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terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Quase tudo morre

 Sejamos francos

Quase tudo morre

 

Morrem as árvores e os pássaros

E os filhos dos pássaros

E os filhos das árvores

Morrem os barcos

Os filhos dos barcos

E os passageiros dos barcos

Morrem as estrelas

E um dia morrerá a Terra e a Lua

Morre a noite

Quando acorda o dia

E morre o dia

Quando acorda a noite

 

Morrem os rios

E as montanhas

Morrem os corpos

E há corpos vivos que estão mortos

 

Um dia morrerá o sol

 

E se a lua morrer

Não terás luar

 

E se o sol morrer

Não terás o pôr-do-sol

 

E o que te importa olhar o mar

Se não há o pôr-do-sol?

 

Morrem as casas

As ruas e as cidades

Morrem os mendigos e a pobreza

Quando morrem os pobres

 

Morreu o portão de entrada

Do quintal de Luanda

Quando me sentava à espera do avô Domingos

Depois de uma longa tarde a passear os machimbombos com um cordel

Pelas ruas de Luanda

Morreram as mangueiras do quintal

Morreram as mangas

Morreu o avô Domingos

E os machimbombos do avô Domingos

Morreram os calções e as sandálias

E o triciclo

Morreu o chapelhudo

Depois

Morreram os papagaios em papel

E a construtora dos papagaios em papel

 

Morreu a escola junto ao jardim

(assassinada)

Morreu o antigo campo de futebol

E que hoje é o mercado

Morreu o velho Maximiniano

Que com um carro de mão

Transportava as bancas em madeira para aluguer nos dias de feira

 

Morreu o Dispensário

A menina Maria e a Tuberculose

(felizmente que a tuberculose morreu)

Morreram quase todos os gajos

Que fumavam charros nas escadas do Dispensário

 

Antes do avô Domingos

Morreu o avô Francisco

Depois a avó Valentina

A avó Silvina

O tio Augusto

Primos

Tios

Primos e tios e tias e primas

Morreram

 

Morreu o café Luso e a cozinha do café Luso

E os charros que se fumavam na cozinha do café Luso

E alguns dos gajos que formavam charros na cozinha do café Luso

Morreu o primeiro Oásis e hoje vendem lá comida de plástico

 

Morreu a peixaria que habitava entre o Oásis e a Ribadouro

 

Morreu o café da Paz

E as janelas do café da Paz

 

Morreram os amigos

Os que fumavam

Os que bebiam

Os que fumavam e bebiam

Os que nem fumavam nem bebiam

 

Um dia

Começou a morrer o cabelo do meu pai

Depois e aos poucos

Toda a parte direita da cara e o couro cabeludo

Morriam

Caíam camo caem as folhas no Outono

Por fim

Morreu o meu pai

 

Ao outro dia

Começou a morrer o cabelo da minha mãe

(dona Arminda, quantos cigarros fuma por dia? – nenhum, Doutora Luísa, nunca fumei!)

- O seu filho tem de deixar de fumar

Não deixei

E também a minha mãe

Morreu

 

Morreu o barco que me trouxe de Luanda

Morreu a carruagem da CP que me trouxe de Lisboa para o Porto

E do Porto para o Pinhão

Morreu o carro que me trouxe do Pinhão para Alijó

E o motorista do carro que me trouxe do Pinhão para Alijó

 

Morre o silêncio

O beijo

Morrem os lábios onde brincam os beijos

Morrem os olhos que nos iluminam

E a luz que ofusca os olhos

Morre a manhã

E o desejo da manhã

E a manhã em desejo

Morre o abraço

O uísque

E o bagaço

Morre a paixão

Morre o amor

O marido perde a companheira

A companheira perde o amante

O filho perde o pai

O pai perde o filho

Tudo perde

Tudo morre

 

Morre a lareira quando deixa de ter lenha

E morre a lenha

Quando a lareira acorda de mau humor

 

- E a saudade, meu filho?

O que tem a saudade, mãe?

A saudade morre, mãe?

- A saudade, meu querido, a saudade nunca morre

 

- E os poemas, meu filho?

O que têm os poemas, pai?

Os poemas morrem?

- Os poemas, meu querido, os poemas nunca morrem

 

Morreu o banco de jardim

Que estava estacionado em frente aos Correios

À noite

Sentava-se lá uma linda mulher

De livro na mão

Livro que eu já tinha lido

E quando percebi

Já tinha a minha mão no livro dela

E ela tinha a mão na minha mão

Falávamos de literatura, poesia, arte e música

Até que de madrugada

A mãe dela

Também já morta como o banco de jardim

Vinha-a buscar

E eu furioso

Pronto a assassinar o resto da noite

Para que brevemente fosse dia

Durante a tarde

Escrevíamos em conjunto poesia

Morreu o banco de jardim

Morreu a mãe da linda mulher

A linda mulher não sei se morreu

Mas o livro ainda deve andar por qualquer uma das prateleiras da minha estante

 

Sejamos francos

Quase tudo morre.

 

 

 

 

 

 

 

Alijó, 06/12/2022

Francisco Luís Fontinha

domingo, 20 de novembro de 2022

O poço da morte

 Pegavas na minha mão, com o olhar, desenhávamos pequenos círculos de sono no quintal, à nossa volta, não, ainda não tínhamos inventado a paixão, apenas um qualquer retracto que ainda hoje anda lá por casa, e para te identificar, necessito de viajar até ao mais profundo silêncio marinho, e aí sim, andas por aqui com o mesmo vestido branco, com um pequeno laço na parte traseira e calças as mesmas sandálias; e cinquenta anos depois, ainda guardo as nuvens soltas ao vento que o teu cabelo descrevia sobre mim.

Brincávamos como se não houve mais amanhã, como se o tempo tivesse parado debaixo das mangueiras, e hoje, as mangueiras já não são mangueiras, e tu, tu já não és tu, e eu, e eu já sou eu,

Dormíamos a sesta,

Ouvíamos os sons melódicos de um pequeno rádio a pilhas, e depois lançávamos sobre as sombras dos coqueiros as cordas invisíveis que nos prendiam à terra de onde brotamos e hoje, eu e tu, desconhecemos porque partimos; e ouvia-te silenciar no escuro da tarde – um dia casamos.

Brincávamos enquanto a noite se entranhava na primeira sanzala das tristes madrugadas, e hoje dou-me conta que o velho que transportava o tempo, e diga-se que por tempo entenda-se por dias, horas, segundos, minutos, um dia, outro dia, amanhã, ontem, Sábado, Domingo, e o velho Domingos, numa tarde de insónia, tropeçou junto ao Mussulo e a caixa do tempo caiu sobre a areia e o tempo num pequeno sorriso de vaidade, morreu. Hoje, a noite é o dia, o dia é a noite, a tarde passou para a manhã e esta para a tarde, e quanto a um dia

Um dia casamos,

Perdeu-se enquanto uma gaivota faminta poisou sobre o loiro cabelo de nuvem adormecida que debaixo das mangueiras brincava às mães e aos pais, e sabíamos que brevemente um barco no levaria até às trevas das flores de papel.

Pegavas na minha mão, com o olhar, desenhávamos pequenos círculos de sono no quintal, à nossa volta, e anos mais tarde, sentado junto ao Tejo, enquanto conversava com um velho cigarro em desejo, contava os barcos que entravam e saiam; num deles um miúdo acenava-me, e hoje sei que o velho que fumava cigarros junto ao Tejo e me acenava, era eu.

Um dia serás mãe, avó, a celulite entrará em ti, e dos fios com que eu puxava o mar e que tu sabias tão bem arrumar no bolsinho do bibe, poisam hoje sobre o meu peito. E despedimo-nos numa tarde junto ao mar,

E procuro-te neste velho retracto, e percebo que o avô Domingos mesmo depois de morrer ainda se faz passear pelas ruas de Luanda, puxando o velho machimbombo e às costas transporta a caixa do tempo. Hoje, não tenho tempo para recordar a tua mão que poisavas nos meus olhos e fazias-me acreditar que os papagaios em papel, um dia, um dia voavam…

Sempre um dia. Sempre um dia.

O meu pai, não muitas vezes, levava-nos a ver o poço da morte, diga-se que nunca tive nem tenho paciência para qualquer tipo de desportos, mas fascinavam-me os círculos de luz que que um rapazote em cima de uma motorizada deixava ficar na minha boca; e ela timidamente dizia-me que um dia…

Um dia, virá a morte, um dia, virão as roupas e os caixotes em madeira que deixamos ficar junto ao mar, e um dia, não sei qual, um dia voarei nos teus olhos, que dormem neste velho retracto e que já não recordo o teu nome.

