O poema acorda pela manhã sem perceber que antes de acordar foi destruído pelo senhor Todo Jorge que durante a sesta entrou dentro da cabeça do escritor,
- O poema é uma merda tal como a minha vida Lamenta-se o escritor enquanto sentado sobre o xisto da tarde, os cigarros evaporam-se entre os lençóis invisíveis que escondem o desejo e o desejo é uma farsa embrulhada em pedacinhos de mangueira,
O poema destrói-me por dentro e por fora As palavras do poeta quando olha o rio e acaba de morrer antes de chegar ao mar, os barcos de Luanda também morreram e os machimbombos sinto-os na algibeira do avô Domingos antes de regressar a casa,
-O negro dos meus quadros
A manhã que se dissipa sobre a Bedford amarela poisada junto ao portão de entrada,
- A noite entra nos meus quadros como se fosse uma tarde em Belém solitariamente sentado numa esplanada a olhar o rio e sempre à espera que um paquete vindo do outro lado da rua me levasse, peço um café e uma bola de Berlim, como a bola e sinto a chávena mover-se até desaparecer,
Oiço o senhor Todo Jorge dentro da minha cabeça, oiço a morte de mão dada com deus, oiço os pássaros poisados na janela da claraboia sem que do relógio de pulso venha até mim a claridade da tarde, oiço-te e amo-te,
O poema,
O teu corpo nas minhas mãos antes de eu tombar e evaporar-me, o teu corpo embrulhado no loiro cabelo da manhã e tu,
- Bom dia amor,
E eu Bom dia amor,
E o poema,
- O poema nas mãos do senhor Todo Jorge,
E o poema precisa de mim e eu preciso do poema,
- Só sou poema porque tu me escreves enquanto dormes,
E se eu deixar de te escrever? E se eu assassinar as tuas palavras e deita-las na algibeira do avô Domingos juntamente com os machimbombos?
(estou farto deste texto, estou farto destas palavras)
- Morrem os machimbombos?
E das ruas de Luanda, e das ruas de Luanda deus sentado numa cadeira de praia junto à baía e finalmente percebo que não gosta de mim, e finalmente percebo que nunca gostou de mim, porque se gostasse
- O poema nas mãos do senhor Todo Jorge,
Mas sei que não gosta, as manhãs de inverno deitado no chão sem cama, sem nada, os vidros todos estilhaçados, a fome entrava pela porta de entrada e saia pela janela, eu vinha à varanda,
- Porquê mãe,
Amo-te sussurra-me o poema, amo-te quando te escrevo Respondo-lhe, amo-te nas tardes de verão junto ao tejo e tu olhas-me como se eu fosse uma candeia acesa na noite solitária de dezembro, e recordo-me que comecei a odiar o natal quando em regresso de Carvalhais o pai natal desprezou-me, visitou todas as crianças do bairro do hospital,
- O pai natal passou em Carvalhais, E eu perguntava-me Como este filho da puta sabe se estou em Carvalhais ou em Alijó, e não sabia, e nunca soube,
Tenho medo mãe,
E eu amo-te e eu sempre te amei, Porquê pai natal?
O poema acorda pela manhã sem perceber que antes de acordar foi destruído pelo senhor Todo Jorge que durante a sesta entrou dentro da cabeça do escritor,
O escritor ama-a mas será que ela está disponível para amar o escritor? Pergunto-me todas as noites antes de adormecer, e não precisas de fingir poema, o senhor Todo Jorge recordar-me-á todas as rimas, todas as dores, todos os sofrimentos,
- Morrem os machimbombos?
E morreram os machimbombos e morreram todos os barcos de Luanda, e hoje, e hoje apenas o teu sorriso plantado na minha secretária que me olha e me recorda,
- Eu amo-te,
E eu percebi que me amavas quando te deste conta que eu não passava de um miserável, entalado ente o setembro de Luanda e o inverno de Alijó,
- Tenho medo mãe,
Do mar do Mussulo.
(texto de ficção)
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