segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Conversa com Deus

 Nunca vi o mar.

Se eu pudesse, desenhava o mar nos teus olhos, se eu pudesse, escrevia o poema nos teus lábios quando nasce o Sol, depois, subia à montanha mais alta do planeta terra e conversava com Deus; se eu pudesse conversar com ele, não lhe diria nada, como nada digo com quem converso.

Mas reconheço que tenho uma certa inquietação e digamos que…

Um desejo?

Não, minha querida, não.

Mas se eu pudesse, perguntava-lhe onde estão todos os papagaios em papel que lancei, e hoje, brincam juntamente com ele, no céu.

Mas reconheço que tenho uma certa inquietação e digamos que…

Medo?

Não, minha querida, não,

Sabes, nunca tive medo.

Pela manhã pedíamos uísque, torradas e cigarros, depois, levantávamos voo sobre a cidade e só voltávamos quando sabíamos que todos os barcos que dormiam no Tejo já tinham zarpado em direcção ao terceiro esquerdo da rua nas floreiras adormecidas; subíamos as escadas, cambaleando no sono invisível da madrugada, abríamos a porta de entrada, com acesso a uma pequena divisão onde adormeciam livros, discos e sombras e fotografias, depois abríamos a janela e da rua chegavam a nós todos os nomes que tinham passado pelos corpos que às vezes deixávamos junto à esplanada, o Tejo, cansado da noite, deitava a cabeça nas minhas pernas, declamava-lhe um poema e ficávamos assim, invisíveis, até que a noite descia sobre nós – na algibeira, cinco cêntimos de euro.

As palavras que lançávamos contra a parede que dava acesso à varanda, e sempre que acreditávamos que tínhamos o Sol escondido no peito, depois de bateram contra a janela, acabavam por regressar a nós.

E se podíamos deitar fora todas as coisas possíveis e imaginárias, às palavras, nunca o conseguimos, até que um dia, eu e o mar, começamos a lançar da varanda, papeis escritos e rasurados, desenhos, riscos, diversa mobília e um par de calças; e não sabíamos que a paixão tinha tomado conta das nossas mãos, e uma noite, percebi que tinha a minha mão entrelaçada com a mão do mar.

Medo?

Não, minha querida, não,

Sabes, nunca tive medo.

Fiquei tão feliz, olhei-o e pela primeira vez, beijei o mar.

Um desejo? E o Tejo?

Não, minha querida, não.

A alvorada trazia a nós todas as canções que a noite semeava num qualquer bar, numa qualquer rua, junto ao rio. Do meu mar, aquele que nunca tive a oportunidade de olhar, escrever ou pintar, chegavam a mim todos os silêncios que um poeta medíocre como eu, poderia ter.

E mesmo assim, quando me faltavam as palavras, tocava-lhe nos seios, e já com as minhas mãos nas suas coxas poéticas que apenas a noite consegue descrever (eu nunca serei capaz de o fazer), deixava sobre a sua pele o mais belo poema de amor.

Acusaram de homem louco. Acusaram o poeta de medíocre, e hoje vende versos ao domicílio com a promoção de leve dois e pague um. E não é preciso adivinhar o resultado, quando ninguém consome poesia nos dias de hoje; a fome.

O desejo invadia-nos naquele apartamento e no terceiro esquerdo da rua nas floreiras adormecidas, eu e o mar, escrevíamos no pôr-do-sol as lágrimas das manhãs que teimavam em regressar sempre ao teu púbis, como se este, ao contrário das ruas e de todos os esconderijos da cidade, fosse o único lugar do planeta terra onde poderia encontrar Deus; e ele, nunca me quis ouvir.

Um desejo?

Não, minha querida, não.

E a paixão habita neles como habitam em mim os papagaios que fazem companhia a Deus, nos céus de Luanda.

 

 

 

 

 

Alijó, 28/11/2022

Francisco Luís Fontinha

(ficção)

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