A correspondência pesadíssima balançava no meu
braço esquerdo, de mão amachucada dentro da algibeira, procurava
cigarros com sabor a saudade, o carteiro nem tinha começado o giro e
já se encontrava cansado, sonolento, e o carteiro... eu mesmo,
disfarçado de andaime ambulante e despropositadamente peguei num
subscrito, apenas porque chamou-me a atenção a quantidade de selos
e os desenhos dos mesmos, deslumbrantes como as planícies iluminadas
das ruas embriagadas de uma cidade em construção,
Deve vir de longe, pensei,
E eu, eu ali, suspenso entre o olhar obtuso e a
penumbra neblina do fumo do meu pobre cigarro, comecei a manuseá-lo
como se fosse o rosto de alguém desconhecido, alguém que pela
primeira vez tocava nas minhas mãos, senti um leve arrepio e sou
embrulhado em palavras, confesso, palavras que nunca na minha vida de
carteiro tinha encontrado, tocado..., ou, tocar toquei..., mas apenas
nos selos, e por alguns minutos,
Acariciado?
Isso, acariciado, isso, acariciei,
E repentinamente sou invadido por pequeníssimos
sons metálicos, e
“Canadá, 09/04/2014
Meu querido,
Devido às circunstâncias que tu já conheces, fui
obrigado a ausentar-me desse País e da tua vida, não sei se o fiz
de livre vontade, não sei se o devia ter feito, mas..., e fi-lo
acreditando que me libertava da tua voz, não o consegui e ela
permanece entranhada no meu corpo esguio de árvore caduca, e não
estou arrependido, não, não estou arrependido,”
Entre o silêncio sinto a dor que o meu cigarro
provocava nos meus dedos e o cheiro a pele queimada, sentia-me tão
embalsamado pelas palavras que me embrulhavam que acabei por
esquecer-me que estava a fumar e que o diabo do cigarro tinha acabado
de morrer, a morte, sempre a morte dos cigarros, essa sim, o medo que
me atormenta, quando vejo e sinto a morte de um, seja um só ou
vinte, ou trinta...,
E voltava a sentir no meu esqueleto as tais palavras
que eu nunca duvidei que vinham do subscrito que poisava na minha
mão,
“Ontem estive a reler as nossas cartas, tanto
tempo passou entre as equações dos nossos corpos na ardósia de um
velho divã e o sentido poético dos teus dedos, lembras-te quando
lias para mim AL Berto?, lembras-te quando lias para mim Cesariny?,
ontem percebi que as Acácias deixaram de sorrir quando entraste
naquela ruela sem janelas, e tu, e tu nunca mais regressaste, e tu”
Possa... que não entendo nada disto!,
“E tu começaste a ter asas, a sair de casa manhã
cedo, e às vezes, nem regressavas no final da tarde, e eu sentia que
te perdia como o marinheiro sabe quando a sua embarcação está
prestes a afundar-se... e pluf, novamente silêncio, e pluf,
novamente Primavera,
E pluf, entravas casa adentro e com o teu sorriso de
solidão dizias-me
Olá amor!,
E hoje enquanto relei-o as nossas cartas, algumas
delas parecem os cigarros do carteiro aí da tua rua, cartas mortas,
descoloridas, e os corações desenhos por mim..., não corações,
desapareceram como desapareceu o cinzeiro de prata que levaste para
vender e em troca
Pluf,
Mais um regresso adiado, e eu, eu acreditava sempre,
sempre,”
Procuro outro cigarro, sinto frio e percebo que
alguma coisa não está correcta, aquelas palavras e aqueles sons
metálicos deixavam-me totalmente desnorteado, tremia, ressacava, e
no entanto, e no entanto conhecia aquela voz que vinha da escuridão,
“Meu querido, espero que entendas a minha
ausência, espero...”
Deixei de ouvir a voz e cada vez menos chegavam a
mim os metálicos sons, até que
“Despeço-me com saudade,
Sempre,
Alberto”
Volto a colocar o subscrito na sacola e começo a
caminhar para a primeira casa da rua, a Dona Joana esperava a carta
da filha que tinha partido para Lisboa, ainda menina, ainda inocente,
E uma luz preenche as minhas pálpebras de verniz,
os meus olhos pareciam cortinados negros sem vontade de correrem em
direcção ao cais dos cigarros mortos, aos poucos, muito devagar...
vou-os abrindo como quem abre pela primeira vez uma porta de entrada
de uma casa descolorida e percebi, e percebi que tinha sonhado,
E percebi que não havia carteiro nenhum e percebi
que nunca existiu subscrito nenhum, e tão pouco conheço alguém que
viva no Canadá...
Corro para o banho e depois de alguns minutos a
sacudir as palavras do subscrito..., percebi que nem da cama ainda
tinha saído.
Francisco Luís Fontinha – Alijó
Quarta-feira, 9 de Março de 2014