sábado, 12 de novembro de 2022

Lágrima de sono

 Meu amor, hoje pertenço-te como me pertencem as estrelas em papel das tuas lágrimas, quando da noite, sem que ninguém percebesse, trazias a mim as palavras semeadas das primeiras chuvas da manhã, e sabíamos que os pássaros nocturnos do Inverno poisavam nas tristes árvores das tuas mãos,

E sabíamos que um dia vinham a nós os triângulos da madrugada,

Meu amor, hoje pertenço-te como pertencem as espingardas das alegres marés do infinito amanhecer,

Um dia,

Tristes,

As palavras do teu olhar.

Vivíamos nas margens invisíveis do rio sem nome, e entre as pontes do sono, vinham a nós as sombras dos velhos aviões que sobrevoavam as mangueiras entre danças no quintal de Luanda, o triciclo, ensonado, cantava quando o miúdo dos calções lhe pegava na mão

E ele,

Não, mãe, não.

O medo.

A LHÁ lá ao fundo, e suspenso no pescoço da mãe, que ambos não ultrapassavam os quarenta e cinco quilogramas, desenhava pequenos círculos de luz sobre uma LHÁ até perder de vista, depois, vinha novamente o triciclo, e ambos sabíamos que em breve regressaria a noite aos lábios da Princesa lunar, como regressaram muito mais tarde todas as pedras e todas as folhas das árvores em despedida,

O medo.

Da LHÁ, todas as tardes de Domingo, erguiam-se pequeninos corações de prata e percebia-se que dos seus olhos lacrimejantes da maré dos sonhos, um pedaço de paixão poisaria na sua mão, como muitos anos mais tarde, poisaram as nuvens sem nome.

Depois, um dia, esqueceu-se de acordar.

A janela tinha ficado aberta, e a noite quase a terminar, escrevia poemas sobre o lençol desossado do corpo putrefacto na infinita madrugada, e como todas as madrugadas, uma fina lâmina de paixão abraçava-a e beijava-lhe cada pedacinho de milímetro quadrado do corpo, e o caule e as folhas, murchas, deitavam-se sobre a sombra de sémen que um ausentado crucifixo envenenado tinha derramado, enquanto sobre a mesinha-de-cabeceira, um velho relógio engasgava-se entre as dez e as doze horas, e nunca percebemos porque morreu,

Como morrem os relógios, meu amor?

Morrem como a LHÁ,

E brincam como a LHÁ…

Meu amor, hoje pertenço-te como me pertencem as estrelas em papel das tuas lágrimas, quando da noite, sem que ninguém percebesse, trazias a mim as palavras semeadas das primeiras chuvas da manhã, e sabíamos que os pássaros nocturnos do Inverno poisavam nas tristes árvores das tuas mãos,

E sabes, mãe?

Percebi que uma mãe nunca tem nojo do filho,

Até que ele se transforme em poeira,

Acordávamos de mãos entrelaçadas como entrelaçados sonhos acordavam nos nossos lábios, depois, um beijo despedia-se,

Maldita mosca!

Não percebi, meu amor…

Ninguém percebeu,

Do rosto encharcado de sangue, as feridas silenciosas viviam como vivem as flores no meu pobre jardim,

E como viviam as flores do teu pobre jardim, meu amor?

Ensonadas, meu amor, ensonadas como todas as nossas noites.

Ele chorava.

Ela rezava.

Eu…

Pedia a Deus que uma equação qualquer resolvesse o meu problema, mas tal como ela, nenhuma equação veio a mim,

Ele,

Ela,

Lágrimas de sangue, meu querido.

E de sangue,

Eram feitas as palavras dele, quando se escondia debaixo da colcha como se fosse uma criança; uma criança que acabava de fazer uma qualquer asneira, coisas sem interesse, coisas de criança.

E do peito, uma lágrima de sono acordou.

 

(LHÁ=água do mar)

 

 

 

Alijó, 12/11/2022

Francisco Luís Fontinha

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