deita-se sobre os lençóis do negro medo onde poisam as minhas palavras. Ele bebe a cicuta dos sonhos, aquela que o levará até à janela onde o mar brinca com a maré, e todos os barcos em papel, alguns embriagados pelo desejo, olham-no, como eu o olho, mas que nunca saberei o seu nome.

Que importa se esta pintura tem nome – e se eu não tivesse nome, certamente escrevia como escrevo, pintava como pinto e amava como amo, então

Quão importante se ele se chama de Caos ou de outra coisa qualquer.

Pintura será. Meu filho será.

E por breves momentos, coloco-me no lugar do Caos;

Conseguirá amar o Caos?

E se uma pintura amar, e se uma pintura tiver dentro de si o desejo?

E se o Caos for um poema disfarçado de pintura?

E se esta pintura, que apelidei de Caos, for um lindo poema de Sol?

E se este lindo poema de Sol for apenas a pintura que não tinha nome, que apelidei de Caos e que está suspensa nessa parede fria e nua e escura e

Com a solidão da noite.

E o homem que deu vida ao Caos, o pai do Caos, será ele um pintor, um poeta ou

Um pequeno silêncio de vento?

Não importa se a noite é escura, não importa se a parede da sala é fria, não importa…

Levanta as mãos, e reza.

Até que o vento seja um pequeno quadrado de luz.

Poderia sentar-me nesta cadeira e em frente ao mar, dar nomes a todas as minhas pinturas, poderia reler todos os meus poemas, mas são tantos que o tempo restante de vida que me resta, não chegaria.

Irei dormir sem saber o teu nome, como não sei o nome das minhas pinturas: mas gosto muito de ti, meu querido Caos.

Depois,

Um fino e frio e escuro silêncio, desenhará um sorriso na parede da tua sala, fria e nua e escura e só.

Uma serpente enrolada nas marés que assombra a janela com retracto para o teu nome; o Caos a quem dei a vida e amo-o como amos todos os meus filhos. As minhas pinturas do nobre deserto entre os parêntesis da insónia.

 

 

 

 

 

 

Alijó, 21/11/2022

Francisco

domingo, 20 de novembro de 2022

O poço da morte

 Pegavas na minha mão, com o olhar, desenhávamos pequenos círculos de sono no quintal, à nossa volta, não, ainda não tínhamos inventado a paixão, apenas um qualquer retracto que ainda hoje anda lá por casa, e para te identificar, necessito de viajar até ao mais profundo silêncio marinho, e aí sim, andas por aqui com o mesmo vestido branco, com um pequeno laço na parte traseira e calças as mesmas sandálias; e cinquenta anos depois, ainda guardo as nuvens soltas ao vento que o teu cabelo descrevia sobre mim.

Brincávamos como se não houve mais amanhã, como se o tempo tivesse parado debaixo das mangueiras, e hoje, as mangueiras já não são mangueiras, e tu, tu já não és tu, e eu, e eu já sou eu,

Dormíamos a sesta,

Ouvíamos os sons melódicos de um pequeno rádio a pilhas, e depois lançávamos sobre as sombras dos coqueiros as cordas invisíveis que nos prendiam à terra de onde brotamos e hoje, eu e tu, desconhecemos porque partimos; e ouvia-te silenciar no escuro da tarde – um dia casamos.

Brincávamos enquanto a noite se entranhava na primeira sanzala das tristes madrugadas, e hoje dou-me conta que o velho que transportava o tempo, e diga-se que por tempo entenda-se por dias, horas, segundos, minutos, um dia, outro dia, amanhã, ontem, Sábado, Domingo, e o velho Domingos, numa tarde de insónia, tropeçou junto ao Mussulo e a caixa do tempo caiu sobre a areia e o tempo num pequeno sorriso de vaidade, morreu. Hoje, a noite é o dia, o dia é a noite, a tarde passou para a manhã e esta para a tarde, e quanto a um dia

Um dia casamos,

Perdeu-se enquanto uma gaivota faminta poisou sobre o loiro cabelo de nuvem adormecida que debaixo das mangueiras brincava às mães e aos pais, e sabíamos que brevemente um barco no levaria até às trevas das flores de papel.

Pegavas na minha mão, com o olhar, desenhávamos pequenos círculos de sono no quintal, à nossa volta, e anos mais tarde, sentado junto ao Tejo, enquanto conversava com um velho cigarro em desejo, contava os barcos que entravam e saiam; num deles um miúdo acenava-me, e hoje sei que o velho que fumava cigarros junto ao Tejo e me acenava, era eu.

Um dia serás mãe, avó, a celulite entrará em ti, e dos fios com que eu puxava o mar e que tu sabias tão bem arrumar no bolsinho do bibe, poisam hoje sobre o meu peito. E despedimo-nos numa tarde junto ao mar,

E procuro-te neste velho retracto, e percebo que o avô Domingos mesmo depois de morrer ainda se faz passear pelas ruas de Luanda, puxando o velho machimbombo e às costas transporta a caixa do tempo. Hoje, não tenho tempo para recordar a tua mão que poisavas nos meus olhos e fazias-me acreditar que os papagaios em papel, um dia, um dia voavam…

Sempre um dia. Sempre um dia.

O meu pai, não muitas vezes, levava-nos a ver o poço da morte, diga-se que nunca tive nem tenho paciência para qualquer tipo de desportos, mas fascinavam-me os círculos de luz que que um rapazote em cima de uma motorizada deixava ficar na minha boca; e ela timidamente dizia-me que um dia…

Um dia, virá a morte, um dia, virão as roupas e os caixotes em madeira que deixamos ficar junto ao mar, e um dia, não sei qual, um dia voarei nos teus olhos, que dormem neste velho retracto e que já não recordo o teu nome.

Hoje, mais de cinquenta anos, sentado numa cadeira de vime e de cigarro ao canto dos lábios, conto os velhos cacilheiros que levam amontoados de corpos para a margem Sul; perdi-me numa noite de neblina.

Deixei de contar os barcos.

Deixaste de pegar na minha mão.

E o capim revoltado sorria-nos em silenciados sorrisos que hoje apenas existem neste retracto, e não percebendo porque a noite é sempre triste, procuro a tua mão enquanto à tua volta, bonecos, carrinhos, brincam de mãos entrelaçadas até que a tarde se extinga junto ao mar.

 

 

 

 

 

Alijó, 20/11/2022

Francisco Luís Fontinha