quinta-feira, 24 de novembro de 2022

As gaivotas do meu jardim

 Um dia, quando acordei, dei-me conta que tinham desenhado o mar no tecto da minha alcofa, e desde então, nunca mais esqueci o mar.

Tinha alguns meses, as melódicas equações do sono chegavam a mim através de um pequeno radio a pilhas, invenção da minha mãe, com o som muito baixinho, deliciava-me; qua maior felicidade podia ter um bebé, ouvir música e observar a imensidão do mar no tecto de uma alcofa.

(Francisco) quando a luz incendeia os meus lábios, e uma nuvem abraça-se ao teu cabelo encantado das noites sem dormir, todo o mar poisa sobre mim.

O mosqueteiro protegia-me dos insectos, e pelas pequeninas quadriculas chegam a mim os primeiros raios de luz, como se à minha volta existisse uma janela com vista para lado nenhum.

Às vezes, as gaivotas entravam pela janela e desenhavam voos rasantes no tecto da alcofa e eu comecei a acreditar que um dia, um dia também faço como elas. E ainda recordo o dia em que zarpei e fiz o meu primeiro voo sobre as periferias de Luanda; foi lindo, pai. Lindo.

Depois queria ser comandante de um petroleiro, ou paquete, e durante a tarde, enquanto desenhava e recortava vestidos de chita para o meu maior amigo, um parvalhão de um boneco, pequenos petroleiros de insónia desenhavam pequenos quadrados no pavimento do corredor, depois ouvia os apitos em despedida, e percebia que um dia, um dia também faço como elas. A tarde despedia-se de nós, poisávamos todos os apetrechos da costura, lanchava e começa a desenhar o sono na janela que dava para o jardim, e enquanto a minha mãe confeccionava o jantar, novamente zarpava e sobre a cidade, deliciava-me com o silêncio dos mabecos.

O sono tomava conta de mim.

As palavras absorviam-me, e nas paredes da sala comecei a desenhar figuras estranhas, letras e números. E um dia vou ser como elas.

(Francisco) como são lindas as flores dos teus olhos!

(Francisco) como são lindos os teus lábios e os teus olhos!

Perdi o interesse pelo mar, comecei a apaixonar-me por barcos, barcos grandes, que o meu pai, todos os Domingos, me leva a ver; e enquanto os olhava, sonhava que um dia, um dia seria como elas. (Francisco) como são lindas as tuas mãos!

(Francisco) e dos teus cabelos as lágrimas do silêncio poisam no meu peito!

E quando regressava a casa, sentia-me o comandante de todos aqueles navios; um pequeno círculo com olhos verdes brincava na minha boca, e sabia que um dia, um dia, mãe,

(Francisco) as tuas mãos são lindas, meu amor.

Um dia, mãe, um dia eu e tu vamos voar sobre as gargalhadas desta linda cidade e esta cidade será a nossa eterna sepultura.

Queria ser como elas. Queria voar sob as estrelas que durante a noite desciam do Céu e deitavam-se junto a mim, pegava-lhes na mão e adormecia até que acordava e dava-me conta que estava junto ao mar, pertinho do tecto da alcofa, sentado sobre o triciclo que em sonâmbulos soluços ia percorrendo todo o quintal até que quando me aproximava do portão de entrada, o homem que puxava os machimbombos pelas ruas da cidade, regressava, e com um beijo, fazia-me acreditar que todo aquele silêncio se devia aos meus pequenos voos que durante a tarde fazia sobre as sanzalas envenenadas de pequenos charcos de água. O odor a terra queimada abraçava as minhas mãos…

(Francisco) o desejo de quando os olhos são as estrelas de uma tarde de Domingo.

Um dia, um dia serei como elas e fartei-me do mar que tinha desenhado no tecto da alcofa, um dia serei como elas e fartei-me do pequeno radio a pilhas, um dia serei como elas e fartei-me dos barcos e de ser o comandante de todos aqueles navios de insónia.

(Francisco) dois olhares em desejo que apenas uma parede de silêncio consegue afugentar, e no pescoço, a corda do poeta enforcado.

Os dedos esticados, o papel sobre a mesa em delinquentes beijos que depois de eu adormecer, desapareciam como tudo, desde que nasci.

E um dia serei como elas.

(Francisco) as tuas mãos poisadas na sombra da minha mão, da algibeira retirava o mar que trouxera e que durante alguns anos esteve desenhado no tecto da minha alcofa, e quando acordei, todos os barcos da minha infância olhavam-me como me olharam quando me viram pela primeira vez e pensavam que eu tinha regressado da lua ou do sol; tão tristes, mãe, estão as flores do teu jardim e as primeiras gaivotas que me ofereceste.

(Francisco) a paixão tomou conta dele, vendeu a alma ao diabo e dizem que hoje habita numa ruela de medo onde se senta numa pequena cadeira e de cigarro em cigarro, sonha com o regresso das gaivotas. Um dia, um dia vou ser como elas.

A cidade despedia-se de nós, e em pequenos milímetros de sombra, zarpamos em direcção aos búzios das manhãs sem madrugada.

(Francisco) poisa a tua cabeça no meu peito enquanto todos aqueles barcos aguardam o regresso do comandante; à janela, uma flor que só a luz consegue desenhar no velho mosqueteiro, percebe o que é a paixão.

 

 

 

 

 

Alijó, 24/11/2022

Francisco

(ficção)

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