(Os teus poemas são uma merda, meu caro Francisco. São uma merda os teus poemas, são uma merda os teus textos, os teus desenhos; tu és uma merda)
Todas as manhãs um barco
de insónia descia a Calçada da Ajuda, no porão, carregado de ossos e outras
bugigangas, um pequenote saltitava de feliz e contente; às vezes, as crianças
são felizes e sorridentes, mesmo calçando e vestindo o espelho da pobreza.
E ser pobre não é
defeito. Este pequenote, carregando uns calções e nada mais de que isso,
brincava em cima dos três caixotes que sobejaram de uma longa viagem, viagem
essa que ainda hoje não chegou ao seu destino.
(os teus poemas são uma
merda, meu caro Francisco)
No exterior do barco, um
jovem soldado, de pistola na mão e apontando-a à cabeça, dispara: contra as
paredes amarelas do muro da vergonha, um amontoado de miolos deu cor e brilho,
obra de arte que durante semanas, mesmo depois da dita parede ser raspada e
pintada, tornava-se assim atracção mundial.
(a arte de uma cabeça
estoirada e lançada contra uma tela invisível)
À noite, o pequenote saía
do porão, saltava do barco e em corrida descia toda a Calçada como se fosse à
procura de um qualquer Cacilheiro que tinha ficado da tarde que já se tinha
finado, e andasse por ali… ou por aí.
(Os teus poemas são uma
merda, meu caro Francisco. São uma merda os teus poemas, são uma merda os teus
textos, os teus desenhos; tu és uma merda)
Chegando ao rio,
sentava-se junto à água e ficava horas a contar sombras e luzes que chegavam da
outra margem, olhava o Cristo Rei e a Ponte que foi Prof. Dr. Oliveira Salazar
e depois baptizada de vinte e cinco de Abril e acreditava que um dia, um dia
todo aquele rio e todos aqueles barcos seriam só dele.
Horas depois e já o
pequenote estando farto da Ponte, do Cristo Rei e de tantos barcos, zarpava e estacionava
os calções em Cais do Sodré onde adormecia num qualquer quarto com janela para
o inferno e sem casa de banho privativa.
(Os teus poemas são uma
merda, meu caro Francisco)
E numa tarde de neblina o
pequenote desapareceu sem deixar uma carta ou um poema…
Talvez um poema de merda,
meu caro Francisco.
Um poema de merda.
Alijó, 09/01/2023
Francisco Luís Fontinha
O autor não pode , não deve , apelidar os seus textos, os seus poemas ...de merda. Estes textos, estes poemas... são ARTE.
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