segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Dois cêntimos de euro

 Que faço eu com estas flores

Aprisionadas na minha mão

Onde guardo as minhas palavras

Onde poiso o meu coração

E às vezes

 

Tenho medo

Medo de trocar as flores por pão

Ou o pão por palavras

Vendo palavras invisíveis comestíveis e belas

Cada uma

 

Dois cêntimos de euro

E depois de vender as palavras

Como o pão

Uma sandes de flores

Um café

 

E um cigarro

E sento-me em frente à baía

Oiço as lágrimas do mar

Grito

E escondo-me sob as palmeiras

 

E durmo docemente nos teus braços

Entre picos

E roseiras

Entre livros

Muitos livros que ardem nas lareiras

 

 

 

 

Alijó, 14/11/2022

Francisco Luís Fontinha

domingo, 13 de novembro de 2022

Este mar salgado

 Visitas-me enquanto ardem na lareira os pequenos pedaços de sono, na parede da sala, as minhas mãos envenenadas pelo mar salgado da infância, olham-te, e percebo que me morres a cada mínimo cansaço da manhã,

Curiosamente,

O vento leva-te de mim à velocidade de um simples olhar,

E olho-me no espelho silenciado das palavras que sobejam das janelas entreabertas e que nos transportam para as noites de paixão.

Define-me paixão.

Uma pedra preciosa nas mãos de Deus.

Não percebi, mas acredito que o mar começa a correr para as montanhas e que os pássaros que poisam sobre as árvores são apenas sombras em papel.

Um olho de vidro, come-nos, como nos comeu a serpente que todas as manhãs de Primavera entrava em nós e nos libertava da escuridão,

A escuridão dos teus lindos olhos de pequenino incenso,

Abro-te e beijo-te, enquanto me aprisiono às cortinas de espuma que o mar trouxe e que voaram sobre o teu cabelo,

Sou omnipotente,

Enquanto me mato desta janela de vidro,

Oiço-te,

E beijas-me.

Então, sabendo que sou um crucifixo de medo, que transporto nos braços as algemas da timidez, beijo-te, e dos meus olhos pincelados de mar, transformo-me num barco que beija, transformo-me num barco que ama, transformo-me num barco que arde nos teus lábios,

Como assim, barco?

Um barco que foge da multidão,

Sentindo o medo de que esta lareira em paixão se extinga, e que sendo um barco, a luz diáfana da madrugada me embriague e me leve para ti, como esse pedaço de só que suspendes na parede nua de uma sala nua de uma madrugada nua de um corpo nu,

O teu corpo, mergulhado nos meus dedos.

Beijo-te.

Beijas-me e foges,

Enquanto tenho na algibeira a pobreza e a melhor das riquezas,

Os meus olhos, meu querido?

E pergunto-me,

O que têm os teus olhos que os meus olhos não têm?

A paixão,

E que Deus nos perdoe,

Como dizem que perdoou,

Enquanto os meus lábios mapearam cada milímetro quadrado do teu corpo travestido de seda púrpura e lantejoulas envergonhadas,

Em que pensas, meu adorado barco de insónia?

Nas metades da laranja dos primeiros dias da semana,

E o fogo inventa em ti as pobres migalhas que o pão deixou sobre a mesa, a mesma mesa onde descobriste que as minhas mãos eram apenas poemas incendiados numa qualquer lareira que traziam os teus braços ao meu pescoço, e

Como assim, barcos de ninguém?

Sem nome, sem identidade, sem palavras e sem destino

O sonho?

Porque são frias as manhãs dos teus lábios, meu amor?

E porque choram, sim, e porque choram as nuvens do teu cabelo?

Uma avenida engalanada sempre que chove e sempre que chove,

Sem destino,

Este pobre menino de porcelana falsificada pelas mãos do artesão que traz no peito os cigarros da noite anterior e que tal como o barco

Arderam em ti como camuflados cinzentos que o orvalho deixa nas escadas de acesso ao sótão.

Visitas-me enquanto ardem na lareira os pequenos pedaços de sono, na parede da sala, as minhas mãos envenenadas pelo mar salgado da infância, olham-te, e percebo que me morres a cada mínimo cansaço da manhã,

Curiosamente,

Olho-me nessa parede de sono,

E acredito,

E sei;

Sou apenas eu, o tímido e envergonhado marinheiro de uma Lisboa mergulhada no falso oiro, nas falsas palavras, nos falsos apitos em triste tesão

Como um cacilheiro de cigarro na boca à procura de engate,

Entre os parêntesis dos teus seios,

As minhas mãos erguidas para Deus.

