|
foto de : A&M ART and Photos
|
São... oiço-a no fino pano de espuma, que nos
separa, oiço-a do esconderijo com folhas de azedume e janelas de
neblina
São nove e qualquer coisa...
Antes das dez, presumo eu, nunca tive um relógio,
não por difíceis condições económicas, mas porque sempre achei
ser um utensílio, Objecto? Quase, recordo-o agora
(Objecto quase – José Saramago)
Desnecessário, pergunto-me para que me serve um
relógio se eu nunca, nunca lhe obedecia, ou minto, fui um servo
escravo dele, mas hoje, hoje não o sou, deixei de o usar, tenho-o
poisado sobre a cómoda, passo por ele, logo de manhã, indiferente,
sublime a luminosidade que consigo observar-lhe quando a luz incide
sobre o mostrador com números brilhantes, a princípio, a princípio
fiquei na expectativa se aguentaria viver sem ele, e consegui, e
sinto-me feliz, muito feliz...
Claro que minto, caro que o tive e deixei de o usar,
O amor?
Entre dois pontos com coordenadas tridimensionais,
algures no espaço, com apenas três coordenadas, e um referencial,
percebo, que ele, o amor, vive, respira, habita nos corpos mais
lentos da cidade, movimenta-se com dificuldade, é mutante, e raras
vezes aparece depois de encerrarmos as luzes dos candeeiros a
petróleo espalhados pelos silêncios dela,
Oiço-a
São nove e qualquer coisa...
Ainda não dez, brevemente, depois como uma louca
corrida em direcção ao fim do corredor, ele, desaparece pelas
sombras submersas nos cobertores dos divãs do amor, as escadas em
madeira, barulhentas, rabugentas, doces, elas, as nádegas do relógio
de pulso submergido no rio de suor da pele ausente que tu me
prometeste, e que nunca
São quase dez,
Nunca cumpriste, nunca, escrever para quê?
(Objecto quase),
Em saltos de prateleira em prateleira, em risos,
como os móveis teus cobertos por um velho lençol, deixaste de
entrar em mim, deixaste todos os móveis do meu corpo protegidos por
um branco pano, ausência de pó, vida medíocre, ausência de
oxigénio, sempre com as minhas janelas fechadas como uma cancela em
suspenso por dois pilares de cansaço, a embaixada
São nove e qualquer coisa...
Você não é Angolano,
Percebo que não sou, percebo que nunca o fui,
percebo que a certidão de nascimento onde consta que nasci em
Luanda, lamento informá-lo mas a sua certidão de nascimento é
falsa, é falsa, como são falsas a respectiva cédula pessoal, como
são falsas as fotografias, como é falso o cartão de vacinas contra
a febre amarela
O quê? Qual febre amarela, rapaz... enlouqueceu,
Tudo é falso, eu sou falso, a embaixada
Você não nasceu em Luanda, você é um mentiroso,
compulsivo, sou, pois sou, e garanto-lhe que nunca brinquei no
Mussulo, e garanto-lhes que nunca vi, juro pela minha honra que nunca
vi, não sei o que são, machimbombos, juro que não tenho terra,
juro-o...
São quase dez,
Nunca cumpriste, nunca, escrever para quê?
(Objecto quase),
Em saltos de prateleira, dentro de um falso paquete,
enganaram-me, disseram-me que nasci num local que não existe,
falsos, disseram-me que vim num paquete, lindo, enorme, atraente como
as meninas que passeavam junto ao Tejo, e não vim, e descubro que
esse paquete nunca existiu, falsos, mentirosos, falsas infâncias,
como os jardins da escola
Será que ela existiu?
São quase dez, diz-me ela, oiço-a..., em Portugal
continental, e no entanto descubro que toda a minha infância foi uma
mentira inventada por um menino que andava de calções e sandálias
de couro, sentava-me debaixo das mangueiras e inventava histórias,
E inventou esta história, que nasci, vivi, e vim...
E eu, acreditei,
Como acredito nela que me diz que são quase dez
horas, da noite?
(Objecto quase)
E eu, acreditei.
(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha