terça-feira, 30 de abril de 2013

Qual cavalo, menino?

foto: A&M ART and Photos

Não tenham pressa da minha presença, talvez um dia, talvez, regresse, talvez, um dia, decida levantar voo e andar, e andar, até encontrar o planalto das rochas encarnadas, não, pressa não, porque um dia, eu, regressarei dos finos cortinados de espuma,
uma camisa furtada do estendal da vizinha Amélia, as calças, são do cigano Mário Zé, especialista em auto-rádios e carros de pequena cilindrada, e eu, desiludida, contigo, comigo, connosco, e os velhos sapatos pertenciam ao primo Justino,
A cabeça balança entre as mãos frígidas dos lilases argumentos sem palavras de amor, palavras de dor, ou
não às palavras,
Havia dentro de nós circos, roulotes e malabaristas, o meu pai era trapezista e a minha mãe, entre os intervalos de bailarina esfomeada, tinha um pequeno número de ilusionismo, e
nunca me esqueci do sucesso número dela, quando me colocava dentro de uma caixa de cartão, batia as palmas, e eu
Desapareceste da minha vida naquela fatídica manhã de Sábado junto ao Tejo acabado de assassinar-se, os motivos, ainda hoje desconhecidos, morte incógnita, mas presente entre nós, e tu
Eu desaparecia, ela abria cuidadosamente a caixa de cartão, remexia, remexia, virava de um lado, mostrava o outro, e o rapaz
Desapareceu de casa de seus pais, digo, desapareceu da roulote onde vivia com os seus pais um rapaz do sexo masculino, cerca de seis anos de idade, cabelo castanho e olhos verdes, vestia calções e uma camisola antiquada, calçava umas velhas sandálias de couro, e levava na mão esquerda, sim, penso que sim, espere, não sei, quase que tenho a certeza, e levava não mão esquerda um cavalo
cavalo?
Perdão, um caderno de capa ondulada e escuro, sem imagens, apenas com palavras semeadas numa tarde de vento quando os bancos de jardim ainda tinham ripas de madeira, não podres, ripas de madeira a sério, e já agora pergunto-me – Onde raio fui eu buscar o cavalo? - há cada coisa, em cada hora, a cada momento, numa rua deserta da cidade, uma feira de velharias, uma boina de um soldado da EX-URSS, compro, não compro, pensei
deve ter piolhos,
Não comprei, depois, mostraram-me os cachimbos, compro, não compro, não comprei
lembrei-me da quantidade de saliva – Do tipo... um milímetro por segundo! - desisti
Pensei,
Vou comprar um livro,
que livro – Que tipo de livro deseja? - respondi, talvez de AL Berto
Ela, Como? Quem?
pensei, que raio, nem ela conhece o AL Berto...
Desisto, desisto, e desisti, hoje sou feliz, finalmente apareci dentro de uma das caixas de cartão que a minha mãe fez um dia, num lindo espectáculo, desaparecer, cresci algures, e o meu pai hoje não trapezista, reformou-se e vive desafogadamente com uma linda reforma da Caixa, não, não aquela de cartão onde a minha mãe me fez desaparecer, é a outra caixa, e a minha mãe, hoje, abre a janela da roulote e conta o número de comboios machos que passam em frente à árvore dos telhados bolorentos, porque os comboios fêmeas, ela, deixa-as seguir, sossegadamente, como se fossem o vento numa noite de cavalos...
cavalos?
Quais cavalos, menino?
Uma tarde, numa linda tarde, estava eu com uma das mãos prisioneira de uma das barras de ferro do portão de entrada, o quintal era enorme, tinha mangueiras, e ao fundo, nas traseiras da casa, havia um galinheiro, tínhamos galinhas, patos e pombas, às vezes, passeava-se por lá um velho triciclo, outras, escondia-se debaixo da sombra, e, e nessa linda tarde, repentinamente e no intervalo entre o depois do lanche e a chegada do meu avô, vi passar em frente a mim...
Como não sabe quem foi o poeta AL Berto?
Uma menina vestida de branco, montando um lindíssimo cavalo branco,
Tem ao menos alguma coisa do Pacheco?
ele, o cavalo olhou-me, e desde então, pertence-me, e anda dentro de mim até que um dia
Qual Pacheco? O Luiz, minha senhora, o Luiz,
que não, não sabe dessas coisas, ora agora..., um cavalo
Qual cavalo, menino?

