sábado, 4 de dezembro de 2021

Poema enforcado

 

O poema envenenado

Que dorme nesta mão calejada

Pela silenciosa triste enxada,

O poema cansado,

Cansado do nada,

Nada este poema envenenado.

 

Este poema enforcado,

Nas palavras sem madrugada,

É um poema falhado,

É um poema sem nada.

 

O poema envenenado,

Que eu escrevo em ti,

É um poema desgraçado,

 

Este poema enforcado,

Das palavras madrugada,

De tudo, tem nada,

De nada, é um verso cansado,

 

Cansaço que nunca senti.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 04/12/2021

Lágrima de fogo

 

Transporto

Esta triste lágrima de fogo,

Sentindo o que deixei de sentir,

Este cansaço de partir,

Partir sem sentir,

Sentir esta triste lágrima de fogo.

 

 

Francisco Luís Fontinha

04/12/2021

Mulher

 

Mulher,

Silêncio que se despe em mim,

E mergulha na noite em papel;

A ousadia de viver,

Vivendo neste jardim,

Jardim a crescer,

Junto a este hotel.

 

Mulher,

Canção envenenada, palavra em revolta.

Mulher, criança mimada,

Mimada à minha volta.

 

Mulher,

Flor silêncio que se despe em mim,

Da noite em combustão,

Mulher,

Mulher de mim,

De mim, corpo paixão.

 

Mulher,

Corpo vestido de morte,

Cansaço desta montanha apagada,

Morte de má sorte,

Sorte em ser geada.

 

Mulher,

Que te vestes de mulher,

E ousas ser outra mulher.

Não te vistas,

Nem te ouses.

Mulher é mulher,

É poema,

Verso enfeitado,

Mulher é flor;

Não o sejas porque alguém o quer,

Porque mulher

É chama,

É livro envenenado,

É palavra e é amor.

Mulher,

Mulher é mulher,

Mulher é flor,

Mulher é amor.

 

Mulher,

Silêncio que se despe em mim,

E mergulha na noite em papel;

Mulher,

Não queiras ver o meu jardim,

Jardim de mulher,

Mulher

É amor,

É flor;

Mulher

É mulher,

Mulher é palavra semeada,

Mulher,

Mulher é livro, mulher é batel,

Mulher é poesia encantada,

Mulher,

Mulher é mulher,

Mulher de geada.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 4/12/2021

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Amantes em construção

 

Olha para mim

Enquanto o sol brilha na tua mão.

Escreve em mim

As palavras estonteantes

Do desejo.

Olha para mim

Enquanto o meu pobre coração,

Em pedaços de beijo,

Voa em direcção às estrelas cadentes.

 

Suplico ao silêncio

Que se despeça do meu corpo,

Sabendo que lá fora,

Entre sombras e murmúrios,

As palavras estonteantes

Comem-me os duzentos e seis pobres ossos.

 

Duzentos e seis pedaços

De nada.

 

Olha para mim

Depois de acordares e abrires a janela,

Olha para mim

Enquanto o luar se deita na tua cama,

Olha, olha para mim

Sabendo que da tua voz tão bela,

Há um poema em chama,

 

Há um poema em trapos,

Com as palavras da alvorada.

 

Olha-me.

 

Olha para mim

Montanha esbelta da minha terra adormecida,

Com as árvores em papel colorido,

Olha para mim

Montanha minha amada querida,

Olha!

Olha para mim,

Corpo sofrido.

 

Olha para mim

Enquanto o sol brilha na tua mão.

Escreve em mim

As palavras estonteantes

Do desejo.

Olha para mim

E ouve esta pobre canção;

São palavras que não vejo,

São palavras que vão…

São as palavras dos amantes,

Dos amantes em construção.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 03/12/2021

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

O poeta vagabundo

 

Dentro do sono,

Viaja a cansada noite sem despertador,

- há dias que não como,

Como uma flor.

 

Vive-se e morre-se de quê?

Não comendo flor,

Não bebendo água congelada,

Morrer-se porquê?

Sabendo que na triste madrugada,

Em plena união,

Habita uma flor,

Uma flor sem coração.

 

Dentro do sono amanhecer,

Quando alguém sem nome

Abre a cancela da alvorada;

É o poeta que não consegue escrever,

Escrever no papel da fome,

A fome envenenada.

 

E depois de morrer,

O desgraçado do poeta vagabundo

Deixou sob a ponte,

Um pedacinho de geada.

