sábado, 27 de julho de 2013

in Palavras de Cristal - Francisco Luís Fontinha

Os apitos uivos

foto de: A&M ART and Photos

Deixemos de ouvir os comboios das tardes de verão, os apitos uivos transformaram-se em palavras tontas, vagabundas ruas com sonoralidade abstracta, olhos azuis os da noite quando vinham as gaivotas às mãos das desnorteadas horas sem regresso com sabor a poesia, e sorrisos lábios poisados sobre a vadia areia das cavernas flores que a madrugada alimentava, e depois, vomitava como vapor da velha máquina ferrugenta fingindo engolir o negro carvão como seara de trigo se tratasse..., ouvíamos, não, apenas eu ouvia os ditongos, não, apenas eu percebia as velhas sílabas em danças de salão, ouvíamos música, não, eu ouvia música, eu
(rua dos segredos, número cinco, rés-do-chão, Lisboa)
Eu fartei-me dos comboios, das máquinas enferrujadas e dos silêncios das tuas velhas madeixas, digamos que... cansei-me de ti, das tuas horrendas letras travestidas em palavras, palavras, palavras, velhas, sempre velhas, comboios... barcaças, e migalhas sobre a mesa da cozinha,
Fumegava em soluços a cansada lareira,
(rua dos segredos, número cinco, rés-do-chão, Lisboa)
Digamos que não passas de um esqueleto de arame dobrado sobre a cidade, prendias-te a um edifício granítico, de um lado, e do outro, percebia-se pela marca do teu pulso que estavas suspensa a uma ratoeira invisível com janelas circulares, o teu corpo parecia um petroleiro fundeado dentro do Tejo junto à dentadura em Marfim de Almada, do outro lados, eu,
Eu percebia que nunca mais comboios, eu percebia que nunca mais ruas curvilíneas, de sentido único, sem banco em madeira, sem flores, sem jardins..., sem meninos e meninas a brincarem aos comboios eléctricos, eu percebia que nunca mais os soluços que fumegavam da cansada lareira em triste insónia, e que a paixão e o amor...
Eu
Digamos que não passas de um esqueleto de arame dobrado sobre a cidade, uma esfarrapada bandeira que o mastro de um veleiro transporta, gaivotas, elas, também esquecidas dos apitos uivos, elas também, as madames, vestidas com folhas de jornal, e passeando-se nos carris envenenados da cidade canibal, e sabíamos que na rua dos segredos, número cinco, rés-do-chão, Lisboa, havia tambores em desvairados transparentes rufos, eu não te merecia, só, eu, apenas eu, não eu, apenas eu,
Eu?
Só porque o quero...
Deixemos de ouvir os comboios das tardes de verão, os apitos uivos transformaram-se em palavras tontas, vagabundas ruas com sonoralidade abstracta, olhos azuis os da noite quando vinham as gaivotas às mãos das desnorteadas horas sem regresso com sabor a poesia, a fome em palavras atravessava-me e apanhava-me sempre quando eu
Eu?
Quando eu sentado numa esplanada, ouvia os apitos uivos das máquinas ferrugentas, os barcos ao aço carbono, como trepadeiras subindo pelas escadas do sótão até chegarem ao céu, uivavas, gemias, parecias a locomotiva vaidosa que brincava entre o trigo e o sorriso, eu, lindo, queixava-me que a tua sombra era uma estátua de pedra, uma rocha colorida com olhos de manteiga, eu...
Eu? E que a paixão e o amor...
Só porque o quero...
… levemente distante das chuvas fumegantes das esplanadas com cadeiras plastificadas, os livros, ardiam na lareira que há pouco te falei
Lembras-te?
Eu?
Deixei de os amar,
Deixemos de perceber porque nasciam sorrisos quando deviam crescer lágrimas, e que a lareira só existia porque ainda não tinha regressado de ontem a Primavera de hoje, e o vento trazia-nos as poucas migalhas que sobejaram das sangrentas viagens ao inferno dos peixes; os teus peixes e as tuas algas.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó

A cidade suicidada

foto de: A&M ART and Photos

Tínhamos Mabecos sobre os joelhos
e uma fina cortina de Cacimbo
balançava sobre o teu cabelo negro
havia espuma
brumas árvores em cio
havia um triste rio
deitado nos teus seios apaixonados pela madrugada
tínhamos pedaços de silêncio nas pálpebras nocturnas do desejo
e sabíamos que era a última nossa noite...
choravam as janelas viradas para o Tejo
e os barcos magoados brincavam na cidade suicidada
que os Mabecos iluminavam com o olhar da solidão...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Malabarista de primeira classe... diplomado

desenho de: Francisco Luís Fontinha

Desenhaste-me nas esfinges manhãs de Inverno
procuraste uma tela vazia
construíste-me em mendigo acrílico com coloridos ombros de porcelana
pintados à mão,

(Fui o que nunca quis ser
sou tudo aquilo que tu nunca quiseste que eu fosse...)

Desenhaste-me em murais que ultrapassavam os edifícios em ruína na cidade das gaivotas
sentei-me em ruas onde tudo se vendia
o corpo flores drogas álcool e amores
livros e papel de embrulho
desenhos e merdas sem sentido
porcarias vãs
vadias entre as pernas alicerçadas aos tambores de choque
envaidecias-te
eras nobre como um donzela puta de adorno...
e os jardins cansavam-se de ti como velhos sorrisos
sonâmbulos das ínfimas janelas
e entrava-nos na sala de jantar o enfeitiçado mar...

Um cheiro horrendo
barcos vomitando saliva esbranquiçada
lágrimas
e muitas estrelas
todas elas
embriagadas,

Desenhaste-me como se eu fosse um boneco de palha
um cabrão mal vestido
de fato
gravata
e sapato bicudo afiado reluzente como um espelho da feira popular...
chorudas mulheres de açúcar
dormindo em roulotes como gazelas em sexos murchos que os finos pinheiros de Carvalhais...
lançam
deixam ficar sobre a tua pele...
todas as palavras de adeus...
Adeus
Até nunca mais me desenhares nos murais das montanhas de aço,

Desenhaste-me nas esfinges manhãs de Inverno
procuraste uma tela vazia
construíste-me em mendigo acrílico com coloridos ombros de porcelana
pintados à mão,

(Fui o que nunca quis ser
sou tudo aquilo que tu nunca quiseste que eu fosse...)

Desenhares-me invisível
sem saberes quem sou
como penso
vivo
se tenho sonhos
consegues perceber os meus lamentos?

Fui tanta porcaria...
cavaleiro
donzela
prostituto
pintor
escritor
abelha tonta tonta como ela... ela tão bela...
e tudo porque me desenhaste nos murais das montanhas de aço,

E poeta não o sou
talvez o seja quando se apercebe em mim um silêncio de loucura
devaneio
os peneirentos pássaros que as arcadas do desassossego escondem
constroem e inventam insónias em papel como pobres flores de arremesso...

Desenhares-me em toda a porcaria livre
nas calçadas
nas ruas e ruelas
cansadas...
desenhas-me como se eu fosse um esqueleto de amêndoa
suspenso nas três horas da madrugada...
nas calçadas
ruas
e ruelas
sou
nunca o fui
desejo-o como se ele fosse um abutre de asas cinzentas,

Sou
fui nunca
poeta pintor escritor porque nunca deixei de o ser...
malabarista de primeira classe... diplomado.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Cabelos frios e secos