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Desenhava-te no espelho da montra do senhor Ernesto

foto: A&M ART and Photos

Percebia-se, pelas tuas nádegas de algodão, que a noite entranhava-lhes como pássaros na algibeira de um mendigo, dormiam em caixas de papelão, pobrezinhos, escreviam sobre as ombreiras do ensonado dia, “caixas simples cartão”, porque era chique, porque estava na moda, porque ao fundo da rua sentia-se o ressonar da lua, e a transpiração de saliva dos pulmões de aveia, não tínheis pequeno-almoço, preçário, cardápio ou subsídio diário, uma sandes de pouca coisa, ou quase anda, chorava no interior de duas finas fatias de pão, sem saberdes que lá fora, ao longe, de uma escada em madeira, desciam os anjos e os gemidos silêncios da verdura que cobrem os campos da aldeia, como pedras, lajes de granito, lápides em cimento, e aos poucos, de poucos, apagariam-se-lhes todas as letras da literatura pura e nua, entre desenhos e sílabas, entre candeeiros de vidro e lâmpadas de papel,
gostava muito de ti,
Desenhava-te no espelho da montra do senhor Ernesto, em traços finos, colocava-te sobre os olhos um fio doirado de cabelo, dava-te lábios com sabor a chocolate, tinha-te na boca como oxigénio essencial à minha respiração, ouviam-se coisas mortas, objectos despedidos, canas de pesca, carretos e chumbeiras, bóias, anzóis e as pesadíssimas botas de borracha, e mesmo assim, ouvia-te
gosto de ti,
Percebia-se, pela ausência de cubículos para todos, que nem nus somos iguais, uns, mais diferentes do que outros, e havia sempre um que ficava sem onde pernoitar na fria noite de Janeiro, aqui, porque lá, bastava-lhe cobrir-se com um ramo de palmeira, havia um largo, eles abraçaram-se longamente e esqueceram-se que eram uma rocha à beira do rio, do largo, mais acima, uma duas palmeiras adormeciam já devido às distantes horas que estavam previstas para regressarmos, nem um único som, uma única palavra, nada
só e só o beijo da despedida,
Só e só, e não muito mais, como anos depois, as palmeiras continuam adormecidas, mais velhas, claro, mas ainda estão vivas, não há muito tempo, estive com elas, almoçamos juntos, e recordamos noites, noites, noites que eu mesmo já tinha esquecido, falaram-me de uns pássaros que poisavam nos nossos ombros, e também de umas flores, se não estou enganado, isto é, se não fui enganado por elas, de umas flores amarelas, ou cinzentas, ou
gostava muito de ti,
Ou incolores, como os beijos, ou indolores, como as ondas do Oceano que ficávamos a olhar até desaparecerem sobre os telhados de Lisboa, o cheiro do rio entrava dentro dos nossos corpos escondidos em caixas de papelão,
“caixas simples cartão”
E hoje, quando estou no largo, debaixo das velhas palmeiras, ao longe a lua em movimentos descoordenados, sem luz de candeeiro, dos minguados olhos que o sol deixou sobre a mesa-de-cabeceira, e derramadas sombras construindo imagens na esplanada dos arbustos com braços negros e pernas encarnadas, perguntava-te pelas cartas perfumadas, e tu
queimei-as, porquê?
Apenas pelo perfume, porque pelas palavras perdia o sentido das letras, deixei de amar palavras, frases, livros, cadernos, poemas, “... e toda a merda comestível...”, só e só pelo perfume, só e só quando desce a noite e de barriga para o ar, eu deitado, olho o tecto, vejo estrelas azuis, estrelas pretas, estrelas... como chuva friorenta em Primavera, e só e só, tenho saudades do perfume
das amoreiras em flor, das mimosas, de deitar-me no chão e fazer desenhos imaginários no céu nocturno da cidade, a cidade proibida, com calçadas, ruas, ponte e pontões, “putas” e “cabrões”, a cidade dos barcos com ferrugem, a cidade das casas comestíveis depois da sobremesa, e homens com alegria, e homens em bebedeira em fila Indiana para ter acesso a uma merda de uma caixa de papelão,
“uma linda caixa em fino cartão, três assoalhadas, uma varanda para o Tejo, casa de banho completa, e ascensor, e muitas cartas, cartas de amor, todas elas, perfumadas...”
E eu dava-lhe a mão, e passávamos a noite dentro do ascensor, em subidas, em descidas, e às vezes
parávamos, e esquecíamos-nos que algum dia estivemos debaixo de duas velhas palmeiras a construir o beijo mais literário de sempre, o beijo poético
E às vezes,
o beijo fatídico,
E às vezes adormecias nos meus braços...

(ficção não revisto)
“Alguém vai dizer: ficção o caralho...!”
@Francisco Luís Fontinha

domingo, 28 de abril de 2013

Sabia-te quando terminavas nos sonhos

foto: A&M ART and Photos

(ao Rei dos Sonhos)


Sabia-te quando terminavas nos sonhos e caminhavas no corredor da saudade, ouvia-te dançar sobre o mosaico porcelana da piscina em forma de rua, perdida, tu, corrias em direcção às escadas de acesso da rua dos pequenos beijos de porcelana, dormias entretanto, profundamente, pensava eu, quando olhava nos teu olhos cerrados as imagens reflectidas de uma louca e antiga máquina de slides, o picotado desenhado numa fina película de plástico retirada a um saco incolor de supermercado, finíssima, ela não maior do que um carro de linhas, que servia de carreto que com uma manivela de arame fazia rodar as imagens em frente de uma lâmpada, dormias, dormias, ainda dormes, e eu, permanentemente às voltas com a manivela a inventar imagens picotadas numa tira de plástico com uma agulha esquecida juntamente com o dedal da minha mãe,
a inventar imagens desde 1976,
Fundiam-se-lhe lâmpadas que só posteriormente percebíamos a escuridão das equações diferenciais que tínhamos para resolver, elas, como eles, poisavam sobre a mesa da sala de jantar, ficavam lá, perdidas, fazíamos-las esquecidas, e às vezes, poucas, só com a ajuda de drageias, elas, as equações (macho e fêmea) acordavam do sono incrédulo que Deus nunca acreditou e aos berros
preguiçosos,
preguiçosas,
Sabia-te quando terminavas, acordavas, abrias as janelas do teu corpo, e deixavas entrar a luz que o espelho do guarda-fato absorvia da velha máquina de slides, havia imagens dentro de ti, e só quando te acariciava os seios, e só quando te beijava os lábios de sonâmbulo cravo vermelho, e só
que desenhos mais esquisitos, como corredores, pássaros, migalhas de aço e sobras de vento,
E só quando deitava a minha cabeça nas tuas coxas, sentia eu, sentias tu, as imagens todas, as de ontem, as de antes de ontem, e as imagens de infância, saíam do espelho do guarda-fato, sentavam-se um pouco sobre a mesa-de-cabeceira, apenas para nos contemplarem, e só depois, começavam a entrar em ti, e no fim, eu entrava também, e tinha como missão, encerrar a porta, hermeticamente, e dentro de ti, saltava, brincava, dormia, como tu
a inventar imagens desde 1976,
Como tu, dentro de uma piscina, caminhando a passos apressados como se a rua estive quase a fechar-se, e a carapaça de tartaruga aos poucos, em pequeninos milímetros de cada vez, até todo o tecto baixar, e tu, desapareceres, em corrida, dentro de água com o cheiro a saudade, com o silêncio dos cobertores suspensos nas pálpebras tuas, que dormias, sossegadamente como um anjo louco, de caligrafia como pequenas mandíbulas de areia, como eu, desesperado procurando por ti, dentro de água, dentro de uma caixa de sapatos
onde funcionava uma pequena máquina de slides,
Com refrigeração,
a fundir lâmpadas desde1983,
E tubos de néons sobre a porta de entrada, “sabia-te quando terminavas nos sonhos e caminhavas no corredor da saudade, ouvia-te dançar sobre o mosaico porcelana da piscina em forma de rua, perdida, tu, corrias em direcção às escadas de acesso da rua dos pequenos beijos de porcelana, dormias entretanto, profundamente, pensava eu, quando olhava nos teu olhos cerrados as imagens reflectidas de uma louca e antiga máquina de slides, o picotado desenhado numa fina película de plástico retirada a um saco incolor de supermercado”, e uma campainha de serviço, um gajo feio, como eu, devidamente fardado a preencher os impressos para a atribuição de subsídios para a construção de máquinas de slides, e eles
apenas com uma caixa de sapatos, uma lâmpada, duas pilhas de volte e meio, alguns fios eléctricos, um pedaço de vidro que fazia de lente, e cerca de cinquenta centímetros de plástico com cerca de seis centímetros de largura, e um carrinho de linhas, e claro, a manivela em arame... e um pedaço de pano que apelidamos de lençol,
Com refrigeração?
e desenhos pacientemente desenhados com uma agulha,
A fundir lâmpadas desde1983,
pacientemente eu, a perder parafusos desde Janeiro de 1966.