Oiço-te.

Porquê?

 

 

 

 

 

Alijó, 13/11/2022

Francisco Luís Fontinha

(ficção)

Janela entre dois corpos de luz

 Olhas-me

Olhas-me pendurado nesse eterno silêncio

Como se eu fosse uma janela virada para a noite

Sabendo nós

Que a noite é apenas um cortinado embrulhado na timidez da alvorada

 

Olhas-me

Enquanto do outro lado de mim

Uma lâmina de ossos atravessa-me o peito

E as palavras que te escrevo

Morrem quando se esconde o sol nos teus olhos de amêndoa

 

Mesmo assim

Olhas-me nesse imenso Oceano de escuridão

Olhas-me

E sentas-te nos meus olhos invisíveis

Que transportam a luz neste enorme acelerador de partículas

 

A que chamam vida

Olhas-me

E incendeia-me quando lanças sobre mim

As primeiras chuvas da manhã

Sem que percebas que choro

 

E olhas-me

Olhas-me

Enquanto estou suspenso nesse inanimado pedaço de parede

Quando podíamos ser um barco

Perdidos em alto-mar

 

 

 

 

Alijó, 13/11/2022

Francisco Luís Fontinha

Complexas equações matemáticas

 Podíamos falar de Deus

Podíamos falar dos teus lábios

Ou dos teus olhos

E entre Deus e os teus lábios e os teus olhos

Prefiro falar dos teus lábios e dos teus olhos

 

Porque Deus

Uma complexa equação matemática

Habita no quadriculado caderno das tuas mãos

E Deus

Esqueceu-se de mim

 

Não

Não estou revoltado

Porque Deus

Nunca conseguirá escrever nos teus lábios

Nem desenhar nos teus olhos

 

E eu

Que não sou Deus

Escrevo nos teus lábios

E desenho nos teus olhos

 

Equações de sono

Movimentos uniformes em direcção às tuas coxas de silêncio

E Deus

Nunca o poderá fazer

Porque Deus é uma complexa equação matemática

 

E como todas as complexas equações matemáticas

Não escrevem nos teus lábios

Não desenham nos teus olhos

Mas posso sempre invocar a morte

 

Uma fotografia sem nome

Que com o passar do tempo

Envelhece

Como todas as fotografias sem nome

Depois recebo uma carta tua

 

Onde te despedes do meu corpo

Como eu

Todas as noites

Me despeço do meu corpo

Até que acordo e sinto na mão

 

Todos os desejos do mar

E todas as fotografias sem nome

E vejo a extinção das estrelas que os teus olhos vomitavam

Silêncios de luz

E paixões de Outono

 

Se me ouves

Desenha-me nas tristes alvoradas

Das mãos de Deus

E sempre que o dia acordar

Inventa-me neste pequeno círculo com olhos verdes

 

E se Deus um dia te visitar

Não tenhas medo

Porque como todas as complexas equações matemáticas

São apenas complexas equações matemáticas

E hoje o mar está revoltado com o meu corpo em tristes cinzas de melancolia

 

 

 

 

 

 

Alijó, 13/11/2022

Francisco Luís Fontinha

Radiografia de insónia

 Trazias-me o sono envenenado

Que a noite lançava nas pequenas esquinas de luz

E não sabias que dentro de mim

Uma radiografia de insónia

Gritava na madrugada

 

Depois

Abria a janela onde podia ver as lágrimas do poema

E percebia que dos teus olhos

Uma mão invisível me tocava

Como tocam as flores nas rugas do sol

 

Pegava nas pedras ausentes que a calçada

Me atirava

Pegava nas palavras que da tua mão se erguiam

Sobre o meu corpo

Em putrefacção nos libertados ossos do mar

 

E a morte já me pertencia

O medo

Quando as lâminas do desejo

Se abraçam aos meus braços em suicídio

Quando um pequeno barco zarpa dos teus lábios

 

Trazias-me o sono

O derradeiro veneno que lanças nas águas envergonhadas

E das tristes paredes da cidade em combustão

Um espelho suspenso na manhã

Cortava-me a cabeça e vinha a mim o medo do regresso

 

 

 

 

Alijó, 13/11/2022

Francisco Luís Fontinha

sábado, 12 de novembro de 2022

Lágrima de sono

 Meu amor, hoje pertenço-te como me pertencem as estrelas em papel das tuas lágrimas, quando da noite, sem que ninguém percebesse, trazias a mim as palavras semeadas das primeiras chuvas da manhã, e sabíamos que os pássaros nocturnos do Inverno poisavam nas tristes árvores das tuas mãos,

E sabíamos que um dia vinham a nós os triângulos da madrugada,

Meu amor, hoje pertenço-te como pertencem as espingardas das alegres marés do infinito amanhecer,

Um dia,

Tristes,

As palavras do teu olhar.

Vivíamos nas margens invisíveis do rio sem nome, e entre as pontes do sono, vinham a nós as sombras dos velhos aviões que sobrevoavam as mangueiras entre danças no quintal de Luanda, o triciclo, ensonado, cantava quando o miúdo dos calções lhe pegava na mão

E ele,

Não, mãe, não.

O medo.

A LHÁ lá ao fundo, e suspenso no pescoço da mãe, que ambos não ultrapassavam os quarenta e cinco quilogramas, desenhava pequenos círculos de luz sobre uma LHÁ até perder de vista, depois, vinha novamente o triciclo, e ambos sabíamos que em breve regressaria a noite aos lábios da Princesa lunar, como regressaram muito mais tarde todas as pedras e todas as folhas das árvores em despedida,

O medo.

Da LHÁ, todas as tardes de Domingo, erguiam-se pequeninos corações de prata e percebia-se que dos seus olhos lacrimejantes da maré dos sonhos, um pedaço de paixão poisaria na sua mão, como muitos anos mais tarde, poisaram as nuvens sem nome.

Depois, um dia, esqueceu-se de acordar.

A janela tinha ficado aberta, e a noite quase a terminar, escrevia poemas sobre o lençol desossado do corpo putrefacto na infinita madrugada, e como todas as madrugadas, uma fina lâmina de paixão abraçava-a e beijava-lhe cada pedacinho de milímetro quadrado do corpo, e o caule e as folhas, murchas, deitavam-se sobre a sombra de sémen que um ausentado crucifixo envenenado tinha derramado, enquanto sobre a mesinha-de-cabeceira, um velho relógio engasgava-se entre as dez e as doze horas, e nunca percebemos porque morreu,

Como morrem os relógios, meu amor?

Morrem como a LHÁ,

E brincam como a LHÁ…

Meu amor, hoje pertenço-te como me pertencem as estrelas em papel das tuas lágrimas, quando da noite, sem que ninguém percebesse, trazias a mim as palavras semeadas das primeiras chuvas da manhã, e sabíamos que os pássaros nocturnos do Inverno poisavam nas tristes árvores das tuas mãos,

E sabes, mãe?

Percebi que uma mãe nunca tem nojo do filho,

Até que ele se transforme em poeira,

Acordávamos de mãos entrelaçadas como entrelaçados sonhos acordavam nos nossos lábios, depois, um beijo despedia-se,

Maldita mosca!

Não percebi, meu amor…

Ninguém percebeu,

Do rosto encharcado de sangue, as feridas silenciosas viviam como vivem as flores no meu pobre jardim,

E como viviam as flores do teu pobre jardim, meu amor?

Ensonadas, meu amor, ensonadas como todas as nossas noites.

Ele chorava.

Ela rezava.

Eu…

Pedia a Deus que uma equação qualquer resolvesse o meu problema, mas tal como ela, nenhuma equação veio a mim,

Ele,

Ela,

Lágrimas de sangue, meu querido.

E de sangue,

Eram feitas as palavras dele, quando se escondia debaixo da colcha como se fosse uma criança; uma criança que acabava de fazer uma qualquer asneira, coisas sem interesse, coisas de criança.

E do peito, uma lágrima de sono acordou.

 

(LHÁ=água do mar)

 

 

 

Alijó, 12/11/2022

Francisco Luís Fontinha

As lágrimas do teu filho

 Mãe

Que trazes no olhar as tristezas do teu filho

E nas mãos

As lágrimas do teu filho

Mãe

Que choras as lágrimas do teu filho

Quando nos olhos do teu filho

Habitam as cinzas das tardes cinzentas

Mãe

Que amas o teu filho

Mesmo que o teu filho amado

Seja um bandido ou um drogado

Mãe

Que tens nas veias o sangue do teu filho

Quando o teu filho

Voa sobre um mar de tempestade

E o teu filho

Se despede de ti

Em saudade

Em saudade

Mãe

Que vendes o sono ao Diabo

Em troca de proteger

O teu filho

E trazes dentro de ti

O cheiro da merda do teu filho

E nunca te cansas

Nunca te cansas dos olhos verdes do teu filho

 

 

 

 

Alijó, 12/11/2022

Francisco Luís Fontinha