|
foto: A&M ART and Photos
|
Acordei cedo, sonhei contigo, e a cabeça
estoirava-se-me, alguma coisa que eu tenha deixado sem me aperceber,
quero dizer, alguma coisa que eu tenha esquecido sobre a
mesa-de-cabeceira, um parafuso, uma porca, um anel ou a pulseira de
pechisbeque que comprei no ano passado na barraca do cigano zarolho,
mas não sei, meu querido, talvez o copo de água, talvez devido a um
dos vidros da janela do quarto estar quebrado, mas... esta dor –
Dormes poucos, meu querido – e não, não durmo pouco, nunca dormi
pouco, e recuso-me a admitir de durmo pouco, mas durmo, sonho, às
vezes, com pedras – Acreditas nisto? Quem sonha com pedras? - mas é
verdade, sim, eu sonho, porquê?
(domingo vou à penitenciária visitar o André)
Porque, meu querido, não é normal sonhares com
pedras, as pedras não são, não fazem parte dos sonhos – Então
com que objectos posso eu sonhar? Se existem objectos para o
efeito... - ora, sei lá agora, podes sonhar com o mar quando desce a
tarde – Não gosto mais do mar – podes sonhar com as gaivotas em
voos triangulares sobre o Tejo – Também deixei de gostar do Tejo e
de triângulos – olha, porque não sonhares com
(sinto-o muito magro, diz que não lhe apetece
comer, diz que não dorme, que a cela é sombria e húmida, tem os
olhos adormecidos, percebes? Parecem o romper da madrugada, mas por
alguma razão externa à natureza, a madrugada ficou submersa no
horizonte, meia sombria, meia adormecida, meia ensonada, são assim,
os olhos do André, sabes? Tenho, tenho pena dele e da solidão que
habita nele, tenho pena de ser eu a única visita que tem, a mãe,
que não pode, sempre atarefada, a irmã, estuda à noite e trabalha
de dia, o irmão mais novo, que não tem coragem para entrar numa
penitenciá, tretas, meu querido, tretas, porque a mãe encontro com
o amigo, de braço dado a passear no Rossio, à irmã, sim a que diz
estudar e trabalhar, essa galdéria, vejo-a sempre com namorados
diferentes rua acima, rua abaixo, e)
Experimenta sonhar com nuvens – Nuvens? - vou
agora sonhar com nuvens...
(e o cabrão do irmão mais novo sempre com o rabo
sentado na sala de jogos, umas vezes a jogar bilhar, outras a ver
jogar bilhar, e quando está teso, sabes como é, faz-se à vida, e
vai até Belém, engata aqui, engata ali... e o irmão que se lixe –
Sabes, meu querido? - tenho pena do André...)
Depois lembrava-me de chuva, e a chuva faz-me
recordar as árvores, e as árvores a terra, e a terra o cheiro, e o
cheiro..., um quintal esquecido no meio do capim – Talvez consiga
sonhar com as bonecas de porcelana da tia Clementina – boa, porque
não tentas?
(sinto-o triste, coitado do André)
Às vezes, lembrei-me agora mesmo, tenho medo do
sono, é isso, medo de adormecer e não acordar – Medo de morrer...
- não, não é medo de morrer, é medo, medo de não acordar, ficar
eternamente a dormir, sem pegar em livros, sem ver palavras, sem
olhar as flores . Sem ires visitar o André! - sim, também, é esse
medo que me preocupa, é esse medo que não me deixa adormecer, assim
– Assim enquanto estiveres acordado... - claro, enquanto estiver
acordado tenho a certeza que a terra não dorme, e tenho a certeza
que a noite não termina nunca, e
(triste)
E consigo ouvir uns pássaros parvos que não dormem
nunca, oiço-os toda a noite – Se calhar estás a sonhar que ouves
pássaros...! - a sonhar, eu? Eu não sonho, deixei de sonhar, não
acredito em sonhos, não
(estás tão pálido, meu querido)
Que não, porque a claridade existe para te proteger
das embaciadas línguas de fogo que a maré lança para os barcos, e
quando pensávamos que estávamos de mão dada, tu, percebias que eu
tinha deixado de existir, estavas só, como sempre, só, e eu, eu
nunca percebi a tua solidão, ausentava-me quilómetros de rio até
desaguar nas rochas juntamente com o descarregador do esgoto, e
(misturavas-te com a cidade)
E como sempre, a cidade perdidamente perdida nas
arruadas sem saída – Tens visitado o André? Como está ele? - uma
cidade penumbra com janelas de vaidade, casas que chegam ao Céu, e
automóveis que não cessam nunca de caminhar, não dormem, como ele
(triste, muito triste, mas vai-se aguentando)
E como ele, também os outros, aqueles que acordam
cedo, e correm para a cidade, fazem-se à vida, às vezes têm azar,
e é a vida que se faz a eles, outras vezes, são uns pássaros
negros, muito grandes, maiores que os edifícios – Aviões? - sim,
esses mesmo, que os levam e nunca mais regressam...
(e que nunca mais vou sair daqui – Claro que vais,
André, claro que vais).
(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha