terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Quando tudo é pouco


59,4 x 84,1– Francisco Luís Fontinha

Estarei eu Louco?
E o que importa é caminhar na rua
Quando acorda a manhã
E sorrir
E fingir que sou feliz

Acreditando que da noite descem vapores de iodo
E poisam sobre o meu corpo amarrotado pela solidão
O que importa mesmo é fingir
E sorrir

E fingir
Que sou louco
E fingir que tenho tudo
Quando tudo é pouco

Estarei eu Louco?

84,1 x 59,4 – Francisco Luís Fontinha

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

Prisão


59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

A loiça cinzenta da tarde

Balança o gaspacho sobre a loiça cinzenta da tarde, e oiço as vozes
- Despe-te Despe-te dizia-me ele antes de apagar o candeeiro a petróleo, antes de cerrar os cortinados, e eu despia-me e começava a dançar sobre a mesa rodeada de cinco tísicos a beberem cerveja,
E oiço as vozes que acordam junto à casa de banho sem janela, erguem-se e vêm ter comigo e sentam-se ao meu lado a olharem o gaspacho sobre a loiça cinzenta da tarde,
E eu pergunto-me Porquê gaspacho? Nunca estive no Alentejo, e minto, passei rumo ao Algarve numa noite de sonambulismo, sentei-me em Lisboa e quando acordo
- Estou cansada queixava-se a Miquelina enquanto fazia manobras perigosas a contornar as garrafas vazias sobre a mesa caquética, triste, morta de sono, e com uma filha para alimentar,
A marina de Faro, abro os olhos e meia dúzia de andantes da noite cumprimentam-me,
- Boa noite,
Boa noite coisa nenhuma e ao longe o cheiro dos pássaros prontos a levantar e senti-me como quando o meu pai me levava aos domingos a passear junto à pista do aeroporto, e eu imaginava sombras de nuvem em algodão doce no bico dos pássaros, e quando regressava a noite o gelado no Baleizão, sentava-me na esplanada e um malabarista de circo fazia-me rir,
- Boa noite E hoje ele deixou de sorrir, e hoje ela recorda-se da mãe quando entrava em casa de madrugada e tropeçava na algibeira dos sonhos, olhava-a Porquê mãe, e nunca lhe respondeu até que deixou de dançar sobre as mesas e evaporou-se no cais de Alcântara,
Lembro-me perfeitamente da minha mãe quando rompia de madrugada pelo casebre adentro e em passinhos de lã para não me acordar subia aos tropeços os degraus ingrimes até ao segundo andar, e nunca me deu um beijo, e nunca
- Olá filha,
Tive mãe porque hoje percebo que sou filha das mesas de um bar onde mulheres como a minha mãe dançavam até de manhã e quando chegavam a casa cansadas entravam e fingiam dormir agarradas a uma garrafa de uísque, e nunca
- Olá filha,
A marina de Faro, abro os olhos e meia dúzia de andantes da noite cumprimentam-me,
- Boa noite,
E olho a placa e leio Faro Fodi-me eu enquanto procurava os cigarros e questionava os andantes da noite se realmente o chão que eu pisava era Faro, e que sim e que se eu não queria ir beber umas cervejas
- Olá mãe,
E fui e até hoje nunca mais vi a minha mãe, e hoje ela recorda-se da filha quando entrava em casa de madrugada e tropeçava na algibeira dos sonhos, olhava-a Porquê filha, e nunca lhe respondi até que deixei de dançar sobre as mesas e evaporei-me no cais de Alcântara,
E eu despia-me e ele apagava o candeeiro a petróleo e cerrava os cortinados e sobre uma mesa com uma filha para alimentar dançava e dançava e dançava e quando acordava a manhã, não cais de Alcântara, não Faro nem marina, não os pássaros com nuvem de algodão doce no bico, não os andantes da noite,
A minha filha que me olhava e me perguntava Porquê mãe,
E nunca, e nunca consegui responder-lhe,
- Olá filha,
Balança o gaspacho sobre a loiça cinzenta da tarde, e oiço as vozes
- Olá mãe,
E oiço as vozes que acordam junto à casa de banho sem janela…

(texto de ficção)

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012


59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

O amor de mim

Cansado o amor de mim
De mim finge a noite acordar
Cansado eu de sonhar
Sonhos cansados de amar

Cansado o amor de mim
De mim fingem as palavras escrever
Cansado eu de viver
Viver sem adormecer

Cansado o amor de mim
De mim os dias deitados na almofada da dor
Cansado de ser um impostor
Fingindo que vivo o amor

domingo, 29 de janeiro de 2012


59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

Literários, Orgasmos Literários…

O senhor Todo Jorge

O poema acorda pela manhã sem perceber que antes de acordar foi destruído pelo senhor Todo Jorge que durante a sesta entrou dentro da cabeça do escritor,
- O poema é uma merda tal como a minha vida Lamenta-se o escritor enquanto sentado sobre o xisto da tarde, os cigarros evaporam-se entre os lençóis invisíveis que escondem o desejo e o desejo é uma farsa embrulhada em pedacinhos de mangueira,
O poema destrói-me por dentro e por fora As palavras do poeta quando olha o rio e acaba de morrer antes de chegar ao mar, os barcos de Luanda também morreram e os machimbombos sinto-os na algibeira do avô Domingos antes de regressar a casa,
-O negro dos meus quadros
A manhã que se dissipa sobre a Bedford amarela poisada junto ao portão de entrada,
- A noite entra nos meus quadros como se fosse uma tarde em Belém solitariamente sentado numa esplanada a olhar o rio e sempre à espera que um paquete vindo do outro lado da rua me levasse, peço um café e uma bola de Berlim, como a bola e sinto a chávena mover-se até desaparecer,
Oiço o senhor Todo Jorge dentro da minha cabeça, oiço a morte de mão dada com deus, oiço os pássaros poisados na janela da claraboia sem que do relógio de pulso venha até mim a claridade da tarde, oiço-te e amo-te,
O poema,
O teu corpo nas minhas mãos antes de eu tombar e evaporar-me, o teu corpo embrulhado no loiro cabelo da manhã e tu,
- Bom dia amor,
E eu Bom dia amor,
E o poema,
- O poema nas mãos do senhor Todo Jorge,
E o poema precisa de mim e eu preciso do poema,
- Só sou poema porque tu me escreves enquanto dormes,
E se eu deixar de te escrever? E se eu assassinar as tuas palavras e deita-las na algibeira do avô Domingos juntamente com os machimbombos?
(estou farto deste texto, estou farto destas palavras)
- Morrem os machimbombos?
E das ruas de Luanda, e das ruas de Luanda deus sentado numa cadeira de praia junto à baía e finalmente percebo que não gosta de mim, e finalmente percebo que nunca gostou de mim, porque se gostasse
- O poema nas mãos do senhor Todo Jorge,
Mas sei que não gosta, as manhãs de inverno deitado no chão sem cama, sem nada, os vidros todos estilhaçados, a fome entrava pela porta de entrada e saia pela janela, eu vinha à varanda,
- Porquê mãe,
Amo-te sussurra-me o poema, amo-te quando te escrevo Respondo-lhe, amo-te nas tardes de verão junto ao tejo e tu olhas-me como se eu fosse uma candeia acesa na noite solitária de dezembro, e recordo-me que comecei a odiar o natal quando em regresso de Carvalhais o pai natal desprezou-me, visitou todas as crianças do bairro do hospital,
- O pai natal passou em Carvalhais, E eu perguntava-me Como este filho da puta sabe se estou em Carvalhais ou em Alijó, e não sabia, e nunca soube,
Tenho medo mãe,
E eu amo-te e eu sempre te amei, Porquê pai natal?
O poema acorda pela manhã sem perceber que antes de acordar foi destruído pelo senhor Todo Jorge que durante a sesta entrou dentro da cabeça do escritor,
O escritor ama-a mas será que ela está disponível para amar o escritor? Pergunto-me todas as noites antes de adormecer, e não precisas de fingir poema, o senhor Todo Jorge recordar-me-á todas as rimas, todas as dores, todos os sofrimentos,
- Morrem os machimbombos?
E morreram os machimbombos e morreram todos os barcos de Luanda, e hoje, e hoje apenas o teu sorriso plantado na minha secretária que me olha e me recorda,
- Eu amo-te,
E eu percebi que me amavas quando te deste conta que eu não passava de um miserável, entalado ente o setembro de Luanda e o inverno de Alijó,
- Tenho medo mãe,
Do mar do Mussulo.

(texto de ficção)

sábado, 28 de janeiro de 2012


84,1 x 59,4 – Francisco Luís Fontinha

Lápide

Amar uma pedra
Que da poeira se constrói a noite
Não uma pedra qualquer
Não uma noite igual a tantas outras noites
Eu só
Amar uma pedra
Onde vão escrever as minhas palavras
Numa noite sem estrelas

84,1 x 59,4 – Francisco Luís Fontinha

Fim da viagem

Todas as viagens têm um fim, partimos de um ponto A para chegarmos a um ponto B, mas quando percebemos que o ponto B não existe, nada a fazer, porque só um louco continua a caminhar para um destino inexistente.
E ainda não estou louco, acredito eu.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012


59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha
Desceste as escadas e atravessaste a porta da madrugada, não corri atrás de ti, adormeci junto à janela sem olhar para o rio, e quando acordei procurei o teu perfume na saliva da noite, e a noite tinha desaparecido, e tudo desapareceu…

As luzes da noite

Desliga-se o meu corpo
Das luzes da noite
Cessam todas as palavras suspensas em mim
Quando à janela do meu olhar sorri a tempestade
O mar jamais voltará a ancorar nos meus braços
E todos os rios desistiram de correr para o mar
E todos os mares morreram dentro de um sonho
Desliga-se o meu corpo
Das luzes da noite
E caiem pedacinhos de solidão
Do teto do meu quarto
E percebo que estou só

E percebo que a vida deixou de sorrir
E percebo que dentro de mim apenas silêncios
À beira de um cais

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Rodrigues Fontinha

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

O silêncio da vida

A vida é um silêncio
Que caminha entre a alvorada
A vida não vale nada
A vida é um silêncio suspensa numa roda dentada
Em aço inoxidável
Entre as pernas de um mendigo
Deitado na calçada
Ai a vida saudável
Ai a merda da minha vida miserável
A vida é boa
Quando na cama deitada
Despida e sem saia e agarrada…
Às ruas de lisboa
E entra na madrugada
E desce a madragoa
Embriagada
A vida é um silêncio
Que caminha entre a alvorada
Sem pressa sem nada

TODOS DIAS TESO – TDT

Toda a gente muito aflita com a porcaria do TDT, e eu, e eu que há muito tempo disponho de TDT confesso estar farto, confesso… não confesso,
Porque para mim TDT quer dizer TODOS DIAS TESO,
Portanto meus caros leitores, não tenham pressa, porque o TDT entra-vos em casa, e depois, e despois para sair é um cabo dos trabalhos…

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012


59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

Regressar

Toda a minha vida sonhos,
Sonhos e alguns impossíveis de realizar, mas há um sonho que nunca deixei de acreditar, há um sonho que não me deixou morrer,
Não sei se é doença mas a verdade é que sou um inadaptado, e nunca, nunca consegui superar a separação de Luanda e vivi sempre emerso em angustia e dor,
Dentro de mim existiu sempre algo a puxar-me e sempre acreditei em regressar à terra onde nasci, e acredito que vou conseguir,
Ter a nacionalidade angolana e regressar.

Algibeira da morte

Entras-me no sangue
E caminhas nos túneis em plástico que dormem sobre a mesa-de-cabeceira
Entras e extingues-te como uma andorinha
Ao terminar a primavera

Desces cansaço embebido em drageias de néon
E um rio de sémen na algibeira da morte
Agarra-se aos meus braços e leva-os para a montanha
Povoada de ossos

É noite
E entras-me no sangue
E caminhas…

Fumo os últimos cigarros
No corredor longínquo
Onde passeiam petroleiros e plátanos desiludidos com a vida
E o que farei depois de terminarem os cigarros?
E quando a montanha deixar de ser a montanha…
O que farei?

É noite
E entras-me no sangue
E caminhas…
E todos os componentes metálicos do meu corpo
Abraçados à ferrugem
O que farei quando deixar de ter cigarros?

E quando a montanha deixar de ser a montanha?
O que farei dentro da montanha
Com ossos
Sem árvores
Sem cigarros…
Na algibeira da morte

Fumar no interior do automóvel

Proibição de fumar no interior do nosso próprio automóvel, e eu que sou doente (viciado em cigarros) não posso usufruir de um prazer, de outra coisa qualquer para os outros.
Onde está a legitimidade de os outros condicionarem aquilo que faço ou não faço dentro do que é meu? E qualquer dia nem dentro da minha própria casa posso fumar, e se há pessoas que não suportam o cheiro do cigarro, também eu não suporto o aroma de perfumes, porque sou alérgico, e mesmo assim não posso proibir aqueles que os usam de os não usar.
Proibição de quecas dentro do automóvel? Provavelmente qualquer dia um parvalhão qualquer vai dizer que é maléfico para a coluna, ou que sexo dentro de casa só uma vez por mês, e portanto este país está a tornar-se doente mentalmente.
Sou ateu; Qual a minha legitimidade de obrigar aqueles que acreditam em deus em não acreditar, só porque eu não acredito?
Pois eu continuarei a fazer aquilo que sempre fiz, quer seja dentro do meu automóvel ou dentro de casa.
O cigarro provoca o cancro. E o que têm vocês a ver se eu morrer de cancro? Vou dar despesa ao SNS, mas eu em cada maço de cigarros já estou a pagar para o SNS. E os alcoólicos? Não dão despesa ao SNS?
Criminalidade por problemas de álcool tenho conhecimento, por fumar cigarros penso não existirem…

Espelho


59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

E hoje não barcos

O barco despede-se do término da tarde, desce vagarosamente as portadas do postigo com acesso à noite e em passo apressado deixa a Ajuda embrulhada em estrelas e mergulha no Tejo,
- Nos meus sonhos aparece sempre um barco Confessa-me ele enquanto tomamos café na esplanada e que quando menino, aos domingos, a religiosa visita ao porto de Luanda,
Fascinavam-me aqueles monstros poisados sobre a água, às vezes recebia por parte de um deles um sorriso ou um simples acenar de bracinhos,
- Deslarga Pai
A mão do meu pai e com a minha mãozinha de caule de malmequer acenava e sorria e quase sempre ficava a chorar porque não entendia naquela idade a solidão dos barcos,
- Pai os barcos sonham? E que sim e que um dia entravam nos meus sonhos,
E hoje não porto de Luanda, e hoje não barcos, e hoje não domingos
- Deslarga Pai
Não domingos às voltas da Maria da Fonte,
A mão dele soltava-se como quando numa manhã de setembro um paquete soltou-se do porto de Luanda, e de saluço em saluço, e de rouquidão em rouquidão, começou a entrar mar adentro, e deixei de ver a cidade
- Pai os barcos sonham?
E deixei de ver a cidade como qualquer dia vou deixar de ver a mão dele, e em vez de barcos nos meus sonhos, uma tela negra a despedir-se do término da tarde, desce vagarosamente as portadas do postigo com acesso à noite e em passo apressado deixa a Ajuda embrulhada em estrelas e mergulha no Tejo.

84,1 x 59,4 – Francisco Luís Fontinha

Ai o amor

Uma duas três… quatro gaivotas suspensas no teto da minha sala,
- O quê? Estás bêbado sussurra-me uma voz de papagaio que julgo vir do cortinado da janela da sala sem vista para o mar,
E pergunto-me o que fazem quatro gaivotas suspensas no teto da minha sala e ninguém e ninguém responde, como sempre, nunca ninguém responde às minhas inquietações,
- Precisas de um psiquiatra,
E eu preciso é de uma psicóloga que perceba
- Gaivotas Francisco?
Que sou perfeitamente normal como os plátanos do jardim, tive sonhos, adormeço e acordo, amo,
- Ai o amor…
E fui criança e fui menino e brinquei de papagaio de papel na mão à volta das mangueiras,
Uma caixa de sapatos com paredes de vidro e uma tampa encarnada de onde descem beijos amestrados e tartarugas marrecas, ai o amor… o amor é fodido segundo Miguel Esteves Cardoso, para mim, o amor é uma caixa de sapatos cheia de neve que há muitos anos um menino parvalhão revolveu atulhar até ao teto encarnado,
- Precisas de uma psicóloga meu rapaz,
E preciso
- Gaivotas Francisco?
Preciso urgentemente de um médico legista que faça do meu corpo a praia do Mussulo, preciso urgentemente de um médico legista que desenhe barcos e petroleiros e putas em Cais de Sodré no meu corpo, preciso
- Entro no Texas e as putas amam-me Sempre me amaram as putas da noite e os paneleiros dos jardins de Belém,
Preciso Eu preciso de fazer alguma coisa para que a minha vida deixe de ser uma merda, quarenta e seis anos, desempregado, quase sem abrigo, sem futuro segundo a minha mãezinha,
- E o que será de ti desgraçado depois de eu morrer,
Entro no Texas e as putas amam-me e as putas gostam de poesia, sentava-me e fazia versos nos lábios de meninas adolescentes,
- Ai o amor…
O Miguel que é fodido e eu uma caixa de sapatos com teto encarnado,
- E preciso urgentemente de uma psicóloga, preciso de uma psicóloga que analise os meus desenhos, E desde que uma me mandou desenhar uma árvores e como resposta e como resposta
Que eu estava apaixonado
Está loucamente apaixonado, foda-se pensei eu, o que tem o desenho de uma árvore para estar apaixonado?,
E estava e desde essa data fiquei com raiva aos psicólogos porque através de desenhos conseguem desvendar os nossos segredos,
Quatro gaivotas suspensas no teto da minha sala, Porquê Caralho?,
- O quê? Estás bêbado sussurra-me uma voz de papagaio que julgo vir do cortinado da janela da sala sem vista para o mar, e pareço a Cristina da Comissão das lágrimas de António Lobo Antunes com as malditas vozes na cabeça,
- Porquê Cristina? Questiona-me o Lobo Antunes e confesso que não sei, e confesso que nunca vivi em Luanda, e confesso que nunca vivi na Vila Alice nem no Bairro Madame Berman, tudo mentira senhor António Lobo Antunes, tudo mentira,
Tão pouco sei onde fica Angola,
- Mas estas vozes,
E preciso urgentemente de um médico legista que do meu corpo construa um papagaio de papel para brincar nos céus de Luanda,
- Porquê Cristina? Questiona-me o Lobo Antunes e confesso que não sei, Não sei… mas que estão quatro gaivotas suspensas no teto da minha sala lá isso estão,
Estás bêbado sussurra-me uma voz de papagaio que julgo vir do cortinado da janela da sala sem vista para o mar, e as putas do Texas amavam-me, e os barcos do Tejo amavam-me, e as gaivotas do Tejo amavam-me, e os paneleiros de Belém
- Verdade senhor António Lobo Antunes… por favor não me torture mais, verdade que nunca vivi em Luanda nem na Vila Alice nem no Bairro Madame Berman, juro por deus que nunca acreditei,
Que as putas do Texas me amassem, que os barcos do Tejo me amassem, que as gaivotas me amassem, porque nunca fui amado e porque nunca vivi em Luanda,
- Ai Cristina As malditas vozes,
E quer lá saber o António Lobo Antunes de um gajo que acredita que tem quatro gaivotas suspensas no teto da sala, e quer lá saber o António Lobo Antunes de um gajo que acredita ter vivido em Luanda, que diz ter brincado na Vila Alice e no Bairro Madame Berman,
. Tudo mentira Cristina, Tudo mentira,
E quer lá saber o António Lobo Antunes de um gajo que diz
- Preciso urgentemente de um médico legista,
Ter brincado no mar do Mussulo,
O Miguel que é fodido e eu que é uma caixa de sapatos com teto encarnado, e estranho, nunca perguntei ao António Lobo Antunes o que é para ele o amor…
- O que é para ti o amor Cristina O Lobo Antunes enquanto folheia a comissão das lágrimas.
Ai o amor, quarenta e seis anos, desempregado e sem futuro e uma psicóloga que afirma que eu estou loucamente apaixonado… porque desenhei a puta de uma árvores sentada no banquinho do Texas e nos lábios de adolescentes escrevi versos que nunca ninguém leu, versos que ninguém lê, e que os paneleiros dos jardins de Belém adoravam em noites de lua cheia.
O que é para ti o amor António?

(texto de ficção)

Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

A carta de Amor

Há coisas que nunca devem ser feitas na vida,
Não me refiro à noite em que me passei da cabeça e queimei a grande parte dos meus desenhos e textos e poemas numa lareira do Bairro do Hospital quando tinha vinte e poucos anos e mais tarde percebi que Nikolai Gógol tinha feito o mesmo com “Almas mortas”,
Mas refiro-me a uma carta de amor E já sinto nas vossas cabecinhas a pergunta pertinente Porquê uma carta de amor?,
Porque numa noite de copos na Ajuda onde seis marialvas bebiam e comiam, incluindo eu, um dos presentes, bom rapaz e muito honesto e muito simples e coitado… que carregava nos ombros uma história de abandono por parte da mãe e um pai todos os dias embriagado com uma ninhada de irmãos, e de instrução quase nenhuma porque abandonou a primária nos primeiros anos para ganhar para a casa
- Porquê uma carta de amor?,
Para ganhar para a casa as letras para ele pareciam os carris da linha férrea Pinhão-Régua em assobios dentro dos socalcos do Douro, e com ele guardava religiosamente uma carta da namorada que tinha chegado nessa tarde, e pensava ele que dos cinco eu era o que tinha mais juízo, e juro que quando me olhava ao espelho acreditava ser um menino de igreja que depois da solene deixou de frequentar, não incluindo as faltas à catequese da Benigna, mas adiante, pede-me
- Podes ler-me esta carta se fazes favor E eu cá para mim Já te lixaste,
Pede-me e já a carta poisava nos seios da minha mão, começo silenciosamente a despi-la e aos poucos pela janela do envelope começam a acordar corações desenhados a marcador encarnado e a palavra Amo-te a todo o comprimento do lençol e milhões de beijos,
- Na Ajuda onde seis marialvas bebiam e comiam,
E amor eterno até que a morte Até que a morte nos separe,
- Então Fontinha o que diz?,
Respondo-lhe que era melhor ele não saber, Porque eu precisava de tempo para inventar uma estória, e fazendo o papel de leitor de uma carta de amor disse-lhe os maiores disparates incluindo o fim do namoro e ao cair do pano um par de cornos, e claro que nada daquilo existia na carta, mas ele acreditou,
- Não chores pá Gajas há muitas Dizia-lhe um dos marialvas,
E chorava e chorava e chorava,
E foi muito difícil convencê-lo que tudo não passava de uma brincadeira de cinco gajos que bebiam e comiam… e estavam fartos das noites da Ajuda,
- Então Fontinha o que diz?,
Que há coisas que nunca devem ser feitas na vida, uma delas, gozar com os sentimentos dos outros…


Francisco Luís Fontinha

23 de janeiro

E que pegasses na minha mão e me levasses a ver o mar e com os teus lábios escrevesses nos meus lábios
- Amo-te e estou apaixonada por ti,
Escrevesses nos meus lábios o encanto da noite quando todas as luzes dormem, quando todos os barcos sonham, quando todos os pássaros voam,
E era tudo o que eu queria ouvir de ti, Hoje.

23/01/2012
Francisco

domingo, 22 de janeiro de 2012

Versos a um amor impossível

Um dia enquanto urinava num urinol público de Belém, junto à esplanada onde me estacionava nos finais de tarde a olhar o tejo, a comer bolas de Berlim, a beber café e água sem gás, a ler e a escrever versos a um amor impossível (porque nos finais dos anos 80 acreditava existirem amores impossíveis, e com o andamento da roda da vida percebi que a impossibilidade só existe na nossa cabeça), lembro-me como se fosse hoje, na altura andava a ler “Doutor Jivago” de Boris Pasternak, prémio nobel da literatura em 1958 e impossibilitado de o receber por razões políticas, e tal como os amores impossíveis, as coisas mudam, e hoje seria diferente,
E enquanto apreciava o meu rosto impresso nos azulejos da casa de banho pública de Belém percebo pela sombra que alguém ao meu lado direito olhava o meu coiso, e claro que na altura era normal por aqueles lados, mas eu ficava sempre chateado porque a jogar ao montinho na arrecadação do Moreira não tinha a mesma sorte, isto é, de seis montes eu parvalhão escolhia sempre o monte de menor valor, e o Moreira
- Já te fodeste,
E se eu tivesse tanta sorte ao montinho como tinha para ser atraído por panascas, acreditem que hoje tinha, não diria um mercedes, mas que hoje tinha uma lambreta, e não é mentira nenhuma,
E o Moreira sempre com uma sorte do caraças a arrebanhar moedas e a assar chouriços roubados na cozinha, e quando numa noite apagava as labaredas da cama porque o álcool onde púnhamos o chouriço a laminar saltou e ficou-se a dormir como um anjo barrigudo Diz-me
- Sorte ao jogo Azar ao amor,
Diz-me E eu fodido sem moedas e eu fodido com um gajo de meia-idade a olha para o meu coiso que de tanto envergonhado começou a diminuir até desaparecer no tejo,
E eu na altura confesso Nem sorte ao jogo Nem sorte com amores impossíveis Mas tinha uma pontaria para ser assediado por panascas, e procurei e procurei e procurei…
- Coiso nenhum E só mais tarde percebi que já andava em banhos no tejo, e quando olho o senhor de meia-idade, feio e sem dentes, com óculos de fundo de garrafa e ainda por cima com bigode de piaçaba de desagarrar merda das sanitas Confesso que me assustei e não condeno o meu coiso por ter dado de frosques e ir a banhos para o tejo,
E hoje podia ter no mínimo uma lambreta
- Já te fodeste,
No mínimo uma lambreta, mas quis o destino que não, e hoje desse tempo tenho meia dúzia de fotografias e três caixas de cartão com versos a um amor impossível, escritos numa esplanada de Belém junto a uma casa de banho pública onde numa tarde de agosto um senhor de meia-idade engraçou com o meu coiso,
- Sorte ao jogo Azar ao amor,
E os chouriços até que se comiam embrulhados em cerveja.

(texto de ficção, inspirado na minha passagem por Belém – Maio de 87 / Agosto de 88)

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

O jeitoso engomado

O jeitoso engomado encosta-se ao parapeito do vento, pesca um cigarro entre os destroços da algibeira e acende-o com a lente dos óculos, a princípio gotinhas de fumo dispersam-se pelas marés ruivas da tarde, depois, gargalhadas de fumo contra os uivos fabricados no sótão do prédio em frente,
- Ai Ui Foi tão bom,
O cigarro incha e cresce na boca dele como se fosse uma barra metálica ou um pénis argamassado entre o beiral e a clavícula do mendigo sentado no passeio a pedir esmola queixando-se que a reforma não chega para viver, o pénis furiosíssimo
- Não chega? E eu quase sempre teso,
Furiosíssima a clavícula pendura-se na cabeça do mendigo e o jeitoso com voz de malmequer,
- A menina dança?
E que não Não sei dançar responde-lhe a menina,
- Ai Ui Foi tão bom,
O jeitoso engomado pega nos restos mortais do cigarro e entrega-os ao senhor proprietário da funerária onde num pedaço de cartão pendurado sobre a entrada podia ler-se “FASEMOS INTERROS SEM FATORA”, combinam o preço e o jeitoso engomado ao sair do estabelecimento comercial manda foder o mendigo e diz para a clavícula
- Foi tão bom,
E diz para a clavícula Hoje foi um dia de merda, e em passos clandestinos desce a calçada em direção ao rio.