(não revisto; parte deste texto não é de ficção e aconteceu com o meu amigo de infância - infelizmente já falecido - JÚLIO)
@Francisco Luís Fontinha

Amargos poemas da morte

foto: A&M ART and Photos

Há fogo nos teus olhos minguados pelo silêncio da chuva
quando o meio-dia de um suicidado relógio
cai sobre as pequenas lágrimas de granito
como se os amargos poemas da morte
tivessem vida e começassem a transpirar sílabas furtivas,

Há fogo nos teus olhos
como janelas cristais dentro de hipercubos
como lábios de areia
da lareira dos sonhos
as tristes paisagens dos teus seios de amêndoa,

Há tanta coisa dentro de ti
meu cansado amor sem teres a destemida coragem de me olhar
escrever ou pintar no muro recheado de ervas e sanzalas imaginárias
os poucos sonhos que as minhas mãos deixaram no teu rosto argamassado
pelas geadas marés do vidro em planícies embalsamadas pelo desejo da paixão,

Há fogo nos teus olhos minguados pelo... da chuva
que te esqueces das poucas palavras que ainda vivem dentro de mim
como uma roseira bravia e ensanguentada pelas nuvens em demanda...
há meu amor
madrugadas fingidas em noites acordadas tuas fantasias,

E que não sabias
que há árvores à nossa espera num jardim invisível
onde passa um rio em corridas apressadas
adormece no mar
do fogo teus olhos minguados pelo silêncio da chuva.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

sábado, 27 de abril de 2013

De aço envergonhado

foto: A&M ART and Photos

Haverá mares suficientes para eu me esconder, sendo eu, um barco sem motor, com uma velha vela, sempre, e sempre, à espera, à espera que acorde o vento, à espera que acorde o meu corpo de aço, me levante, abra a janela da maré, e oiça o teu coração,
e falta-me a coragem para dizer que te amo, alga silenciosa dos rios amordaçados,
Haverá assim ventos suficientes para te trazerem até mim? E se tu nunca apareceres, e se tu, não sei, se tu uma rocha que vive no fundo do mar, como saberás, eu não sei nadar, e se mergulhar, certamente, e pelas leis da física, jamais voltarei a olhar a luz nocturna das ruas de Lisboa, pensar que dos néons há galerias de arte que esperam visitantes, e há caves a transbordar de suor, e há sótãos a apodrecer, sobre a cidade, quando regressa o vento, quando tu desapareces para posteriormente, ao outro dia, ver-te sentada numa esplanada, como se não me conhecesses, como se nunca tivéssemos dormido juntos, inventando sonhos juntos, desenhando desenhos, não juntos, porque tu, apenas me olhavas embrulhados nos pincéis e nas tintas e nas telas e nas minhas loucuras, sempre eternas, sempre desérticas, como as Primaveras, como as dália e as margaridas, sobre a terra, à espera pelo regresso do vento, de vela pronta
zarpar,
Prometer, imaginar ser amado dentro de um cubo de vidro, apaixonado, eu, um barco sonolento, de aço, envergonhado, não adianta semear flores numa laje de cimento. não adianta escrever, ler, não adianta amar fingindo viver, não adianta caminhar,
não adianta fingir ser feliz quando somos a pessoa mais infeliz do universos, não adianta, não adianta mentir fingindo que estamos bem, quando todos os caminhos, todos os rios, e todas as luzes morreram numa noite de insónia,
Não adianta acreditar, sonhar, não adianta ter esperança...
Também tenho o direito de gritar e parar de fingir que está tudo bem,
“tão triste eu quando acorda a noite e cresce e cresce sobre as angustias do jardim um deus louco com uma perna de pau, tão triste eu quando as tuas mãos ausentes percorrem o meu corpo sitiado entre grades imaginárias de aço inoxidável e fios de seda e terminam viagem nas minhas mamas; primeiro regressa a noite,
depois ausentas-te juntamente com a noite e voas de árvore em árvore até mergulhares nos uivos dos meus olhos castanhos, depois, tão triste eu quando acorda a noite, depois a tempestade suspensa no corredor, passas apressadamente e não me olhas, depois, depois caiem todas as nuvens sobre este mísero divã e do relógio depois, depois as minhas mãos começam a envelhecer, a envelhecer depois o cortinado, a janela sem vidros, a envelhecer este quarto de pensão enfeitado de área de serviço, depois o relógio tomba silenciosamente no pavimento e morre o tempo,
tão triste eu. Acorda o chocolate na minha boca e imagino-te sentado no divã a fingires que do outro lado da rua vive um rio com barcos, que do outro lado da rua, tão triste eu, do outro lado da rua...
tão triste eu Meu Amor ausentada de ti.”
E conheci uma rosa que roubei do jardim numa noite de Agosto inventado num livro que poisava na mão de uma menina, os silêncios da noite ausentes de estrelas e alecrim, havia no ar o perfume do desejo, havia o perfume da noite submerso na paixão da literatura e da poesia, eu e a menina morremos, inventados no livro onde envelheceu a rosa e ainda hoje habita, tristemente só, tristemente inventada das palavras escritas apressadamente antes de acordar a noite,
não adianta acreditar, sonhar, não adianta ter esperança...
Não acredito em reencontros porque quando se perde alguma coisa é para sempre ou então, ou então essa coisa não foi perdida,
se eu escrever numa folha de papel e a amarrotar e a esconder dentro de uma gaveta, um dia, mais tarde poderei reencontrar esse manuscrito,
Mas se optar por a rasgar e destruir o reencontro será impossível,
“Poema em cio”

Desesperadamente
as minhas palavras
coladas no vidro da morte
em pedacinhos amargos
a boca do poema
em cio
mergulha ele dentro do silêncio
no desejo dos barcos entre as estrelas de papel
e a noite de fingir
assisto ao fim da noite
quando das vaginais madrugadas
ouvem-se os uivos das acácias em flor

desesperadamente
as minhas palavras
nos meus pequenos desejos de silêncio amargo
caminhar dentro do mar
antes de acordar o pôr-do-sol

dos vidros da morte
as minhas mãos em crustáceos de glicerina
os cogumelos da vaidade em sombras sibilas
e a laranja do amor
aos poemas loucos
as migalhas do aço inoxidável
nos olhos do deus do cio
desesperadamente

(Desesperadamente
as minhas palavras
coladas no vidro da morte)

e a morte vive no meu corpo
desde o dia que acordei poema em cio
e todas as janelas da poesia não tinham visibilidade para o mar
e todos os barcos
e todos os barcos ouviam-se dentro das estrelas de papel...


Percebes agora porque haverá sempre mares suficientes para eu me esconder, sendo eu, um barco sem motor, com uma velha vela, sempre, e sempre, à espera, à espera que acorde o vento, à espera que acorde o meu corpo de aço, me levante, abra a janela da maré, e oiça o teu coração... e depois
dir-te-ei que te amo loucamente, sem medo, sem medo de perder.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

A cidade dos rios

foto: A&M ART and Photos

Não encontro esses olhos mergulhados em pedacinhos
de som da cidade dos rios
não encontro os cabelos do vento suspenso num livro de poemas
entre mãos e tristezas tardes onde ancora o silêncio provocado
pelos teus beijos de cianeto,

Não encontro transeuntes na tua cidade
com mãos para me acenarem
com pernas
se possível
para me pontapearem quando me transformo em canino rafeiro...

Não encontro as charruas que escrevem nos montes bravios
sílabas vestidas com água fresca
e enxadas que provocam na solidão
feridas e dor e sonhos em frente às montras de uma livraria
sem saberes que te sentas nas planícies dos cisnes,

Não encontro a fogueira dos teus lábios
sobre a lareira da tua boca
fechada
ausentada de mim
como as horas de Sábado depois de partir a noite,

Depois
depois de ficares aprisionada a um banco com ripas de madeira
a inventares no calendários das cidades
nomes de ruas e ruas com edifícios que têm nas pálpebras pequenas migalhas de cimento
como o cianeto dos teu beijos antes de me abraçares...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Gaivotas com pequenas pinceladas de neblina

foto: A&M ART and Photos

Sob o cinzento céu passeavam-se as gaivotas com pequenas pinceladas de neblina que os barcos a vapor semeavam nas ruas da cidade, havia algumas árvores, tristes árvores, havia uma mulher com os braços cruzados que sonhava com o mar e com o vento que transporta as gaivotas, as gaivotas que poisam sobre as árvores prateadas, quando todas as luzes se apagam como quando os espelhos cessam de projectar imagens, lágrimas que caiem da mesa-de-cabeceira e rolam sobre as tábuas indolores do soalho, alguma parte dele, apodrecida, outra, voando como as gaivotas, sob o cinzento céu de Abril, e outra
doente
E da terra inclinada, projectam-se contra o tronco débil das pequenas árvores, rochas e objectos de pequeno porte, os vidros das janelas que ajudam a proteger do silêncio as pequenas árvores, partem-se, estilhaçam-se e derramam-se como líquidos vaidosos sobre a neblina porcelana dos vestidos das bonecas das meninas que brincam debaixo das oliveiras, pequenos torrões de açúcar aguardam pela sinfonia melódica das cantigas endiabradas que aos poucos se vão ouvindo do pátio da escola primária, um rapaz de calções
doente, com pequenas pedras da calçada, parte os vidros da escola, joga ao espeto com um ferro pesado e aguçado, um dia quase que ficou com o pé esquerdo prisioneiro no recreio da escola, furou-lhe a bota e só abrandou quando quase atingiu o centro da terra, aí, percebeu a razão de não caírem as árvores, os edifícios das cidades, que em casos especiais, quase chegam ao céu, e tudo à sua volta
Estranho, os calções baloiçavam entre duas cordas de nylon, um travessão de madeira servia-lhe de assento, e depois de um ponto final, um novo paragrafo e perdoar-lhe
amar-te-ei?
E o cinzento céu a misturar-se com o solitário vapor dos barcos de cartolina, e porque as gaivotas de papel com pequenas pinceladas de neblina não sentem o cheiro da nafta horrenda que se ouvia nos portos de embarque, o miúdo de calções, quase em pequenos vómitos, subiu as escadas do paquete abandonado, enorme, com tantas janelas que quando tentou contá-las, desistiu, porque eram muitas, porque ainda não sabia contar,
porque o cheiro envenenado da nafta parecia madrugadas em bolor no tronco das pequenas árvores da menina com os braços cruzados,
Amar-me-ás?
Porque o cheiro envenenado
Amar-me-ás? Perdoar-lhe como os marinheiros perdoam às marés o sombreado dos cais e dos soníferos para a constipação e dores de cabeça, e a diarreia, e para todas as desilusões do amor depois de adormecer a tempestade, depois de adormeceres, deitares a cabeça sobre uma almofada de xisto, e sonhares que
se amanhã fosse Sábado... pegava no vapor e zarpava... abria a janela, borda fora com o diário de bordo, passava pelas pequenas árvores onde uma mulher com os braços cruzados brinca com as meninas das bonecas vestidas com a porcelana fina, e depois
De chegar à cidade, percorrer todas as ruas como as procissões de aldeia, fazia-me à literatura, imaginava imagens em espelhos de guarda-fato que deixei numa pequena casa em Vila de Migalhas, construía personagens do tamanhos das pequenas árvores, com corações sofridos, com braços cansados, com pernas distantes das temperaturas íngremes que os velhos termómetros de mercúrio desenhavam nas ardósias da contemplação de uma fotografia em plena Primavera,
doente
Amar-me-ás?
amar-te-ei?
E a bailarina, enquanto não descruzar os braços e folhear o livros dos sonhos, não poderá nunca responder
Amar-me-ás?
Não sei, ainda não sei...
e eu
amar-te-ei?
Só depois do cinzento céu se alicerçar nas pequenas árvores, e eu, tu, elas, e elas, deixarem de brincar, despirem a fina porcelana e inventarem novas imagens nas ruas da cidade encharcadas com o velho vapor do barco de cartolina
e eu, um rapaz de calções
doente, com pequenas pedras da calçada, parte os vidros da escola, joga ao espeto com um ferro pesado e aguçado, um dia quase que ficou com o pé esquerdo prisioneiro no recreio da escola, furou-lhe a bota e só abrandou quando quase atingiu o centro da terra, aí, percebeu a razão de não caírem as árvores, os edifícios das cidades, que em casos especiais, quase chegam ao céu, e tudo à sua volta,
Depois de subirem as escadas, tocam suavemente o céu.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Desenho de Francisco Luís Fontinha