Não consegue correr,

Correr até ao cimo do monte,

Sentar-se e olhar a imensidão do mundo,

Do mundo que é uma maçada.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 02/12/2021

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Trago no peito

 

Trago no peito

A equação do silêncio.

Às palavras que escrevo,

Peço perdão à madrugada,

Sentado nesta pobre esplanada,

Sentindo o vento na face oculta da solidão;

Trago no peito

A equação do silêncio,

Um pedacinho de saudade,

Trago no peito a sílaba envenenada,

E um pedaço de pão.

 

Trago no peito

O feitiço da alvorada,

Quando cansado me deito,

Me deito sem saber nada.

 

Trago no peito

A equação do silêncio,

Um pedaço de pano,

Onde me abraço,

Sem perceber que amo,

Amo este pobre cansaço.

 

Trago no peito

Os cigarros fumados,

Os pedacinhos em papel onde escrevi,

Trago no peito

Marinheiros abraçados,

Marinheiros que nunca vi,

Marinheiros desgraçados.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 30/11/2021

 

A orgia dos pássaros. Definem-se as palavras nos lábios do poeta. Escorregam das mãos do poeta, as lâminas do desejo, quando do poeta, apenas crescem as mandibulas envenenadas do silêncio. Amar-te, não chega, escrevia ele na ardósia da noite, quando lá fora, na ruela da escuridão, uma flor se perdia de amores por uma abelha.

Suicidou-se, o parvalhão.

Diziam que se rezasse, regressariam as palavras ao poema; ele rezava e, o poema continuava incompleto, triste e amorfo. Das luzes da alvorada, cresciam beijos na boca do poeta e, da boca do poeta, renasciam as sílabas estonteantes da noite.

Eu, acredito que sim.

O feitiço tomava conta da madrugada, silenciavam-se todas as palavras em delírio, como se silenciam os beijos na boca perfumada do Inverno.

Tenho medo de morrer.

Odeio o cancro.

Odeio a decadência humana.

Libertavam-se, aos poucos, os gemidos atónitos da manhã, quando era de esperar que lá fora já fosse noite, noite cerrada, moribunda, esquizofrénica como todas as palavras.

Suicidou-se por nada, como se suicidam todos os poetas.

Levava-a nos braços em direcção ao mar, acariciava-lhe os lábios, mas o desejo pertencia à equação dos pobres, pouco a pouco, libertava-se das garras do medo.

A morte deixou de pertencer ao destino, partiu e fugiu para longe. Eis, a eterna manhã enublada de hoje.

Sentia nos braços o peso da idade, a carne pertencia-lhe, entre duzentos e seis ossos desgovernados junto ao rio, mas depois, percebia que das suas palavras, muito pobre em crómio, os silêncios se travestiam de gargalhadas; hoje faço anos, segredava-lhe ao ouvido.

Anos?

Sim, faz anos que adormeci no banco de jardim, debaixo das mangueiras, em Luanda.

Um papagaio desgovernado, alicerçava-se-lhe nos doentios braços de menino traquina, como uma viagem sem retorno, à volta da ilha da saudade.

Todos nós, somos pássaros embalsamados nas mãos do destino.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 30/11/2021

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

A pedra magoada

 

Trazia no olhar

A tristeza das pedras magoadas da calçada,

Sabia que em cada despedida,

Em cada porta de entrada,

Existe a saída,

Existe a madrugada;

Na madrugada de amar.

 

Do silêncio adormecido,

Entre manhãs e correrias desproporcionadas,

Tinha sempre na algibeira um recibo,

E a fotografia das pedras magoadas.

 

Pedras da calçada; digo.

Quando sentia o desejo do amanhecer,

Distante, distante de se ver,

Tão distante de descrever,

Quando podia apenas escrever,

Sem perceber…

As palavras que sigo.

 

Trazia no olhar

A tristeza das pedras magoadas da calçada.

 

Trazia no olhar

A lágrima chorada,

O cheiro a mar,

O cheiro a pedra magoada.

 

Trazia no olhar

A tristeza das pedras magoadas da calçada,

Da manhã ao acordar,

Trazia na mão,

A lágrima de chorar,

Chorar a pedra magoada,

Magoada na solidão

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 29/11/2021

domingo, 28 de novembro de 2021

 

Um dia, pesará mais um silêncio do que a espada do desejo; esse dia chamar-se-á ontem. Todas as palavras serão em papel e, todas as flores de carne-e-osso. As marés pertencerão aos poetas pobres, como pertencem hoje, as latrinas da cidade.