(texto de ficção)

sábado, 21 de janeiro de 2012

Cachimbos



Tenho cachimbos
Para dar e vender
E pena minha
Não servirem os cachimbos para comer

Tenho cachimbos em madeira
E de espuma do mar
E se os cachimbos dessem para comer
Não precisava eu de mendigar

Tenho cachimbos
Para fumar
E cachimbos para acariciar
Para dar e vender
E pena minha
Não servirem os cachimbos para comer

Hoje

Hoje
Sou um velho onde cessaram os sonhos
Hoje
Sou um velho que deixou de acreditar
E ter esperança
Hoje
Sou um velho que inventa oceanos
E desenha barcos de papel e petroleiros de papel
Nas asas de gaivotas invisíveis
E hoje esqueço-me onde nasci
Tão pouco sei se nasci
Mas lembro-me do mar pintado nas minhas costas
Quando me suspendia no pescoço da minha mãe
Hoje
Imagino um musseque perdido
E meninos de calções presos a papagaios de papel
E triciclos em viagem a circularem
Debaixo das mangueiras

Hoje
Sou um velho onde cessaram os sonhos
Hoje
Sou um velho que deixou de acreditar

Hoje
Olho os barcos de papel
Hoje
Olho os petroleiros de papel
Hoje
Eu e eles
Velhos
Sentados à fogueira a sacudir a ferrugem dos ombros

Francisco Luís Fontinha

Post-scriptum

Meu querido Luiz Pacheco,
Quando me referi que o meu pedido de rendimento social de inserção foi indeferido, por lapso, não te disse que apenas foram necessários três dias para o indeferimento,
- Três dias Pá? Foda-se os gajos em Vila Rela trabalham bem,
E que a minha inscrição no Centro de Emprego é uma treta,
- Emigra Pá,
Como vês meu querido Literalmente estou fodido, desempregado e sem subsídio algum, e apetece-me perguntar-te o que tens a dizer às novas gerações mas quase que adivinho a tua resposta,
- Puta que os pariu,
Nem mais meu querido Puta que os pariu.

Um abraço,
Francisco

Esperança e Acreditar


59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Carta a Luiz Pacheco


Meu querido Luiz Pacheco,
Literalmente estou fodido, desempregado e sem subsídio algum, esforço-me e não encontro trabalho, recorri ao rendimento social de inserção e foi indeferido, pedi a isenção de pagamento de taxa moderadora e quase de certeza também vai ser indeferido, já pensei ir limpar latrinas mas devido à crise duvido que ainda exista merda para limpar porque de tanto apertarem o cinto os portugueses aos poucos deixam de defecar,
Não comem pá,
Já pensei fazer como o teu mangala que passeava pelas ruas de Braga e fazer-me à vida nos jardins de Belém mas nem para isso tenho jeito, o meu amigo doutor psiquiatra receita-me injeções e tenho de pagar um euro para me picarem o rabo,
- Pede supositórios Pá… E ainda consolas o rabinho,
Isto é se for na data marcada porque se for fora do agendamento são quatro euros,
- Estás mesmo fodido Pá,
Pois estou Meu querido,
E pronto Não sei o que fazer à puta da vida, ainda tenho os teus livros para ler e do António Lobo Antunes e do Saramago e do Cesariny e do AL Berto e do Milan Kundera e do Proust e do Gogol e do Tolstoi e do Dostoevsky, isto é, reler, porque já os li mas tal como o melhoral que nem faz bem nem faz mal, certamente voltar a lê-los também
- Tens vinte paus Pá?,
Também a noite tem algo de silencioso quando vocês entram em mim e particularmente fico fodido quando o AL Berto diz que se gritar mar em voz alta o mar entra pela janela, e abro a puta janela e o caralho do mar onde está?,
Não comem pá,
De tanto apertarem o cinto deixaram de defecar,
- Tens vinte paus Pá?,
Paus já eram e agora só existem aéreos e até ao final do mês só tenho cinquenta e cinco cêntimos,
- Essa merda dá para quê Pá?,
Para nada,
- Então estás Literalmente fodido Pá.

(texto de inspiração pessoal e dedicado ao Grande Luiz Pacheco; Lisboa, 7 de Maio de 1925 – Montijo, 5 de Janeiro de 2008)

Francisco Luís Fontinha

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

Por todos não custa nada


Coitadinho do senhor… E que não lhe chegam 12.000€ para as despesas do mês, que direi eu, desempregado e sem subsídio algum…

Em todas as madrugadas

Em todas as madrugadas
Vem até mim a ausência
Em todas as madrugadas
Descem até mim as estrelas
E as cordas de nylon suspensas em plátanos magoados
Balançam como corpos despedaçados pelo vento

Em todas as madrugadas
Procuro o teu corpo na algibeira dos lençóis
E não te encontro

Em todas as madrugadas
Uma janela se encerra
E uma sombra esconde o mar no estomago dos rochedos

Em todas as madrugadas
Vem até mim a ausência
E uma abelha sem asas
Poisa na minha mão
E dos corpos despedaçados pelo vento
Crescem malmequeres desgovernados nas manhãs de inverno

Hosana nas alturas

A evolução do homem

Cinco


Cinco Tintos se faz favor,
…Cheios!

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

O vendedor de sonhos

A vida tem destas coisas e tanto estamos na “merda” como repentinamente pertencemos ao estrelato do céu noturno de inverno, e pensava eu que terminaria os meus dias como mendigo dos tempos modernos e que engando eu estava,
- É preciso acreditar e ter esperança,
E eu perguntava-me Acreditar em quê ou em quem?, E eu perguntava-me Ter esperança em quem ou em quê? Que a noite se vestisse de dia e o dia se travestisse de noite? Que deus descesse à terra e se ajoelhasse a meus pés e me pedisse perdão? Ou que em vez de termos um túnel encravado na serra do marão tivéssemos o mar em Trás-os-Montes com gaivotas com traineiras e petroleiros e ao final do dia o pôr-do-sol?
- Nem acredito e muito menos tenho esperança murmurava eu todas as noites antes de adormecer,
E hoje precisamente enquanto tomava café pago por um dos meus amigos porreiros li na penúltima página do jornal
- Amor, Possibilidade de encontrar um grande amor. Trabalho, faça aquilo que melhor sabe fazer.,
E por grande amor entendo talvez alguém com cento e oitenta centímetros ou duzentos centímetros de altura e com cerca de cem quilogramas de peso, e nada, nada Acredite em mim Rigorosamente nada, e as únicas coisas grandes que vi hoje resumem-se a três cisternas carregadas de vinho, Vinho?, Sim vinho
- É preciso acreditar e ter esperança,
E do bom,
E dei-me conta hoje que a melhor coisa que sei fazer é sonhar e de mendigo dos tempos modernos vou começar a vender sonhos pelas ruas da cidade, e tenho-os desde cinco euros até vinte e cinco euros e de várias cores e sabores,
- É preciso acreditar e ter esperança,
E hoje também decidi mudar de marca de cigarros, do SG Filtro vou começar a fumar Tinto, é mais barato e não prejudica os pulmões e ainda ganho uma moca inteiramente grátis,
Sim vinho
Porque nos tempos que correm só com uma grande moca é que se consegue sobreviver (acreditar e ter esperança) e se for do bom,
E do bom,
E assim, senhoras e senhores, e assim se me virem pelas ruas da cidade com uma mala suspensa no braço e recheada de sonhos, não tenham medo, aproximem-se e comprem-me um,
Obrigadinho e que se faz tarde e antes que chegue a ASAE vou dar de frosques e fumar um Tinto,
Do bom.

59,4 x 84.1 – Francisco Luís Fontinha

59,4 x 84.1 – Francisco Luís Fontinha

59,4 x 84.1 – Francisco Luís Fontinha

Cansaço da vida

Canso-me da vida
Canso-me dos alicerces de prédios em ruina
E de vidas descruzadas em manhãs submersas
Em olhares de maré

Em gritos de revolta
Canso-me das ruas e dos relógios de pulso
Sempre a recordarem-me que envelheço
E me transformo a cada segundo
Numa sombra mortuária da noite escura
Da noite de ausências

Canso-me do sonambulismo dos meus olhos
Presos a uma vedação de arame invisível
Com vista para o mar
Sem gaivotas
E barcos enferrujados
Made in China

Canso-me das árvores
Que escondem poemas defecados
Numa sombra imaginária

Canso-me do rio
E quando o olho
Rio nenhum
Milhões de cadáveres metálicos
Abraçados a beijos de tungsténio
E sexos de aço inoxidável

À procura de um porto de abrigo

Canso-me das minhas mãos embrulhadas em tinta
E que procuram na tela seios encarnados
E púbis descarnados junto ao pôr-do-sol
Antes de cair a noite

Quando deixo de me cansar

Canso-me da vida
(e se a vida se cansa de mim, paciência, problema dela)
Canso-me das palavras que escrevo
E que não fazem sentido

Quando deixo de me cansar
Antes de cair a noite
E entra a noite nos meus miseráveis aposentos
E eu cansado
E eu farto
E eu

Nunca me canso de olhar
O menino de pulseira no bracinho
E crucifixo ao peito

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012


59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

Noite sobre a cidade


84,1 x 59,4 – Francisco Luís Fontinha

Desce a noite sobre a cidade
E os homens e os pássaros e as árvores e as ruas
E o rio
E o desejo e a saudade…

Extinguem-se nas asas de um sorriso

Tudo morre
E das cinzas renasce um fio azul embrulhado num abraço
E um papagaio de papel de muitas cores
Voa nas lágrimas de um menino

Extinguem-se nas asas de um sorriso
As coisas boas da vida

18 de janeiro


59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

O mendigo dos tempos modernos

Sou um mendigo dos tempos modernos,
Culto e inteligente e prostituo-me intelectualmente, sento-me à mesa do café e converso de politica e converso de economia e que os mercados são uma merda e que se fodam todos, falo aos meus amigos de literatura e poesia e pintura, já fumei toda a merda que há para fumar e leio muito, e li também muita merda, e leio muito porque estupidamente o meu pai quando eu menino dizia-me que ler era muito importante, mas o meu pai esqueceu-se ou não previu a chegada do vinte e cinco de abril e que uma cambada se ia instalar pelas árvores dos jardins, meus deus, tantos macacos em tão poucas árvores, e assim atualmente não importa se li muito ou se tenho habilitações,
Importam as árvores,
Falo aos meus amigos de António Lobo Antunes, e meus deus, o que seria de mim sem os livros dele, falo aos meus amigos de Saramago Cesariny AL Berto Luís Pacheco Milan Kundera Proust Gogol Tolstoi Dostoevsky, falo aos meus amigos de literatura Cubana, e gosto e adoro, falo aos meus amigos do Big Bang e da partícula de deus e de hipercubos,
Mas continuo a ser um mendigo dos tempos modernos que pediu a isenção de taxa moderadora, um mendigo dos tempos modernos que depois da palestra tem direito a tomar café e água sem gás e um maço de cigarros, porque os meus amigos são porreiros, e é tão fácil ser prostituto intelectual,
Faço programas em folhas de cálculo e tive lições de estruturas, foi um prazer estudar aços e ligas metálicas e termodinâmica e física e matemática, mas o que eu gosto,
Mas o que eu gosto é de ser prostituto intelectual e falar aos meus amigos de literatura e falar aos meus amigos de poesia e falar aos meus amigos de pintura, escrevo umas merdas e pinto outras tantas, e leio
E leio muito,
E antes de me deitar olho-me ao espelho e do outro lado um filho da puta qualquer sorri-me e eu sorrio-lhe e pergunta-me E pergunta-me se sou feliz,
E que mais eu posso querer Respondo-lhe Eu tenho tudo,
E claro que sou feliz porque enquanto tiver livros do António Lobo Antunes para ler sou muito feliz,
Sou um mendigo dos tempos modernos, Culto e inteligente e prostituo-me intelectualmente, sento-me à mesa do café e converso de politica e converso de economia e que os mercados são uma merda e que se fodam todos,
Vou fazendo uns bicos (e o escritor alerta que bicos são pequenos trabalhos e não broches),
Tomo comprimidos para dormir receitados pelo meu amigo psiquiatra, porque sendo um mendigo profissional dos tempos modernos, tenho alguns amigos porreiros,
E vou fazendo uns bicos e confesso que sim,
Sou feliz,
Enquanto tiver livros de António Lobo Antunes para ler, muito feliz,
E que deus lhe dê muita saúde.

Francisco Luís Fontinha

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

O fim das minhas palavras


59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

Sento-me
Cruzo os braços
E espero que o tempo se alimente do meu corpo
E quando chegar a noite

E quando chegar a noite
Uma finíssima folha de poeira se alicerce nos meus olhos
E todas as minhas palavras

E todas as minhas palavras cessem
E todas as minhas palavras morram
Na garganta do poema
Crucificadas nas mãos de um texto ficcionado
E toda a minha vida
Um número de circo sem sentido

Sento-me
Cruzo os braços

E dou-me conta que morri

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

domingo, 15 de janeiro de 2012

Metade de mim


84,1 x 59,4 – Francisco Luís Fontinha

Metade de mim
Morta pela tempestade
A outra metade
Pendurada na parede de um quarto

Sem janelas
Para o mar,

Metade de mim
Carne podre
Pedacinhos de cartão amordaçados
No sangue da noite,

Metade de mim
Morta pela tempestade
A outra metade
Pendurada na parede de um quarto

Sem estrelas
Sem luz
Sem janelas
Para o mar,

Metade de mim…

À procura do cadáver
Da metade morta pela tempestade
Porque à metade pendurada na parede de um quarto
Falta-lhe a metade
A vontade
A saudade

À metade de mim
Sem vista para o mar

Sem janelas para o corredor
Depois de subir as escadas e alcançar a claraboia
Onde metade da metade de mim
Dorme abraçada a uma gaivota

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

E vem a noite


59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

E vem a noite
E come-me os olhos e os braços
E come-me o coração,

E transformo-me numa tela negra
Semeada de lágrimas
E estrelas,

E vem a noite,

E tudo o que me pertence
Incluindo eu
Finíssimos grãos de poeira gatinhando no corredor
À procura de uma porta de saída,

À procura do dia.

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

sábado, 14 de janeiro de 2012

As lágrimas do tejo

Já alguma vez te disseram que tens o coiso grande As últimas palavras de Genoveva antes de abrir os braços e olhar para o céu e subir e subir e subir até se desfazer em pétala de rosa e transformar-se em estrela,
- O tejo em lágrimas,
E todas as noites a estrela brilha e brilha e brilha na janela da saudade e ele olha o mar e um cacilheiro amarrotado na solidão desfaz-se em pétala de rosa,
- Já alguma vez te disseram que tens o coiso grande,
O tejo em lágrimas nas mãos de Genoveva e antes de abrir os braços e antes de olhar para o céu e antes de subir e subir e subir… e antes de desfazer-se em pétala de rosa O tejo em lágrimas,
- O tejo em lágrimas nas mãos de Genoveva,
O coiso grande nas mãos de Genoveva e o mar desapareceu nos olhos da noite…

(texto de ficção)

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

84,1 x 59,4 – Francisco Luís Fontinha

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

14 de Janeiro – Wordsong (AL Berto)


Desenho de Francisco Luís Fontinha e música de Wordsong (AL Berto).
Wordsong é um projeto multimédia de Pedro d´Orey (Mler If Dada), Alexandre Cortez (Rádio Macau), Nuno Grácio e Filipe Valentim (Rádio Macau).

Fronteira


Fronteira (59,4 x 94,1 – Francisco Luís Fontinha)

Nunca percebi, não percebo e tenho medo de perceber qual a fronteira que separa a amizade do amor, tão pouco sei se existe uma fronteira ou se é apenas um fantasma da minha cabecinha de parvalhão.
Porque sempre fui e serei um parvalhão abraçado ao medo…