Encarnadas lágrimas que o silêncio inventa

foto; A&M ART and Photos

Da caverna envergonhada onde se esconde a saudade, oiço as encarnadas lágrimas que o silêncio inventa no rosto da menina sentada no banquinho de madeira junto às roseiras brancas, e bravias, e do teu corpo nublado desenham-se sobre as mesas de granito os carris ilimitados, alguns, que me transportarão até ao Douro, outros, vão deixar-me a meio-caminho, o dúctil, a escancarada melodia sobre as marés de sémen pensando serem as vozes do destino em revolução, havia greve dos poetas e ficcionistas, havia músicas com palavras, e palavras sem músicas, e comboios que fingiam caminhar sobre os carris de aço, os próprios e verdadeiros carris do iluminado jardim das agonizantes bolhas de bolor que se faziam crescer nas dobradiças dos pilares embainhados que se ouviam das
cavernas
Das tuas nádegas, também elas, em greve, de fome, de zelo, de palavras,
hoje não se escrevem palavras, pedimos desculpa pelo incómodo,
“Por motivos de greve, hoje fechados”
Uma escarpa com lençóis de purpura fina sobre uma mesa de vidro, um pequeno livro, aberto, numa página sem numeração, sem significado nenhum, um beijo surge da capa do livro, aberto, sobre a mesa de vidro, um beijo com três cores, um beijo que iluminará a caverna envergonhada, aquela, de há pouco, onde se esconde a saudade,
a minha saudade,
A voz que precisa de alimento, as coxas do vento que precisam de uma vela, um mastro, ou
a gaivota do tio Joaquim,
Ou uma velha Caravela, só, só e só, e companhia limitada, nenhuma, só e falida, falida como os porcos bravos das pocilgas nocturnas, invisíveis, quando das viagens a S. Pedro do Sul, e chegava lá, não cansado, não triste, desiludido, chegava lá feliz, contente, como se o ar que se respirava em Carvalhais fosse mais leve do que o ar respirado em Alijó, e mais pesado, do ar que eu estava habituado a respirar em Luanda, e mesmo assim, mal saía do carro, beijava os meus avós, e corria loucamente para a eira, abria a porta do espigueiro ou canastro, e com a paciência de um desiludido com as nuvens destes longínquos Oceanos, começava a contabilizar as espigas loiras do milho, desistia, e sentava-me sobre o granito da entrada, e ao longe, conversava com dois espantalhos que o meu tio Serafim tinha construído para afastar os pássaros do cereal, e na altura, eu
não percebo porque fazem isto aos coitados dos pássaros,
E coitados uma ova, são espertos, e começaram a aprender a viverem com os espantalhos, e quando me apercebia, via-os sobre eles, ia até lá, e todos “cagados”, como as estátuas, ou como os homens iguais a mim, que quando se passeiam pela rua, debaixo de árvores, e
com tanto metros quadrados de superfície tinham logo de “cagar-me em cima de mim estes filhos da puta” mas é este o meu destino, há pessoas que nascem para serem doutores em seis semanas, há pessoas que nascem para serem ricos em apenas cinco lições, e há pessoas, como eu, que nasceram para servirem de sanita aos pássaros, e mesmo assim, confesso-te que gosto deles e que me fascinam,
Da caverna envergonhada onde se esconde a saudade, oiço as encarnadas lágrimas que o silêncio inventa no rosto da menina sentada no banquinho de madeira junto às roseiras brancas, e bravias, e do teu corpo nublado desenham-se sobre as mesas de granito os carris ilimitados, alguns, que me transportarão até ao Douro, e só agora percebo que a menina sentada no banquinho de madeira, és tu...
mas... afinal quem tu és?
E talvez sejas apenas um desenho mergulhada em palavras e copos com vodka como aqueles que deixamos sobre uma mesa num bar em cais do Sodré, claro
ainda tu eras menina, e ainda eu, não sabia que era eu,
Assim éramos nós antes de inventarem estas coisas todas que nãos nos servem de anda.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha