O barco despede-se do término da tarde, desce vagarosamente as portadas do postigo com acesso à noite e em passo apressado deixa a Ajuda embrulhada em estrelas e mergulha no Tejo,
- Nos meus sonhos aparece sempre um barco Confessa-me ele enquanto tomamos café na esplanada e que quando menino, aos domingos, a religiosa visita ao porto de Luanda,
Fascinavam-me aqueles monstros poisados sobre a água, às vezes recebia por parte de um deles um sorriso ou um simples acenar de bracinhos,
- Deslarga Pai
A mão do meu pai e com a minha mãozinha de caule de malmequer acenava e sorria e quase sempre ficava a chorar porque não entendia naquela idade a solidão dos barcos,
- Pai os barcos sonham? E que sim e que um dia entravam nos meus sonhos,
E hoje não porto de Luanda, e hoje não barcos, e hoje não domingos
- Deslarga Pai
Não domingos às voltas da Maria da Fonte,
A mão dele soltava-se como quando numa manhã de setembro um paquete soltou-se do porto de Luanda, e de saluço em saluço, e de rouquidão em rouquidão, começou a entrar mar adentro, e deixei de ver a cidade
- Pai os barcos sonham?
E deixei de ver a cidade como qualquer dia vou deixar de ver a mão dele, e em vez de barcos nos meus sonhos, uma tela negra a despedir-se do término da tarde, desce vagarosamente as portadas do postigo com acesso à noite e em passo apressado deixa a Ajuda embrulhada em estrelas e mergulha no Tejo.