Hoje, mais de cinquenta anos, sentado numa cadeira de vime e de cigarro ao canto dos lábios, conto os velhos cacilheiros que levam amontoados de corpos para a margem Sul; perdi-me numa noite de neblina.

Deixei de contar os barcos.

Deixaste de pegar na minha mão.

E o capim revoltado sorria-nos em silenciados sorrisos que hoje apenas existem neste retracto, e não percebendo porque a noite é sempre triste, procuro a tua mão enquanto à tua volta, bonecos, carrinhos, brincam de mãos entrelaçadas até que a tarde se extinga junto ao mar.

 

 

 

 

 

Alijó, 20/11/2022

Francisco Luís Fontinha

domingo, 2 de outubro de 2022

Os machimbombos do avô domingos

 Pego neste cigarro que brevemente se vai extinguir nas minhas mãos;

Como tudo o que me pertence, deixa de me pertencer…

E extingue-se nas minhas mãos.

As palavras morrem.

As imagens que habitam em mim,

Morrem ou ficam amuadas como uma criança mimada,

Se toco numa árvore, morre.

Se toco em alguém… fica doente e morre,

E até estes livros que me pertencem…

Todos eles, mortos.

Morreram as imagens da minha infância,

Morreram as fotografias da minha infância…

Morreram as minhas flores,

E todos os meus brinquedos…

E até o meu grande amigo “chapelhudo” morreu

Numa tarde qualquer, em Luanda.

Morreram todos os barcos da minha infância,

Morreram as gaivotas da minha infância…

… e pego neste cigarro que brevemente se vai extinguir nas minhas mãos,

Sabendo que também ele será a morte.

Morreu o avô Domingos.

Morreu o meu pai.

Morreu a minha mãe.

E até a merda dos machimbombos morreram…

E hoje não passam de sucata.

Como eu.

Sucata amarrotada sentado num jardim invisível.

 

 

 

Alijó, 2/10/2022

Francisco Luís Fontinha

sábado, 9 de maio de 2015

Os cinco pilares de areia


Fiquei sem palavras

Entre três paredes de nada

Esqueci como se vive

Porque perdi-me na estrada

E o sol

Deixou de brilhar na minha aldeia

Tenho saudades

Pai

Dos Musseques

E das gaivotas

Do Mussulo

E dos machimbombos

Em rodopio silêncio

Percorrendo ruas de uma cidade inventada

E a carta

Nunca regressou

Nem vai regressar

Às tuas mãos

O barco que nos trouxe

Levar-te-á

Até ao infinito Oceano do Adeus

Como uma rocha de sílabas envenenadas

Descendo lentamente o papel húmido da madrugada

Tenho medo

Pai

Dos cinco pilares de areia

Que desenhavas na minha mão

Ao pôr-do-sol

Os barcos

E os marinheiros quando brincavam no teu olhar

Nocturno

Viajante

Dos destinos indesejáveis

O ferro em brasa no teu sofrimento

Tenho medo

Pai

(Pai

Dos Musseques

E das gaivotas

Do Mussulo

E dos machimbombos

Em rodopio silêncio)

Como só a morte o sabe fazer…

 

Francisco Luís Fontinha – Alijó

Sábado, 9 de Maio de 2015

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Lágrimas cor-de-rosa...

(desenho de Francisco Luís Fontinha)


A cidade camuflada pela espingarda das palavras,
o homem vestido de madrugada
esconde-se entre os candeeiros sem nome,
no cais,
encontra a solidão
e alguns cigarros de triste olhar,
há sobre ele o cheiro da saudade
e dos machimbombos puxados pelo cordel invisível do capim,
ouvem-se canções no musseque,
e dançam
e dançam
e dançam...
dançam em redor dos mabecos em fúria,
dançam imaginando pequenos charcos de água
como se o dia não tivesse acordado,
a cidade,
acorrentada,
o homem,
sufocado,
ele,
ela...
e não há poesia nos triciclos de madeira apodrecida, e não há poesia nos papagaios de papel,
esta cidade está infestada de sombras
e de lágrimas cor-de-rosa...



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Terça-feira, 13 de Janeiro de 2015


sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Noites de Sexta-feira...


Tenho no meu peito um fóssil,
uma lâmina de aço laminado,
tenho no meu peito uma cidade, uma mulher que habita nessa cidade, uma lâmina...
que me estrangula, que me absorve,
e engole,
nas noites de Sexta-feira...

Há um triste olhar que me acompanha desde as ruas de Luanda,
olhava as sanzalas, inventava grãos de areia no Mussulo,
desenhava peixes nos machimbombos com coração de granito,
ouvia, às vezes, um grito...
e engole,
nas noites de Sexta-feira,

Há um apito quando oiço a voz do silêncio,
uma criança com mãos de sisal,
deitada na eira de Carvalhais,
tenho no meu peito um fóssil,
um lâmina de aço laminado,
uma luz esculpida na calçada do abismo...
havia entre nós um muro amarelo,
havia ao longe um rio embriagado,
eu, eu sorria,
eu, eu descia... até que os tentáculos do desejo me levavam,
e quando regressava,
o apito... apitava...

O vício vomitava sílabas com sabor a alumínio,
e eu, eu dançava sobre uma nuvem de nada,
que me estrangulava, que me absorvia,
e engolia,
nas noites de Sexta-feira...
… e percebia o significado de liberdade.



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sexta-feira, 1 de Agosto de 2014

terça-feira, 25 de março de 2014

Aqui perdidas em ti


Aqui vou procurando as sílabas perdidas em ti,
aqui abraço o cansaço dos teus lábios,
aqui adormeço, aqui... aqui habito como um sonâmbulo embriagado,
uns dias olho o luar, outros... outros apetece-me chorar,
aqui não há mar,
gaivotas,
cacilheiros travestidos de neblina,
aqui, eu, percorro as cinzas do teu olhar,
e sonho, e penso, e quero partir como partem as andorinhas depois do término da Primavera,
aqui me esqueço, aqui...
aqui fundeio o meu cadáver de pano,
e grito, Aqui... Aqui a vida é um engano,

Aqui me amanho como um rebanho de desejo,
escondo-me na montanha do adeus, e nada, e nada,
aqui tenho livros que não quero ler,
odeio as palavras, odeio o querer...
querer que não tendo vou ter,
o quê?

Que aqui vou procurando as sílabas perdidas em ti,
os jardins sem flores,
as nuvens tão negras, tão negras... que é sempre noite,
sempre... sempre noite,
aqui não há Cais do Sodré,
machimbombos, mangueiras... papagaios em papel colorido,
aqui me enforco, aqui habito imaginando que tenho ossos, que tenho vida...
tecto com estrelas em chita, aqui... aqui nada me excita,
nem as palavras, nem as imagens das fotografias assassinadas,
aqui não há madrugada,
amanhecer,
aqui, aqui apenas existe dor, aqui, aqui apenas existe... engano.


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Terça-feira, 25 de Março de 2014

sábado, 7 de dezembro de 2013

os quês e os porquês

foto de: A&M ART and Photos

um dia perceberás os quês
e os porquês...
… os porquês das minhas correntes de aço
e os quês...
os quês das minhas tristes mãos de papel celofane
um dia saberás que todas estas palavras nunca existiram
que eu não existo e sou apenas uma invisível mulher filha da madrugada
um dia
quem sabe
perceberás os meus quês e os teus
dela
porquês das sílabas tontas quando embriagadas nas nocturnas viagens ao infinito
um dia saberás que fui sempre um covarde de merda
correndo aprisionado a um maldito barco enferrujado
um gajo doido... que sonha com telhados em zinco
(vê tu meu amor... telhados em zinco)
palhotas
mangueiras
bananeiras...
pai... o que são machimbombos?
isso não existe
porquês
os quês
como borboletas nas tuas calças de tecido engomado...
saíamos das cabeças com cobertura de chocolate
tínhamos os dedos entrelaçados
e os quês
porquês
não sabiam
nós não sabíamos que os homens eram em granito
e os olhos construídos de sombras tempestades de aveia
aveia, pai?
querias tu escrever... areia
quero eu escrever
meu filho
aveia... aveia límpida em sexos murchos depois do cacimbo abalar...
um dia perceberás os quês
e os porquês...
e o que faço eu aqui
esperando o teu insípido regresso
os quês
e o amanhecer dos teus porquês...
um dia perceberás que as nuvens são de algodão
e as nádegas
nádegas, pai?
não, não meu filho...
que os livros são de palavras loucas
que procuram loucas bocas e apaixonados lábios...
(eu um homem em fuga
da paixão
do regresso dos quês...
e dos quês... dos porquês...
eu
um homem apaixonado com medo dele
ele... o covarde de merda
de pedra e com olhos de sombras tempestades de aveia)


(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sábado, 7 de Dezembro de 2013

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

No sorriso da lua, esse corpo pertence-te?

foto de: A&M ART and Photos

Este corpo não é o teu, esses olhos com que iluminas as noites cansadas na solidão da insónia... não são os teus, essa boca, e esses lábios, não te pertencem, não é a tua boca, não são os teus lábios, as noites com que embrulhas as palavras, não o são, as tuas pobres noites embriagadas com sofrimento e dor, e a vida que vives, também não te pertence, não és nada, apenas uma imagem deixada num banco em madeira, sentas-te na penumbra, olhas-me sabendo que eu não te vejo, porque tu não existes, porque tu nunca exististe, és uma mentira pregada numa cruz metálica, foste crucificada quando as nuvens ainda eram nuvens e hoje, como tu
Não são nada,
Esse corpo que estampas nos meus olhos não é o teu corpo, e os seios que trazes no peito... são apenas tangerinas perdidas nos muros de xisto enroladas em socalcos, abelhas e pedaços de pólen, não são nada, e tudo em ti, apenas janelas de cansaço com cortinados de algas com perfume de mendicidade, gostava de ser como tu, invisível, transparente, gostava de pertencer às pedras com películas mergulhadas em sais de prata, gostava de ser uma fotografia tua,
Não são nada,
No sorriso da lua, esse corpo pertence-te?
Como tu, o xisto esfarela-se e voa sobre os limos das volúpias ensanguentada que os mabecos deixam ficar sobre os charcos da infância, saltar à corda, jogar à bola, ao espeto... partir vidros por falta de pontaria, rir, brincar, chegar ao espelho e não acreditar que já não pertences aos corpos verdadeiros, em carne, ossos, palpáveis, comestíveis, corpos como aqueles que vivem nos edifícios das cidades dos machimbombos envenenados pelas tempestades de verniz que sobejaram das tuas unhas, como tu, o xisto esfarela-se e voa sobre os limos das volúpias ensanguentada que os mabecos deixam ficar sobre os charcos da infância, o livro de ti apaga-se, esconde-se dentro de gaveta da cómoda, sobre a mesa-de-cabeceira deixavas ficar as tuas pulseiras, os anéis... e outras tantas bugigangas, e as tatuagens que trazes no teu ombro esquerdo, hoje
No sorriso da lua, esse corpo pertence-te?
Hoje parecem cromos dispersos dentro de uma caderneta inacabada, extinta, húmida quando entra-nos pela janela o jardineiro, o frio, e os arbustos da despedida, depois ouvimos o rio, o rio com braços, pernas, púbis e coxas, e mandíbulas em aço inoxidável,
Ferro forjado,
Enferrujado e velho, as cordas dos tentáculos de vidro invadem o teu corpo, e dizem-me que...
Esse corpo não é o dela,
E dizem-me...
Ferro forjado, ferro e ferro, ferro do bom, ferro verdadeiro, corpo molhado sobre os lençóis da despedida em arbustos de lágrimas, o apito do teu vazio peito, o uivo do teu lento olhar, a bandeira dos teus alegres cabelos... e mesmo assim
Tu nunca exististe,
E mesmo assim...
Gosto de ti, gostava de ti, não o sei... talvez, amanhã, ou
Ontem?
Porquê ontem?
Tu nunca exististe,
E mesmo assim...
Gosto de ti, gostava de ti, não o sei... talvez, amanhã, ou
Ontem?
E nunca sei quando é Domingo, e nunca percebo porque acreditam as rosas nas folhas do teu livro... e ainda lá dormem, e depois
Ontem?
Dizias-me que esse corpo não era o teu, que não, pois as montanhas não falam e os pássaros não são barcos e as sanzalas não são tardes de melancolia, e o musseque não é a Primavera, o Outono...
Gosto de ti, gostava de ti, não o sei... talvez, amanhã, ou
Não falas, e dizes-me que esse
Corpo?
Não, não... e dizes-me que as minhas mãos são de pergaminho.


(não Revisto – Ficção)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Quarta-feira, 16 de Outubro de 203

domingo, 28 de julho de 2013

Não estou em casa, hoje...

foto de: A&M ART and Photos

Esquilos, nozes em vozes, mamilos denegridos, absortos, lábios lânguidos, corpos absolutamente sós, como eles, e como nós, os vizinhos quando lhe batiam à porta em maciça madeira, ele, ainda embriagado pela poesia não escrita, escondia-se, fazia-se... morria, não percebendo depois, que tudo era a fingir, acordava, voltava a dormir, deixou de sorrir, deixou de viver, não queria passear-se pelas cansadas margens de um doente rio, vivia-se, e ia-se vivendo, não sabendo, nunca, o horário penumbro das amendoeiras em flor,
Descia-se,
Subia-se,
E chorava-se,
Esquilos vaidosos roendo nozes de brincar, fantasia, histórias ao almoçar, sobre uma pequena mesa, de pedra, no quintal, uma árvore e um pássaro, preto, bico amarelo,
Melro?
Melro, talvez, porque não?
Inchados, os pilares de areia que seguram as amarras das tristes varandas com murchas flores, ao longe, a praia, o silêncio, o corredio de machimbombos vomitando sonhos adormecidos entre o Baleizão e o Mussulo, batiam-me à maciça madeira porta, eu, eu escondia-me, ou simplesmente berrava
Não estou em casa, hoje,
E eles, elas, acreditavam..., tão parvos, e continuava fingindo dormir, quando na verdade, eu, eu estava morto, desde criança, morri, recordo-me vagamente, tinha alguns poucos, não muitos, seis anos de vida, lembro-me como se fosse hoje, era Setembro, brevemente começavam as vindimas
O que são vindimas, pai?
É o apanhar das uvas...
Uvas, o que vão uvas, pai?
Não percebia que as videiras
Pai, sim filho, o que são videiras?
Não percebia que as videiras davam uvas, que existiam cachos, e lembro-me como se fosse hoje, era Setembro, quase, quase começavam as vindimas, e lembro-me, morri, depois, embrulharam-me num lençol de água salgada, permaneci assim cerca de vinte e oito dias, era Outubro, caiam as folhas das árvores, e eu, eu perguntava-me porque caiam as folhas das árvores,
O que são vindimas, pai?
É o apanhar das uvas...
Uvas, o que vão uvas, pai?
Não percebia que as videiras
Pai, sim filho, o que são videiras?
E pela primeira e última vez, eu, eu tive vergonha de perguntar ao meu pai
Pai, porque caem as folhas das árvores?
Eu tive vergonha de perguntar ao meu pai se esta terra era para sempre ou apenas para eu brincar, e começaram as chuvas, e o frio, a geada e a neve, e eu, eu morto, fui ficando, fui ficando... embrulhado num lençol de água salgada.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Absorviam-te as palavras

Insisto, desistes facilmente como se fosses a chuva miudinha dos finais de tarde em Belém, e nunca percebi, senti, sem ti, perceber

Porque me perseguias entre sombras e canaviais que escondem a cidade, porque me perseguias, sem perceber, sem ti e sinto, hoje, não propriamente hoje, ontem talvez, às vezes esqueço-me que já morri, defecado dentro dos orifícios das lilases masmorras de granito, sentavas-te e acorrentavas-te aos candeeiros encardidos, velhos, ontem, hoje não

Perceber, sem ti, sentir-te dentro dos meus olhos cabisbaixos, amorfos, fabricando euros clandestinos num barracão da Madragoa, e entortavas-te com a vestimenta disfarçada de gaja Espanhola, made in China, perceber

Hoje não, desculpa-me,

E entortavas-te nos lençóis embebidos em vodka, senti, sem ti

Hoje não, desculpa-me,

Sem ti e sinto, hoje, não propriamente hoje, ontem talvez, às vezes esqueço-me que já morri, defecado dentro dos orifícios das lilases masmorras de granito, os sexos murchos como as palmeiras da Baía de Luanda, quando o vento, as levava, e eu

Sentavas-te, sem ti, senti, sentavas-te a olhar o mar, e esperavas, pelo regresso das palmeiras, algumas regressavam, outras morriam, e outras

E entortavas-te nos lençóis embebidos em vodka, senti, sem ti

Libertavam-se das manhas de cacimbo, e o capim mergulhava nas tuas coxas de linho, o cortinado tremia, sentavas-te

Sentia-te,

Sentavas-te nos rochedos que as nádegas, e entortavas-te nos lençóis embebidos em vodka, senti, sem ti a paixão dos homens que se suicidavam dentro dos cubos de vidro, e sentavas-te nos rochedos que as nádegas de manteiga desenham nos espaços vazios da areia das parais do Mussulo, caraças

Sentavas-te e sentavas-te e sentia-te

Regressavam os barcos nocturnos das viagens sem regresso, perdias-te nas caves escondidas dos porões esfomeados que a saliva do desejo traçava nas paredes murmuradas em parêntesis incompletos, pontos finais sem fim, continuação da história, da mulher de saltos altos e meia de vidro no palco em delírios e sentavas-te

No caixão revestido de sorgo, amêndoas e chocolates fora de validade, acreditavas nas esplanadas junto ao rio, abrias as pernas, fincavas os dentes num pedaço de pano, sujo, imundo, húmidas as tuas mãos, e

Absorviam-te as palavras, desculpa-me, sentavas-te, sentavas-te, senti, sem ti, absorviam-te as palavras como se fosses um poema de amor, como se fosse uma rosa, uma nuvem, pássaro, ou uma árvores inventada pelas mãos de um apaixonado motorista dos machimbombos, com asas de de vodka, embebias os lençóis em sangue menstrual, limpidamente à janela de onde se observava a pastelaria, e quem diria

E entortavas-te nos lençóis embebidos em vodka, senti, sem ti,

E quem diria, que eu, um dia, acabaria como um lençol mutuário, sem testamento, herdeiros, e quem diria, que eu, um dia, sem ti e sinto, hoje, não propriamente hoje, ontem talvez, às vezes esqueço-me que já morri, defecado dentro dos orifícios das lilases masmorras de granito, os sexos murchos como as palmeiras da Baía de Luanda, quando o vento, as levava, e eu

E eu

Um vulcão,

E eu

Sentia-te,

E eu

Libertava-me das manhas de cacimbo, e o capim mergulhava nas coxas de linho construída por uma noite de insónia, e o cortinado tremia, e sentavas-te

Sentia-te,

Nos meus silêncios do inverno à lareira dos sonhos,

E eu

Não acreditei.

(Texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

domingo, 4 de novembro de 2012

A ilha e a cidade e a infância perdida em mim


Inventas o medo nas cartas das palavras silêncios
sem perceberes que na tua boca vivem as sílabas do desejo
como a janela com vista sobre a cidade
quando cai a noite submersa na tua pele pergaminho

Inventas as mãos com que me acaricias
no regresso dos barcos do outro lado da cama
que a mesa-de-cabeceira derramou as flores sensíveis à luz dos teus olhos
inventas os sonhos
e os mármores e os granitos das paredes de vidro
quando cai a noite
submerso em ti o pergaminho azul da manhã depois do sexo se extinguir na neblina
que cobre as ardósia castanhas dos teus cabelos

Inventas-me e metade de mim é poema
inventas-me nas clarabóias que o mês de Janeiro desenhou no vento desassossegado
das roldanas engasgadas na ferrugem dos lábios do velho Armindo
sozinho
à minha espera
quando depois de me inventares
escreveres no céu nocturno de Lisboa
que o rio nunca existiu

(Inventas o medo nas cartas das palavras silêncios
sem perceberes que na tua boca vivem as sílabas do desejo
como a janela com vista sobre a cidade
quando cai a noite submersa na tua pele pergaminho)

Inventas o ciúme das palavras
que o meu corpo poema escreve nas sanzalas desgovernadas
que os machimbombos preguiçosos
comem as sombras das mangueiras
inventas o mar
e as areias brancas do Mussulo
e nunca esqueceste da cadeira onde me sento
inventaste a ilha e a cidade e a infância perdida em mim...

(poema não revisto)