desenho de: Francisco Luís Fontinha

Dirigi, atravessei fronteiras antes inultrapassáveis, subi muros, desci avenidas, ergui-me, caí, voltei a erguer-me e novamente caí, escrevia, riscava, rasgava... fazia arder a manhã misturada em pedaços de cacimbo e tecidos vagabundos, fui uma ilha, fui uma rocha, fui um longo cubo com lábios triangulares, fui seno, fui cosseno, vivi em união de facto com a tangente, fui amante, de noite, as clandestinas visitas à cotangente..., e do círculo trigonométrico..., nada restou, depois, da tempestade, nuvens, chuva entrando em nós, de ti, uma pedra mármore com a tua fotografia, diz lá
O quê?
Eterna saudade de nós..., de mim, em ti, dirigi, suicidei-me, atravessei antes inultrapassáveis ruas, hoje, escuras, ardósias como ninguém percebeu, que um dia qualquer, um dia, ao lado do café, um miúdo, miúdo com sandálias de couro, percebeu, percebi, que a morte entrava-nos, e levava-te como levou todas as árvores que dormiam sobre as nossas sombras, dilatavam-se as tuas pálpebras, dirigi, adormeci, acordei num jardim recheado de zínias, fui feliz, infeliz, fui feliz, fui agreste, montanha, passeio pedestre, fui
O quê?
Ratazanas
Dirigi, vivi sobrevoando canteiros e riachos, sobrevivi aos beijos assassinos dos guindastes de chumbo, naveguei, cruzei oceanos como se eu fosse uma leve e tranquila folha de alumínio com uma bolha castanha, andava, ia a cima, descia, vinha a baixo, sentava-me, despedia-me, levantava-me, erguia-me... e caía,
As ratazanas amigas, amigos, protestantes e mendigos, vivi, fui vivendo, dirigi e atravessei o teu corpo transparente embrulhado em jornais envelhecidos, tinhas rugas, usavas sapatos cambados, e fui aprendendo a ultrapassar, dirigi, fui roupeiro, cobertor, homem espantalho, fui há muito tempo
Palhaço,
O quê? O que têm as ratazanas?
Palhaços, cabelos de fino arame, fui trapezista, vendi pipocas, corri avenidas em tristes engates, fui ratazana, fui praia, areia, ou barco, fui aço, fui âncora, palhaço, circo, pedestal, dirigi, cansei-me de olhar o rio, cansei-me de colocar a minha pobre mão na salgada água, lembras-me o mar, o ébano eu?
O quê?
Tínhamos zínias, cheirava em nosso redor a Primavera embriagada, desconfiávamos que o amor tinha algures um ninho num dos ramos da árvore de papel do nosso quintal onde brincávamos em meninos, não dávamos importância alguma aos pêssegos, às laranjas, às roulotes com lentes de contacto, um parvalhão de fita métrica na mão assaltava transeunte, chovia, não sabíamos, eu desconfiava dos vidros das janelas da casa das ratazanas,
Eu? Não sabia...
Desconfiava apenas,
Ratazanas, zínias enraivecidas com dentes de marfim afiados, metadona desconfiada, sem dono e abandonada, tudo se vende, tudo se compra, o zinco em chapas, os telhados em vidro, as barracas
Quais barracas?
As casas, húmidas, vivendo-se dias desenhados sobre a areia molhada, vinha o vento... e nada, tudo desaparecia, tudo se deitava, dormia, dormiam as zínias, as ratazanas, a mulheres-a-dias e as concubinas..., o quê? Eu? Não o sei... como o poderia saber,
Que horas são, hoje, mulher do mar, de mar, ao mar,
Desculpa?
Que horas são, mulher-a-dias, veleiro carrancudo, com velas de assobio, o circo, as tuas mãos desprezíveis, íngremes como as calçadas nocturnas das cidades escuras, desculpa...
Feldspato?
Não o sei, pergunta ao gerente da barraca, talvez ele saiba...
Gosto, não gosto... pelas dúvidas... deixo-te um like sobre as sobrancelhas, e
Dirigi e caí,
Me levantei, voltei a cair, e caí, me ergui, e me pendurei no teu pescoço de galinha envenenada, serpente, crocodilo, em madeira, em bom estado, vende-se dentadura postiça, primeira mão, em prestações, trinta e seis suaves, como lírios, como zínias, cachorros e cadelas e trapezistas e palhaços e trompetes de aço, me levantei, eu, e para quê?
Me sentei em ti, dormi, envelheci, e quando acordei, tu, vestida de mar..., me seduzi, me engatei nos laços transversais dos parafusos encalhados, fui, vou-me a ela, fui rua, donzela, fui... e nua, nua a tua doce madrugada.
Dirigi. Menti. Atravessei fronteiras antes inultrapassáveis, subi muros, desci avenidas, ergui-me, caí, voltei a erguer-me e novamente caí, escrevia, riscava, rasgava... tudo, tudo para nada.
(texto, ficção, vida, desenho, arte, zínias, jardins, amor, Primavera, tudo, e nada, pouca coisa, desenvergonhada, ela, paixão de areia, homens de vidro, cabelos frios e secos, mendigos).

