Os
comboios só apitam durante a noite para assustarem as estrelas,
As
rectas paralelas em aço estendem-se até ao infinito, chegando lá, o comboio
desaparece, entranha-se na noite e morre.
Encurvado
nos socalcos levo comigo as curvas do Douro, lanço-me à água… estou farto das palavras
que escrevo, estou fartos dos meus desenhos, como a vida que gira e não se
cansa de cessar, parar sobre a ponte e suicidar-se sobre os rochedos da
insónia.
Oiço
o grito da aranha no cansaço da madrugada,
Sei
que habita um rosto no espelho do meu quarto e certamente que não é o meu,
porque nunca o vi, apenas em pequenos tragos de saliva ao pôr-do-sol,
Quero
expulsá-lo de lá…, mas não tenho força para tal; parto o espelho?
Quebro-o
até que o rosto se transforme em mim? Ou este será o meu rosto depois da minha
morte?
Os
comboios só apitam durante a noite, fiz muitas viagens, muitas noites sem
dormir, entre apitos e soluços, entre estações e apeadeiros desconhecidos,
entre gritos e gemidos, até desaguar em Santa Apolónia pelas sete horas da
manhã, as ruas acabavam de acordar, os sem-abrigo levantavam-se para o
invisível pequeno-almoço, e eu, e eu fumando cigarros para não adormecer,
Mas
acabava sempre por cerrar os olhos e passar o dia entre os cortinados da
escuridão e os sons melódicos do trânsito, a loucura, cruzava os braços e
punha-me a contar os automóveis que passavam por mim, depois separava os que
eram homens e os que eram mulheres, as crianças à parte… e assim passava o dia.
Regressava
a noite e eu tinha vendido o sono ao Diabo, saía na companhia de desconhecidos,
entrava em todos os bares até adormecer sobre qualquer banco de jardim, e
enquanto dormia, sentia, sentia os apitos do comboio…
Tudo
isto está escrito e sepultado em três caixotes de cartão,
Confesso
que nunca mais os abri, não tenho coragem para os abrir…
Papeis,
fotografias, poemas, e fantasias…, mas para quê remexer o passado e este está
morto, e enterrado no meu peito.
Os
perfumes intactos, uma velha rosa dentro de um livro, intacta, e a minha vida
pedaços de farrapos em construção, hoje uma pequena vitória, amanhã uma grande
derrota…
Amanhã
faz vinte e dois anos que deixei a heroína…
Uma
grande vitória.
Francisco
Luís Fontinha
domingo,
8 de Maio de 2016