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foto de: A&M ART and Photos
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O meu cabelo absorve a cidade, vive debaixo dele a
manhã dilacerante, há um perfume desconhecido que vai subindo até
aos meus cabelos, encosto a cabeça ao espelho da manhã, trinco os
lábios e sinto as madeixas das árvores engomadas por um velho ferro
de engomar, não me sinto bem, estou estonteante, estou... em
desequilíbrio, e oiço as finas gotas que o horário suspenso na
parede da sala de jantar, essas... em pequenas lágrimas pergaminho,
como húmus derretido sobre a terra árida das velhas mãos que
serviram para alimentar o calendário nocturno
O meu cabelo morre,
E a tua boca silencia-se como se vivêssemos em
permanente ditadura, como se vivêssemos... sem sairmos de casa, à
varanda do silêncio, choras-me porque perdeste os cigarros, porque
perdeste o emprego, porque perdeste... a vida
O meu cadáver de costas sobre a cidade, de um salto
em falso... voo sobre a calçada camuflada com pequenas pedras de
chocolate, alguém grita o meu nome,
O meu cabelo morre,
A minha pobre vida, aos poucos... também ela morre,
como o meu loiro cabelo, como o sombreado vento, como a grade da
varanda que me aprisiona e não me deixa ser livre, livre como as
gaivotas de Belém, ir a bares, beber em esplanadas a vodka que
sobeja dos veleiros acabados de regressar da Rússia, e
O meu cabelo morre, e a minha vida morre, e tu, e tu
morres-me... porque a água salgada do mar começou a subir pelo
ascensor, entrou no terceiro esquerdo, entro no terceiro direito,
Nós
E o teu cabelo quase em chamas,
E nós quase, porque habitamos o sexto frente, e
daqui a pouco, a tua cabeça, encostas-a à grade enferrujada e
lanças-te em
Queda livre,
O meu cabelo morrer,
Nós, nós quase engolidos pelas caravelas que a
noite lança pelas ruas para nos aprisionarem, como acontece com o
teu cabelo, como acontece com o teu corpo...
Ambos prisioneiros, vagabundos, quase em
Queda livre,
A cidade,
Morre,
O meu cabelo morre,
E o teu cabelo quase em chamas,
E nós quase, porque habitamos o sexto frente, e
daqui a pouco, a tua cabeça, encostas-a à grade enferrujada e
lanças-te em granito polido, cubos em gelo, pregos de madeira rompem
os sargaços dos teus beijos, e nós, porque habitamos o sexto frente
Morre, morre o teu cabelo quando te lanças sobre os
veleiros desgovernados das Clarissas abandonadas, ouvi-o, ouvi-lhe os
cabelos agarrarem-se à velhíssima grade e voavas, e dançavas, e
E o teu cabelo quase em chamas,
E os meus braços enrolados no teu pescoço, a
cidade, a cidade com o teu corpo como húmus, sobre a terra
ressequida, feia, dilacerante...
E morre,
E desce... até encontrar a lápide cinzenta onde
está escrito o seu nome,
A criança rodopia,
E a vida, a vida também morre, e a vida espera por
um digno salto, e ela
Ela morre,
O meu cabelo morre, o meu cabelo... em flor, sobre
as árvores dos teus seios, transparentes, como as velas do veleiro
estacionado junto à Torre de Belém,
E ela?
Ela... ela morre, morre, até encontrar a lápide
cinzenta onde está escrito o seu nome,
A criança rodopia.
(não revisto – Ficção)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
quarta-feira, 21 de Agosto de 2013