(não revisto – quase ficção)
@Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Sim, tu, tu aí... mulher de ébano!

foto de: A&M ART and Photos

Me desencontro na encruzilhada dos teus braços,
Pergunto-me, quem és?
Ninguém sabe, ninguém percebe porque são os teus lábios doces e a tua boca tem o sabor da Primavera, ninguém sabe quem és, o que fazes entre as flores mais belas dos jardins imaginários, mas dizem-me que te veste de noite, que passeias em frente ao mar com sorriso de gaivota, dizem-me, porque sinceramente... confesso... não sei, quem és tu?
Os barcos são de papel, os rios vasos comunicantes, abraçados, ou não, braços de prata com pulseiras de xisto, montanhas desgovernadas, montanhas solitárias, que os teus olhos tão bem conhecem, e eu, não
Não dizias que havia mar dentro da algibeira dos sonhos?
E tu, que fazes disfarçado de homem do circo, como palhaço, trapezista, como malabarista ou... ilusionista, sim, diz-me tu, quem és, o que fazes, porque são azuis os teus olhos? E eu, não, não percebo, não entendo a madrugada quando não acorda, cerra os olhos, as portas e as janelas, morre-se dentro da cidade como ardem pedaços de papel, e tu, e tu o que fazes?
Nada, indiferente, ausente de mim, e no entanto... nem sei quem és...
Uma cegonha de incenso invade a tua privacidade, iluminam-se-te os pretos cabelos com folhas de pequenas lâminas de luz... há rochas incompletas dentro de hipercubos à beira da paixão, há triângulos de desejo no centro do teu círculo púbis, e eu, sem saber quem és, onde moras, o que fazes dentro do mar com velas de linho,
Barcaça?
Me desencontro na encruzilhada dos teus braços, permaneço impávido como uma cerejeira na sombras dos castelos de areia, finjo morrer e fujo para o outro lado da montanha, desenho linhas, muitas linhas no térreo pavimento, sou só, solitáriamente só, sou como as árvores antes de nascerem, sou nuvem, e tu, quem és,
Quem és, mar ausente dos barcos transversais das janelas de Janeiro, tu, heroína das pesadas roldanas nas tempestades verticais quando os cortinados caem sobre o azul olhar da Princesa manhã, saberias acariciar-me com os teus dedos de seda se ouvisses o borbulhar das malignas gotas de suor do amanhecer desconhecido? Tu?
Eu, barcaça?
Sim, tu, tu aí... mulher de ébano!
Não dizias que havia mar dentro da algibeira dos sonhos? E o amor, como será o amor vivido dentro dele, tu, ou eu, ambos, mergulhados em espuma de insónia... como dos corredores longínquos dos seios teus perdidos nas catacumbas da paixão,
Amar-me-ás, um dia? Apenas num qualquer dia..., numa qualquer cidade...
Tu, barcaça?
Eu, o quê? Sim... tu, uma barcaça desnorteada enrolada em ventos convexos e pulmonares corações de silêncio; o teu. O Teu simples silêncio...

(não revisto – ficção?)
@Francisco Luís Fontinha

Cidade de vidro

Desenho de: Francisco Luís Fontinha

Há uma cidade com janelas de vidro
tem ruas e pessoas
há uma cidade com jardins invisíveis
e marés transparentes... que nem todas as pessoas
as pessoas dessa cidade
… há uma cidade
que nem todas as conseguem olhar
como persianas marteladas em papel hortelã,

Há marinheiros
filhos da cidade
vagabundos dos mares inavegáveis como rochas íngremes nas estradas de brincar...
há uma pobre cidade com braços de porcelana
e palmeiras
e pássaros...
há uma cidade em penumbras madrugadas
uma cidade embriagada,

Há uma cidade que renasceu do teu olhar sobre a ponte inoxidável...
uma cidade com seios prateados e coxas de plátano...
há conversas perdidas nas sombras desta cidade
uma cidade com beijos de lábios em néon imaginário
e pássaros
e palmeiras
há uma cidade com janelas de vidro
e toalhas de linho... sobre a mesa nocturna dos sexos débeis das flores perdidas na calçada...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha