terça-feira, 19 de março de 2013

Os carris de ontem

Para onde me levas? Se os teus braços são espessos, abertos, desertos, se os teus braços são como o vento que seguem estes pobres carris até ao fim do destino, sem mais caminho, deixarmos de caminhar, não
E há muito deixaram de circular, aqui
Os comboios de ontem,
Amanhã
E há amanhã fantasmas de aço já sem braços, já sem vento que nos levarão para as planícies de um rio sem dentes, um rio, deserto, fechado, encerrado, sem barcos, sem
Comboios para olhares, sem carros em direcção ao Grafanil, tudo, cessaram as lilases árvores pintadas nas brancas e finas pernas da menina do quintal ao lado, gostava dela, mas às vezes
Era chata, impertinente, embirrante, e eu, eu atirava-lhe com o meu chapelhudo (um boneco com vestidos que eu desenhava, que eu cosia nas solidões da tarde, um boneco que dormia comigo, e durante a noite me levava a passear para junto do mar), e ela, ela indiferente a ele, ela olhava-o, olhava-me, e dizia
Não tenho medo de ti,
Eu tinha, muito, e escondia-me junto ao tronco da mangueira do quintal, ela erguia-se, empoleirava-se sobre os arbustos e nada, nada, nada, nunca me encontrava, e eu
Via-a sobre os carris, sem comboios, desertos, e os teus braços são como o vento que seguem estes pobres carris até ao fim do destino, sem mais caminho, deixarmos de caminhar, não
Não esperes por mim, não, não faças de mim também, deixarás de perceber quando caminhavas, sobre os arbustos, e quase sempre, sempre que nunca me vias, choravas,
Sempre choravas quando não me encontravas, e saberias ao menos que eu também chorava enquanto não te encontrava? E saberias que o chapelhudo vestido apressadamente para andar no bolsinho do teu bibe, ele
Saudades
De mim,
Sabias?
Amanhã, os comboios de ontem, perceberás que hoje não comboios, hoje não andorinhas, e a Primavera está aí, amanhã, de mim, não esperes, não me lês porque tens vergonha das minhas palavras, dos meus azedos lábios, dos meus não beijos, e mesmo assim, subias aos arbustos, espreitavas-me... porque tínhamos veleiros imaginários estacionados entre os nossos quintais, ao centro, separavam-nos
Arbustos,
E montículos de areia com cor de chocolate, e no bolsinho do teu bibe
O teu chapelhudo, vestido, devidamente vestido, penteado, asseado, e o rapaz fazia-se de morto, encostava-se ao tronco da mangueira, e
Quase que nem respirava, e
Quase que nem se via,
E
Quase que terminava a Primavera, começava o Verão..., e ela sem acordar, e ela
Desaparecida,
Para onde me levas? Se os teus braços são espessos, abertos, desertos, se os teus braços são como o vento que seguem estes pobres carris até ao fim do destino, sem mais caminho, deixarmos de caminhar, não
Sim, talvez,
Tínhamos duas rectas de aço, paralelas, longínquas até ao infinito, e chegando lá, abraçadas elas, encontravam-se como se encontravam os amantes nos quartos de pensão, com quatro paredes, feias, frestas, uma janela quase parecendo um ponto de luz ao fundo do túnel, e no final
Amanhã,
No final uma parede de betão manipulada por um velho vestido de negro, amanhã, hoje, ontem, ontem tínhamos coisas, uma cama que rangia, sofria, gemia, uma cama com ar de ranhosa, e lábios beiçudos, amanhã
Não percebo,
Amanhã dizem-me que um hotel com cinco estrelas, duas nuvens e uma lua, ruiu, como as tendas de circo quando a tempestade é muita, quando o meu cão se revolta, e porque não se revoltam eles, porque apenas um rafeiro
Revoltado,
E os outros?
As ruas, os edifícios, as calçadas, os caixotes de lixo, o rio, as pontes e os homens..., porque não se revoltam eles?
E as outras?
Coisas pequenas, silêncios, sussurros de medo, grades invisíveis com vogais de sabão, prisões para os bons, e liberdade para as abelhas
Coitadinhas
Tenham pena delas,
Precisam, querem, desejam
Voar,
Andar
Caminhar..., até que os carris terminem
E
O precipício acordava nas mãos pequeninas da menina do bibe, que subia aos arbustos, que chorava enquanto o chamava, ele
Escondia-se
Como o chapelhudo,
No bolso do bibe dela.

(ficção não revisto)
Francisco Luís Fontinha

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