Um dia, acordará a saudade, um dia, levantar-se-ão todos os tetraplégicos da cidade, que hoje se fazem transportar em máquinas voadoras, como fazem os pássaros, que um dia, pertencerão todos ao passado.

Um dia, as árvores morrerão de tédio, assassinadas pela ganância humana, nesse dia, os poetas deixarão de ter sombra, nesse dia, as crianças serão apenas bonecos metálicos, comandadas pela sombra.

Um dia, saberão que o ontem existiu como existirá a manhã sombreada de silêncios e venenos comestíveis; esse dia será o cansaço, a eterna despedida da madrugada.

Um dia, aparecerá sobre a mesa-de-cabeceira a espada da solidão travestida de menina das alianças, correndo debaixo das mangueiras, há muito extintas na saudade.

Um dia, todos os nomes serão de cartão, todas as pessoas serão pinceis voando em direcção ao mar; um dia, também pertencerei à saudade.

Um dia, pesará mais a lâmina do destino do que pesam hoje as sílabas da infância.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 28/11/2021

O enterro da gaivota saudade

 

Morreste-me,

Como morrem todos os pássaros sem nome,

Todos, todos os pássaros de verdade,

Morreste-me,

Como morreu a saudade,

Como morreu a fome.

 

Morreste-me,

Como morrem todas as palavras angustiadas,

Como morrem todos os poemas envenenados,

Morreste-me,

Morreste-me,

Como morrem as madrugadas,

Como morrem os soldados.

 

Morreste-me,

Gaivota saudade,

Morreste-me,

Como morrem todas as tardes de Verão,

Morreste-me,

Morreste-me como morre a saudade,

Como morre um pobre coração.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 28/11/2021

Eternamente tua

 

Sentamo-nos. Rezamos.

Dormia dentro dos lençóis desesperados da madrugada, sentia-se perfumado pelas palavras encontradas, noite adentro, quando da saída abrupta dela; magoavam-no, aquelas palavras poisadas em cima da mesa-de-cabeceira e, entre adeus parciais, eis o último, numa pensão caquéctica numa rua sem nome, na cidade dos mortos.

Abraçava-o, beijava-o, sabendo que seria o último beijo, sabendo que seria o último abraço.

Horas antes, tinha-lhe feito um poema num bar esquecido junto ao rio. O cheiro a sexo dos petroleiros em delírio, avizinhavam que pouco a pouca a saudade regressaria como regressam os soldados vindos da guerra; até aqui, só tinha pegado na espingarda sombria do desejo, como se de dentro das palavras, algumas ocas, habitassem pássaros e flores em papel adormecido.

Sentamo-nos e rezamos; percebia-se pelo cheiro dos petroleiros, que brevemente as palavras fluiriam como água salgada na ferida em revolução numa qualquer parte do corpo envenenado pelos cigarros embebidos em uísque barato e silêncios que falavam ao acordar.

Até ele, tinham chegado as canetas de tinta permanente pertencentes ao padrinho, avô e pai, com elas desenhou um coração em forma triangular, calculou a hipotenusa, obtendo a equação do desejo e, pela duração do beijo, percebeu que este, seria certamente o seu último encontro. As equações também morrem, como morrem todos os seres vivos.

Erguia-se a luz nos cortinados da manhã. Descerrando o olhar entre pedacinhos de suor, percebeu que ela já tinha partido há muito e, provavelmente até nunca tenha estado presente na sua vida. Ficou triste, deixou de comer as palavras que todas as manhãs o entretinham até à entrada do pequeno-almoço e, dizem, dizem que nunca mais foi o mesmo.

Agradecia-se pela liberdade alcançada, sentia-se pássaro com cabeça de poeta e na mão, passou a transportar um ramo de flores.

Sentamo-nos. Rezamos.

Dormia dentro dos lençóis desesperados da madrugada, sentia-se perfumado pelas palavras encontradas, noite adentro, na espelunca desarrumada onde habitava desde criança. Trazia na algibeira o manuscrito que ela tinha deixado sobre a mesinha-de-cabeceira, junto à máquina de escrever, também tinha deixado uma fotografia onde se podia ler: eternamente tua.

Na noite seguinte, decidiram por unanimidade, suicidarem o amor numa cidade sem nome, numa ponte sem nome, que sobrevoava um rio sem nome; hoje, sentamo-nos e rezamos.

E sentados ficaram para sempre.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 28/11/2021

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

A derivada da saudade

 

Quando o beijo

Se abraça à derivada

Da saudade,

Integra-se o desejo,

Liberta-se a madrugada…

E acorda a verdade.

Depois de integrado,

O desejo voa em direcção ao mar,

Senta-se no chão molhado,

Senta-se, senta-se para conversar.

E conversa com o menino,

E brinca com a sombra desse menino,

Depois, aparece a equação do silêncio desesperado,

Triste,

Triste e cansado;

Triste, triste como o sino.

Na igreja deitado,

Entre parêntesis e vossemecês e excelências…

Menino traquino,

Menino das ciências.

Quando o beijo

Se abraça à derivada

Da saudade,

E da saudade,

Ouvem-se as palavras da despedida.

São versos, são prosas, são pedaços sem medida…

São beijos, são esqueletos de lata,

Que correm, correm, correm para o mar;

Para o mar que mata.

E esta equação

É tão preguiçosa,

Senta-se junto ao mar,

Lê AL Berto, Pachecadas e afins…

Afins de matar.

Puxa da espingarda,

Fuma um cigarro envenenado,

Escreve na ardósia: abaixo a guarda,

Abaixo o enforcado.

Somos corpos enlatados,

Somos papeis descartáveis nesta pobre cidade,

Abaixo os enforcados,

Abaixo a maldade.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 22/11/2021

domingo, 21 de novembro de 2021

Apenas, apenas menina do mar

 

Oiço-te, madrugada em delírio,

Pedacinho de voz

Que voa junto ao mar.

Oiço-te, noite obscura da vaidade,

Oiço-te, sabendo que não consegues falar;

Por medo, as palavras da verdade.

Oiço-te, poema envenenado

Pelo desejo de um luar só meu,

Com cadeiras, uma mesa e, alguns livros de leitura.

Oiço-te, percebendo que amar

É mais do que amar.

Oiço-te, madrugada em delírio,

Pedacinho de voz

Que voa junto ao mar.

Oiço-te, primeiro beijo.

Oiço-te, o meu primeiro poema,

O meu primeiro texto.

Oiço-te, sabendo que dentro da tristeza,

Habita a canção da saudade,

E dentro da canção da saudade,

Habitam as tuas doces palavras;

Tem cuidado!

Não venhas tarde hoje!

E, peço-te,

Peço-te que quando me ouvires,

Te lembres do meu papagaio em papel,

Aquele tricolor, lembras-te?

Sim, aquele que deixamos, lá longe, junto à sanzala.

Oiço-te, madrugada em delírio,

Pedacinho de voz

Que voa junto ao mar,

Oiço-te, apenas,

Apenas menina do mar.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 21/11/2021

A equação de Deus

 

Era um sábado triste; ela tinha morrido.

Quando me perguntaram o que era a ausência e a saudade, respondi que ambas são uma equação matemática sem resolução.

Não gosto de conversar com psicólogos, respondi-lhe.

Aos poucos, a manhã levanta-se de um sono hibrido, parecendo um buraco nego esquecido no Universo. Entrei, sentei-me e, pedi um café. Enquanto saboreava o primeiro café de muitos, percebi que na TV falavam de uma imbecil qualquer, que eu desconhecia, por ignorância e, que tinha arrasado com um determinado vestido, numa determinada gala. Confesso; nada percebo de vestidos. Na percebo de galas.

Cansei-me da TV e apenas oiço rádio e tenho como companhia a TSF.

Era um sábado triste. Aos pouco percebi que todas as flores do meu jardim se preparavam para o passeio matinal de um sábado triste. Indiferente, puxei de um cigarro e sentei-me junto a elas. Comecei a desenhar no chão uns riscos estranhos, que só me lembro de os ter feito quando do falecimento do meu pai.

Esses riscos, esses desenhos, acompanham-me diariamente e, quando me perguntam o que é a ausência e a saudade, respondo que são uma equação matemática sem resolução; e claro, não gosto de conversar com psicólogos.

Despedia-se de mim o sono e todos os sonhos da minha infância. Estar vivo, era sem dúvida um presente de Deus; dizia-o a minha mãe, vezes sem conta e, acredito que ela tinha razão.

Imaginem, por hipótese, que Deus não é nada mais do que uma complexa equação matemática que vive, brinca e, dorme nas nossas mãos.

Imaginem, que essa mesma equação, um dia, vai ser descoberta e resolvida.

Parece que estou a ver essa equação, dormindo na minha secretária.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 21/11/2021

O menino dos calções sonhar

 

A manhã parecia a palavra acabada de suicidar o poeta que dormia sentado num seixo junto ao mar, junto ao mar ele escrevia, desenhava os números na sombra do sonho, porque ele sonhava, dormia pensando que voava, todas as tardes, sobre o mar,

Porque ele amava.

Amava as pedras, os seixos, onde o poeta dormia sestas intermináveis, tão longas como os  Invernos em Trás-os-Montes, infindáveis, azedos, dolorosos, até, quanto mais para uma criança.

Criança essa que acreditava que os sonhos eram pequíssimos cubos de vidro, que um adulto puxava com um pedaço de corda. Esticava a corda, por vezes partia e, o miúdo lá acordava acreditando que brincava com pássaros em papel.

A tarde em lágrimas, para logo depois sorrir e de tanta gargalhada, vomitar lágrimas de fogo, mais parecendo às vezes, o inferno pincelado de medo. Pequenos charcos se formavam no pavimento térreo da infância, um boneco estúpido saltitava de contente, tinha acabado de tomar banho e, com o calor que se fazia sentir, sempre estava mais refrescado. Eram assim os sonhos das manhãs que agora mesmo, acabam de suicidar o poeta.

Poeta suicidado, poema eterno.

O miúdo fazia-se transportar dentro de uns calções floridos, sandálias em couro e, umas vezes sim, outras vezes não, sobre os ombros uma camiseta em papel pardo. Nas traseiras da casa, junto ao galinheiro, habitava uma mangueira com mãos de flor e, todas as manhãs, a mangueira agarrava pela mão do menino e iam passear junto aos Coqueiros; os treinos de hóquei fascinavam-no, como fascinavam os pássaros em papel e, as árvores em algodão e, os aviões e, todos os barcos.

E de todos os barcos, um dia, com o mais pequeno deles, atravessou o Tejo e fugiu para a Calçada da Ajuda, sentou-se junto à margem e, começou a desenhar pequenos pares de sandálias para calçar todos os meninos, que como ele, sonhavam todas as noites, dentro do cubo de vidro, dentro do sonho dos adultos.

Certo dia, foi obrigado a trocar os calções por um par de calças, lavam-se durante a noite e secavam durante a noite, para manhã cedo rumar a uma escola velha e caquéctica, também foi obrigado a trocar as sandálias de couro por uma botas pesadíssimas que chiavam quando chovia; e nessa altura desconhecia o significado de peso, massa, gravidade. Mas eram pesadas.

O peso é uma coisa e, amassa, uma outra coisa e, quando lhe perguntavam se pesava mais um quilograma de feno ou um quilograma de ferro acabado de falecer, ele respondia que não sabia.

De todos os meninos que brincaram com o menino dos calções, apenas ele e os calções, habitam esta cidade que acaba de adormecer; da noite, todos os beijos são flores em papel, que tal como o menino dos calções, brincam a escrever cartas a todos os meninos que brincaram com ele.

 

 

 

 

Alijó, 21/11/2021

Francisco Luís Fontinha

sábado, 20 de novembro de 2021

O amor é um verso

 

Se me imagino sentado nas tuas coxas de incenso?

Imagino-o enquanto as palavras envenenadas pelo desejo,

Quando se suicida a tarde junto ao mar,

E oiço o silêncio de um beijo,

Um beijo de amar.

Pode ser também um beijo de beijar,

Pois no meu jardim,

Junto a mim,

Habitam flores em delírio,

Flores com sombra de Luar.

Se me imagino?

Imagino-me sentado

Nas sílabas imbecis do poema escrito por mim,

Quando na minha mão,

Números e equações de miséria,

Acreditam que as palavras de uma canção,

A minha canção,

São apenas nadas, artéria

Ensanguentada dentro desta cidade,

Dentro deste cubo de vidro martelado.

Sinto-me prisioneiro às árvores da madrugada,

Árvores habitadas por pássaros que infelizmente, não sabem nada,

Não sabem que as pedras amam outras pedras,

Que outras pedras podem amar as flores,

E estas, amar outras flores,

E outras flores, amarem outras manhãs,

Manhãs que amam outras noites,

Noites que amam as pedras:

Poemas meus, que não amam,

Desenhos que me amam,

E,

Palavras que me odeiam.

Que todos amam a Lua e o Luar,

Que a Lua não ama nada,

Ninguém,

Nem ao primeiro astronauta que lá poisou,

As flores também amam a Lua e o Luar,

Os pássaros amam a noite,

Porque dormem e sonham,

Porque o amor é um verso,

Um poema enorme,

Que vive junto ao mar.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 20/11/2021