Visitas-me enquanto ardem
na lareira os pequenos pedaços de sono, na parede da sala, as minhas mãos
envenenadas pelo mar salgado da infância, olham-te, e percebo que me morres a
cada mínimo cansaço da manhã,
Curiosamente,
O vento leva-te de mim à velocidade
de um simples olhar,
E olho-me no espelho
silenciado das palavras que sobejam das janelas entreabertas e que nos
transportam para as noites de paixão.
Define-me paixão.
Uma pedra preciosa nas
mãos de Deus.
Não percebi, mas acredito
que o mar começa a correr para as montanhas e que os pássaros que poisam sobre
as árvores são apenas sombras em papel.
Um olho de vidro,
come-nos, como nos comeu a serpente que todas as manhãs de Primavera entrava em
nós e nos libertava da escuridão,
A escuridão dos teus
lindos olhos de pequenino incenso,
Abro-te e beijo-te,
enquanto me aprisiono às cortinas de espuma que o mar trouxe e que voaram sobre
o teu cabelo,
Sou omnipotente,
Enquanto me mato desta
janela de vidro,
Oiço-te,
E beijas-me.
Então, sabendo que sou um
crucifixo de medo, que transporto nos braços as algemas da timidez, beijo-te, e
dos meus olhos pincelados de mar, transformo-me num barco que beija, transformo-me
num barco que ama, transformo-me num barco que arde nos teus lábios,
Como assim, barco?
Um barco que foge da
multidão,
Sentindo o medo de que
esta lareira em paixão se extinga, e que sendo um barco, a luz diáfana da
madrugada me embriague e me leve para ti, como esse pedaço de só que suspendes
na parede nua de uma sala nua de uma madrugada nua de um corpo nu,
O teu corpo, mergulhado
nos meus dedos.
Beijo-te.
Beijas-me e foges,
Enquanto tenho na
algibeira a pobreza e a melhor das riquezas,
Os meus olhos, meu
querido?
E pergunto-me,
O que têm os teus olhos
que os meus olhos não têm?
A paixão,
E que Deus nos perdoe,
Como dizem que perdoou,
Enquanto os meus lábios
mapearam cada milímetro quadrado do teu corpo travestido de seda púrpura e
lantejoulas envergonhadas,
Em que pensas, meu
adorado barco de insónia?
Nas metades da laranja
dos primeiros dias da semana,
E o fogo inventa em ti as
pobres migalhas que o pão deixou sobre a mesa, a mesma mesa onde descobriste
que as minhas mãos eram apenas poemas incendiados numa qualquer lareira que
traziam os teus braços ao meu pescoço, e
Como assim, barcos de
ninguém?
Sem nome, sem identidade,
sem palavras e sem destino
O sonho?
Porque são frias as
manhãs dos teus lábios, meu amor?
E porque choram, sim, e
porque choram as nuvens do teu cabelo?
Uma avenida engalanada
sempre que chove e sempre que chove,
Sem destino,
Este pobre menino de
porcelana falsificada pelas mãos do artesão que traz no peito os cigarros da
noite anterior e que tal como o barco
Arderam em ti como
camuflados cinzentos que o orvalho deixa nas escadas de acesso ao sótão.
Visitas-me enquanto ardem
na lareira os pequenos pedaços de sono, na parede da sala, as minhas mãos
envenenadas pelo mar salgado da infância, olham-te, e percebo que me morres a
cada mínimo cansaço da manhã,
Curiosamente,
Olho-me nessa parede de
sono,
E acredito,
E sei;
Sou apenas eu, o tímido e
envergonhado marinheiro de uma Lisboa mergulhada no falso oiro, nas falsas palavras,
nos falsos apitos em triste tesão
Como um cacilheiro de
cigarro na boca à procura de engate,
Entre os parêntesis dos
teus seios,
As minhas mãos erguidas
para Deus.
Oiço-te.
Porquê?
Alijó, 13/11/2022
Francisco Luís Fontinha
(ficção)