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segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Dois cêntimos de euro

 Que faço eu com estas flores

Aprisionadas na minha mão

Onde guardo as minhas palavras

Onde poiso o meu coração

E às vezes

 

Tenho medo

Medo de trocar as flores por pão

Ou o pão por palavras

Vendo palavras invisíveis comestíveis e belas

Cada uma

 

Dois cêntimos de euro

E depois de vender as palavras

Como o pão

Uma sandes de flores

Um café

 

E um cigarro

E sento-me em frente à baía

Oiço as lágrimas do mar

Grito

E escondo-me sob as palmeiras

 

E durmo docemente nos teus braços

Entre picos

E roseiras

Entre livros

Muitos livros que ardem nas lareiras

 

 

 

 

Alijó, 14/11/2022

Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Criança de porcelana

(desenho de Francisco Luís Fontinha)


preciso das tuas asas para sorrir
vivi numa casa que apelidaram de “borboleta”
nada tinha
às janelas faltavam os vidros
os cobertores tinham partido em viagem silenciosa
e nunca mais regressaram
quando ia à janela via o mar
e a Baía de Luanda
não mar
não asas para sorrir...
a “borboleta” tinha medo das minhas mãos
e quando encostava a cabeça às frestas do gesso cansado
sentia um barco atrapalhado descendo as escadas
correndo
como uma gaivota
que nunca
nunca... quis entrar dentro da “borboleta”...
porque ela era filha de um papagaio imaginado pela criança de porcelana.



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sexta-feira, 23 de Janeiro de 2015


sábado, 15 de março de 2014

Simplesmente... me inventas

foto de: A&M ART and Photos

Inventas o prazer nas folhas pergaminho do desejo,
há uma caneta de tinta permanente pronta em ti a escrever,
sombrear o teu corpo de espuma em finíssimos traços de madrugada,
há silêncio nas tuas pálpebras enquanto imagino o poema que vou declamar no teu olhar,
e a cidade adormece sobre o travesseiro da paixão,
inventas o amor, inventas-me na escuridão,
simplesmente... me inventas, fazes de mim uma triste flor, a palavra que teimo em não pronunciar,
inventas na minha boca as caricias infinitas dos círculos do amanhecer,
e depois,
e depois... e depois desapareces nos carris que o aço alimenta, e desenhas na parede do medo o ciume,
amar, não amar, ser amado... não ser amado, … sou eu,
inventas o prazer e o meu corpo é um esqueleto de veludo...

Um barco em esferovite das brincadeiras de menino,
inventas o prazer disfarçado de naftalina, dentro do armário apodrecido,
dás-me cigarros para eu fumar e fumo-os como se precisasse de fugir,
correr, subir a montanha... e voar em ti,
sorrir... dou-me conta que deixei de sorrir, de viver... como viviam os pássaros na aldeia,
inventas as bonecas que dormem nos musseques, e dos zincos telhados... a solidão,
há entre nós a melódica canção, o corpo mergulhado em lençóis de linho,
a janela de onde é impossível olhar o mar, o Mussulo... e a Baía,
Inventas-me nos quadriculados cadernos, fazes de mim uma equação trigonométrica,
sem resolução,
um barco, dizes-me que sou um barco...
que inventaste para te divertires enquanto não regressa a ti o sonho e a noite e a insónia toma conta dos teus lábios...


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sábado, 15 de Março de 2014

segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Menina de porcelana

Sábado, e uma casa abandonada, escura, fria, sábia e doce, sábado, ela vem buscar-me, pegar-me-ás sem que ele perceba o que é o amor, sem que tu percebas
A fina escória neblina que o soalho de vidro provoca em nós, mulheres, esposas sem marido e filhas de um Deus esquisito, às vezes, Ateu, outras vezes, malfadado, hirto, sujo, eu, quando te encontro em frente à rua onde vive a tua mãe, e tu
E eu sem que tu percebas as fotografias a preto e branco que dormem no álbum do teu pai, fotografias antigas, dos tempos de
E tu
Luanda, as gaivotas atravessavam a Baía e deitavam-se nas mãos dos mabecos enfurecidos pela escuridão das palavras mortas, murmuradas por cadáveres estonteantes, embriagados, às vezes, outras vezes
E tu
Desgovernada sem saber o que fazer, corrias pela cidade, batias às portas, e ninguém, ninguém dobre o zinco da noite a abraçar-te, ninguém para ti
Deita-te sobre mim, meu amor, e deitavam-se as nuvens sobre as mangueiras que os pássaros deixavam ficar nos quintais abandonados, deita-te sobre mim
Meu amor...
Ninguém para ti, ninguém para mim, de candeeiro em candeeiro, uma corda de aço prendia um petroleiro, homens maus com um chicote
Não me bata por favor, gritavas quando ele acendias os cigarros nas janelas da lareira, e que a morte nos trazia todas as noites nos finos cobertores que o inverno construía, e nós
Não sabíamos o que era o Inverno,
Imaginavas a neve como sendo areia dentro de uma caixa de sapatos, pesadíssimas botas mordiam-te os pés lilases de pétala amordaçada, e não sorrias, escondias-te no sótão, e choravas, e gritavas
Não gosto desta terra maldita, maldita extinta imunda, e
Adormecias agarrada a uma boneca de trapos que nasceu e cresceu no primeiro andar com janelas e vidros envelhecidos, alguns deles em perfeita decomposição, o cheiro imundo a vidro putrefacto, em pedaços, suspensos nos peitoris de madeira apodrecida, e suja
Repetição
Não gosto desta terra maldita, maldita extinta imunda, e
E suja
Minha amordaçada menina de porcelana,
Sábado,
E tu
Luanda, as gaivotas atravessavam a Baía e deitavam-se nas mãos dos mabecos enfurecidos pela escuridão das palavras mortas, murmuradas por cadáveres estonteantes, embriagados, às vezes, outras vezes, vezes a mais, aparecias em casa numa lástima, perdias as calças, perdias as mãos, perdias os braços, regressavas, entravas, não falavas, e deitavam-se elas sobre os muitos lençóis que o cacimbo deixava ficar pelas ruas, outras vezes, às vezes, um carro zumbia, rosnava entre cães e mabecos e cavalos que tinham fugido de um carrossel estacionado junto aos Coqueiros, mostravas-me os treinos de hóquei em patins, inserias a moeda na ranhura
E os barcos começam em círculos longos voos sobre os telhados poeirentos que pertenciam às nádegas húmidas do ciume, e as fotografias do teu pai
A Preto e branco, mortas, esquecidas no fundo de um caixote de madeira, em viés um seta pintada apressadamente e letras que mal se percebia
CUIDADO PARA CIMA,
E um tipo com os dentes virados para o céu, e esperava, CUIDADO PARA CIMA
A Preto e branco, mortas, esquecidas no fundo de um caixote de madeira, em viés um seta pintada apressadamente e letras que mal se percebia que sábado, e uma casa abandonada, escura, fria, sábia e doce, sábado, ela vem buscar-me, pegar-me-ás sem que ele perceba o que é o amor, sem que tu percebas, a fina escória neblina que o soalho de vidro provoca em nós, mulheres, esposas sem marido e filhas de um Deus esquisito, às vezes, Ateu, outras vezes, malfadado, hirto, sujo, eu, quando te encontro em frente à rua onde vive a tua mãe, e tu, e eu sem que tu percebas as fotografias a preto e branco que dormem no álbum do teu pai, fotografias antigas, dos tempos de
CUIDADO PARA CIMA,
Repetição
Não gosto desta terra maldita, maldita extinta imunda, e
E suja
Minha amordaçada menina de porcelana,
Sábado,
E tu
Luanda,
E eu
Não Luanda.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó