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terça-feira, 22 de novembro de 2022

Manhãs de Inverno

 Se um dia o mar acordar

Do sono infinito desta cidade de Deus

Quando a noite inventa a paixão

Que se suicidou num belo Domingo

Enquanto os putos brincavam junto ao rio,

 

Se esse dia regressar

E se esse dia trouxer toda a poesia das montanhas

Eu

O mendigo das esplanadas em papel

Poisarei os meus braços nos teus braços,

 

Depois

Os pássaros que falam e cantam junto à lareira

Que me olham

não me conhecem

mas voam sobre a minha sombra,

 

Depois

O vento esfarrapado em pequenas brincadeiras de café

Beijam os corpos em putrefacto silêncio

Que a boca do inferno

Aprisiona nas lágrimas de cera,

 

Que as pobres abelhas deixaram sobre o mar

Os barcos amam-se em amontoados corpos de sucata

Dentro de um cubo de vidro

Quando as árvores

Tombam sobre a sombra fina das manhãs de Inverno.

 

 

 

 

 

Alijó, 22/11/2022

Francisco

domingo, 20 de novembro de 2022

O caderno

 Se procurares nos meus olhos

Os finíssimos fios de geada

Que a noite inventa

Não os encontrarás

Pois nos meus olhos apenas habitam palavras

 

Lágrimas em palavras

Vozes

Versos ao pequeno-almoço

O café

As torradas

 

Os cigarros

A tosse dos cigarros

Os cigarros em tosse

Se procurares nos meus olhos

O endereço das cartas que te escrevo

 

Talvez encontres a morte

Que sem sorte

Ou com sorte

Não importa

Escreve em mim os versos da madrugada

 

Tenho medo da fome

Fome do medo

Tenho nas mãos as algemas do silêncio

Que todos os dias se abraçam ao meu corpo

Que se diga

 

Nada de especial

Não sou um gajo bonito ou jeitoso

Um dia disseram-me que tudo era uma questão de cartão

E eu

Construi em cartão uma casa com sótão

 

Uma casa bonita

Agradável

Com janela para o mar

Mas este cartão

Desta casa

Um dia

Ao outro dia

Ardeu como ardem as minhas palavras nos teus lábios

 

E voltando ao meu corpo

Este pedaço de osso anónimo

E não

Não falavam de uma casa em cartão de verdade

 

E talvez quisessem dizer

Que pertenço a um corpo

Mais magro do que gordo

Mais comprido do que magro

Tenho massa

E quando estou em repouso

Sou um pedaço de sucata

Com asas de vidro

 

Em mecânica

Sou um corpo

Imóvel

Que traz às costas os barcos em sofrimento

Os barcos em pedaços de neblina

Quando o sol poisa na tua boca

E de um beijo

Construo

Uma simples máquina de voar

Levita

Sobe e desce

Dorme numa cama de sémen

 

Depois escrevo ao meu filho

Um gajo com poucos milímetros de comprimento

E tantos e tantos trabalhos me deu

Tive de vender palavras na feira da Ladra

Vendi fardamento roubado

Botas

Livros e um capacete metálico

E no final ainda sobraram cinco contos de reis

 

E o gajo queria que eu trouxesse uma velha espingarda

Reflecti

Hesitei

Pensei para que raio eu queria uma velha espingarda

Uma espingarda que disparava beijos

Abraços

E bebia shots de uísque

E comia rebuçados

 

Passava os finais de tarde frente ao Tejo

Não comia

Bebia e fumava

Escrevia num caderno o que me ia na alma

Mas vendo bem as coisas

Eu

Eu nunca tive nem tenho alma

Só se for a alma do Diabo

 

Uma puta reclamava por quinze minutos de sono

Um panfleto da branca

Trocava tudo isso por uma volta ao Sol

Mas acabávamos sempre por adormecer

Na zona escura da lua

 

Traziam-nos a noite

Erguia-se na parede um crucifixo de sangue

Em lágrimas

Com lágrimas

Depois aterrávamos numa qualquer rua da cidade

 

E a cidade come a cidade

E a cidade bebe a cidade

Eu comia a cidade

E a cidade envergonhava-se dos meus alimentos comestíveis

 

Drageias de sono

Na algibeira um punhado de cansaço

E a cidade continuava em pequenos voos

Em direcção a um caderno que nas minhas mãos aos pucos dormia

Sorria

Brincava

E aos poucos…

Morria.

 

 

 

 

 

Alijó, 20/11/2022

Francisco

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

As mãos de Deus

 Espero que os dias

Se esqueçam de mim

Que a luz se extinga

Nas mãos de Deus

Que transporta a noite

 

E quando tiver a noite

No meu peito deliciado pelas gaivotas do teu olhar

Vou inventar o sono

Vou erguer-me até que o luar morra

Nas minhas pálpebras amaldiçoadas por este triste silêncio

 

Esta pequena folha que habita neste meu corpo doente

Espera as estrelas e as pedras e os rios

Orgasmos de néon poisam na cidade

Até que me liberto das abelhas em flor

E das palavras assassinas que me habitam

 

Escondo-me

Fujo do poema em cio como os peixes fogem dos barcos

E dos barcos envenenados pelo ciúme

Recebo o dia

E transformo-o em delírio

 

Ouve-me enquanto a cidade fervilha

E os pássaros filhos da liberdade

Mergulham na minha sombra

Uma janela onde poiso a cabeça envenena-se com a saliva

E sou incendiado pela paixão

 

 

 

 

Alijó, 16/11/2022

Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 8 de novembro de 2022

Os barcos da minha infância

 Nesta lareira onde ardem os meus sonhos, oiço as lágrimas do silêncio, da labareda da noite, quase todas as noites, acordam

Ou dormem?

Acordam as cordas de nylon que aprisionam os barcos da minha infância; alguns em esferovite, outros em madeira fina e outros ainda construídos com os pequenos pedacinhos sobejantes das estrelas em papel que a menina das lágrimas deixava cair quando chorava.

Não tínhamos nada, apenas tínhamos alguns farrapos, algumas bugigangas e muito amor. Hoje percebo que ninguém sobrevive sem comida, mesmo que tenha muito amor, mas se não houver comida e existir muito amor, não se morre, sobrevive-se e caso seja necessário engana-se o estômago a olhar uma pilha de livros que o meu pai teimava em não vender. Confesso que também não vendia a pilha dos livros.

Queimá-los nesta lareira onde ardem os meus sonhos, talvez, mas vender, não, vender não,

E talvez já tenham acordado, que dizes?

Ainda dormem, e mesmo que já estejam acordados, não te preocupes, não passam de barcos à espera de entrarem na tua mão,

E claro, vender, não.

Tinha vergonha da minha janela, acreditava que num metro quadrado de um caixote em madeira cabiam todos os meus sonhos, fizemo-nos ao mar, e logo percebi que nem a saudade cabia, quanto mais todos os meus sonhos. E de menino dos calções passei rapidamente a rapazote das botas pesadas, das ceroulas, das meias grossas e das luvas que nunca me protegeram as mãos de nada, a não ser, de quando te vi pela primeira vez e

Ou será que dormem?

Porque não passam de barcos à espera de entrarem na tua mão, e como barcos que são, também eles amam, também eles choram, também eles acreditam que os sonhos são pedacinhos de estrelas nas mãos da alvorada.

E o mar todas as noites entrava-nos pela janela, e o miúdo dos calções, depois rapazote das botas pesadas, das ceroulas, das meias grossas e das luvas que nunca me protegeram

as mãos de nada, a não ser, a não ser dos pregos que um carpinteiro preguiçoso tinha semeado no metro quadrado de madeira e num dos lados tinha inscrito

Ou dormem?

PORTUGAL.

Acredito que não dormiam, pois, anos mais tarde, descobri que todos os barcos, mesmo durante a noite, inventam estórias sobre a lua e toda a santa noite cantam como cantam os pássaros,

Ela subia às árvores e brincava com os pássaros,

E os barcos conversavam com as estrelas em papel que a menina deixava cair quando chorava,

Não, não dormem.

Não tínhamos nada, a roupa escasseava, o frio gélido da Trás-os-Montes entranhava-se-nos no corpo até que acabávamos por adormecer e ao outro dia acordávamos tesos como uma barra de ferro, e só depois de abrirmos a janela, e com o passar das horas, descongelávamos até ao final da tarde, que depois de cair a noite, voltávamos novamente a congelar.

Ou dormem?

PORTUGAL.

Queimá-los nesta lareira onde ardem os meus sonhos, talvez, mas vender, não, vender não,

E talvez já tenham acordado, que dizes?

Não. Não vendia a minha pilha dos livros.

 

 

 

 

Alijó, 08/11/2022

Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

O voo das frias e pobres e solitárias pedras cinzentas

 Um quadro suspenso na sala nua, num dos cantos, uma poltrona pobre a fria alimentava a insónia que todas as noites se abraçava à janela virada para um escuro quelho, nesse quelho, uma das casas pobres que por ali brincava, imaginava o sol poisado sobre a acácia do senhor Augusto, e debaixo da acácia a menina Florbela lia o pequeno caderninho que o José lhe tinha oferecido pelo Natal do ano anterior.

Florbela odiava o Natal.

Ponto e nada de discussões.

O senhor Augusto acreditava que as pedras cinzentas voavam como voam as gaivotas, como tal, todas as noites, depois de vários dias a construir uma rampa de lançamento, entretinha-se durante horas a ajudar as pedras cinzentas a levantar voo; algumas caiam sobre a acácia onde Florbela, nas tardes felizes, lia o pequeno caderninho que José numa noite de angustia tinha escrito, e em vez de ter sepultado o caderninho junto à acácia, ofereceu-o à doce e querida menina Florbela.

A acácia andava sempre tristinha, quanto à menina e querida e doce Florbela, tinha dias; uns felizes, outros tristes e outros saltava de galho em galho na busca do melhor poema.

Quanto ao caderninho, além de palavras, habitavam nele pequenos rabiscos que faziam recordar os campos de milho de Carvalhais, onde de janela aberta, José escrevia desalmadamente e apressadamente com medo que fosse esta a sua última noite de insónia.

Bom dia, senhor António.

Bom dia, menina e querida e doce menina Florbela.

Hoje não foi ao mar?

Não menina, hoje não fui.

Os barcos de papel estavam estacionados junto à porta da sala, e não acreditando no que assistia, o senhor Augusto, que momentos antes a menina e querida e doce Florbela tinha apelidado de António, observava o José em amena cavaqueira com os barcos de papel e o quadro que estava suspenso na parede fria e nua, ou seria a velha poltrona que era fria e nua?

E o senhor António cismava que todas as noites, enquanto guardava a acácia para não mudar de cor, as estrelas poisavam junto ao mar, depois, tal como as pedras cinzentas voavam como as gaivotas em direcção aos campos de milho de Carvalhais, onde o franganote José, à janela do quarto do meio, enquanto fumava, imaginava as personagens do seu pequeno caderninho em brincadeiras que quase pareciam os meninos e meninas quando saiam da velha escola junto à igreja.

E ela a dar-lhe com o senhor António.

José não imaginava que a menina e doce e querida Florbela odiava o Natal, tão pouco que esta trocava o nome do senhor Augusto por António, e que este último, acendia os cigarros com as grossas lentes que transportava na cara.

O dia lamentava-se de ter acordado, e a doce e querida e menina Florbela, sempre que se aproximava o Natal, entrava em pânico, desmaiava e só acordava em meados de Janeiro; o senhor António deixou de olhar as acácias e o senhor Augusto que já foi António e hoje é José, desenhava círculos de luz com olhos verdes nas paredes invisíveis do beijo apaixonado que de vez em quando se abraçavam aos lábios da menina e querida e doce Florbela;

Sinto a tua falta, querido José!

Minha ou do caderninho?

Bom dia, senhor António.

Bom dia, menina e querida e doce menina Florbela.

Hoje não foi ao mar?

Não menina, hoje não fui.

E a ira era tanta que um dia, de cigarro na boca, pulou a janela do quarto do meio, e já estatelado nos campos de milho de Carvalhais, finalmente adormeceu.

Na sala, a velha poltrona gemia de sono e a menina e querida e doce Florbela, de olhos cerrados, imaginava o mar deitado no colo, depois, pegava na mão trémula do querido José, este erguia-se dos campos de milho de Carvalhais e dizia-lhe:

Querido, posso pedir-te um desejo?

Sim, claro.

Tira o mar que trazes na algibeira e oferece-mo, como me ofereceste o caderninho.

E o José em modos um pouco rudes, mete a mão na algibeira, mas em vez de tirar o mar, tirou o poema que tinha escrito aos filhos do mar e aos irmãos do silêncio: a saudade.

E o senhor António cansou-se de guardar a acácia e de ajudar as pedras cinzentas a voar.

Hoje, dorme sobre uma secretária em madeira antiga na ânsia que alguém o olhe ou lhe diga ao menos,

Bom dia, senhor António.

Bom dia, menina e querida e doce menina Florbela.

Hoje não foi ao mar?

Não menina e doce e querida Florbela, hoje não fui.

E quando o José se ergueu dos campos de milho de Carvalhais já era dia, depois o dia trouxe a noite, e a noite, transformou o senhor António em senhor Augusto…

Como os barcos em papel estacionados junto à sala; uma tragédia, menina e doce e querida Florbela, uma grande tragédia o que aconteceu com o nosso querido José.

É verdade, senhor António.

Hoje não foi ao mar?

 

 

 

Alijó, 04/11/2022

Francisco Luís Fontinha

(ficção)

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Longas noites têm os teus olhos

 Perto do musseque éramos felizes, como eram felizes os que viviam perto do musseque; a manhã acordava, na rua ouvia-se o trote do branco cavalo que passeava todos os dias pela mão da linda Catarina, o irmão, rapaz dos seus quinze anos, desenhava formas geométricas com a velha motorizada que tinha herdado do avô, homem foragido da metrópole por razões políticas.

Junto ao Grafanil ouviam-se os vómitos de saudade do Unimog que regressava do mato, transportava homens que tinham vendido os sonhos e sem perceberem, ainda acreditavam no futuro.

A Catarina, indiferente às lágrimas de todas as sombras que ouvíamos na noite, sentava-se junto ao portão de entrada na esperança que o pai um dia regressasse do mato com o camião que tinha partido com mercadorias diversas. Com um giz, deixava traços invisíveis no muro do quintal, um dia, contou-os; trinta e cinco. Desistiu de esperar.

Semanas depois, disseram-lhe que o camião que o pai conduzia passou sobre uma mina e desfez-se em pedaços de lágrimas; acontecia a todos aqueles que tinham longas noites nos olhos.

Eu, deliciava-me a dar pancadas num velho triciclo, e quando me perguntavam o que estava a fazer,

O menino está a arranjar.

Mais tarde, contaram-me que saía ao meu tio António, que depois de lhe oferecerem um qualquer brinquedo, abria-o e se lhe perguntassem…

É para ver como é feito.

Mas naquela altura não me interessava pelo corpo feminino, portanto quanto à linda Catarina, era apenas a linda Catarina; e talvez tenha só a memória fotográfica do esbelto branco cavalo que passeava todas as manhãs em frente ao meu portão, e depois, percebia que mais um dia tinha acordado.

Quanto a motorizadas, apenas me fascinavam os desenhos geométricos que o Pedro deixava sobre a poeira de um descampado junto à rua e o fumo escuro que esta cuspia depois de alguns círculos, círculos que certamente sofriam de alguma doença crónica, pois nunca eram perfeitos.

Amo-te, meu querido Joaquim!

Também te amo muito, minha querida Catarina!

E de paixão apenas conhecia a que tinha pelos barcos, papagaios em papel e pelo meu melhor amigo; o eterno chapelhudo.

Não escrevas nas paredes, Francisco,

É para ver como é feito.

Depois do jantar, íamos aos Coqueiros assistir aos treinos de hóquei em patins, deliciava-me com a dança dos corpos daqueles jovens que sem o saberem, escreviam no pavimento a mais linda estória das noites da minha infância, regressado a casa, adormecia a sonhar com o branco cavalo da linda Catarina. Às vezes, ainda íamos dar uma volta ao Baleizão, que sempre que me ofereciam um gelado, que eu apelidava de Rajá, respondia que…

Não gosto.

E ainda hoje não percebo muito bem do que gostava naquela altura, tirando os barcos, os papagaios, o chapelhudo, os desenhos nas paredes e as pancadas no triciclo, de nada mais gostava.

As bananas tinham bicho. De sumos, não gostava. Os chocolates que os amigos do meu pai me ofereciam, quase não lhes tocava. Quando se tratava de comer a sopa, inventava mil razões para a não meter à boca; estava quente, não tinha fome, e

É para ver como é feito.

E enquanto arranjava o triciclo descobri que os aviões que eu ia ver ao aeroporto e os que passavam sobre a minha casa, tinham tamanhos diferentes. Passei muito tempo para entender que se tratava apenas de distância e que ambos tinham o mesmo tamanho.

Depois,

Catarinaaaaa…

Sim mãe, vou já, logo que o branco cavalo desça das nuvens, e num ápice, um enorme buraco negro cospe uma estrela,

E o raio do cavalo de nuvem em nuvem, até que descobriu

Pedro, casa já.

O menino está a arranjar.

De buraco em buraco até se esconder da mina que dizimou o camião, o pai e a mercadoria da linda Catarina.

Choveu muito ontem, entre o capim vi pela primeira vez o lençol da saudade, e percebi porque hoje amo o mar, e ontem, e ontem fugia da lhá…

Tão grandes, pai.

É para ver como é feito.

Perto do musseque somos felizes, como são felizes os que vivem perto do musseque; a manhã acorda e a doce e linda Catarina, montada no seu branco cavalo voa em direcção às nuvens, em baixo, jaz o mar límpido que outrora adormeceu na algibeira dos pequenos calções do menino ranhoso que inventava amigos para brincar debaixo das mangueiras, que que às vezes se esquecia de dormir, quando as tardes eram apenas pedaços de silêncio onde a motorizada do Pedro e o branco cavalo da linda Catarina davam as mãos e saiam para passear junto à Baía.

Tão grandes, pai.

O menino arranja.

E amanhã certamente tenho a visita dos papagaios em papel e das estrelas que um dia desapareceram de mim, como desapareceram as minhas sandálias de couro…

Ai a lhá…

E depois, encerraram a janela e nunca mais vi o mar.

 

 

 

Alijó, 14/10/2022

Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Círculos com olhos verdes

 São tão lindas as estrelas que voam sobre o mar, e dos barcos, vêm até nós o sorriso em silêncio dos apitos uivos, quando estes se abraçam aos teus olhos, depois, desce sobre a colina a sombra das árvores que fogem da solidão dos rochedos envenenados pelos gritos de revolta das metástases das canções sem nome, e adormecíamos debaixo das mangueiras em flor, do portão de entrada, uma alma depenada dançava e trazia com ela as tuas mãos,

Somos invisíveis, ouvia-a…

Deitava-me de barriga para o ar e sonhava com os barcos que entravam portão adentro. Pela noite, eu e eles víamos as estrelas, hoje, pincelo os teus olhos na madrugada, como se a madrugada fosse uma flor em papel, do papel que sobejava dos papagaios que a dona Arminda construía para o filho, um puto em calções, rabugento e um autêntico tinhoso,

Doem-me as pernas!

(tinhoso)

As estrelas não são em papel e que os papagaios voaram tão longe que ainda hoje vagueiam pelo Universo, e amanhã e depois de amanhã, continuaram a voar, até que um dia, serão apenas pontos de luz, e nos teus olhos ficará apenas a sombra nocturna do desejo.

Invento-me enquanto lá fora uma lâmina de saudade corta em pequenos pedaços as recordações de quando os barcos entravam portão adentro, e quando regressava a noite, dávamos as mãos e víamos as estrelas,

São tão lindos os teus olhos,

Dói-me a barriga!

(grande tinhoso)

Como são lindas as flores em papel da madrugada, e não adianta procurar os barcos que que levavam a ver as estrelas, partiram para longe, tão longe como os papagaios, tão longe,

Desculpa, não sabia que,

Porquê?

Sei lá, apetecia-me ver o mar,

E parti para a ilha dos poemas.

(tinhoso)

Come a sopa, Luisinho?

O menino dá,

E não dava nada, pegava no par de asas que tinha desenhado junto à capoeira das galinhas, vestia as roupas do chapelhudo, e…

(tinhoso)

Quando dava conta, depois de percorrer meio jardim, depois de contornar a Maria da Fonte, sentava-me no Baleizão, pumba,

O menino não gosta de gelados,

(grande tinhoso, este miúdo)

E voava em pequenos círculos até que as pilhas faleciam de pasmaceira, e tinha de pedir ao meu pai para retirar o barco do pequeno tanque que um amigo dele me tinha oferecido, depois, lembrava-me que tinha deixado um avião pendurado numa das mangueiras por um fio de nylon que desenhava também como o barco, círculos com olhos verdes, e ainda hoje oiço o silencioso som dos pequenos motores, e ainda hoje sinto que os círculos com olhos verdes caminham por aí, em direcção ao infinito,

Acreditas no infinito, Luisinho?

Doem-me as pernas.

(tinhoso, tinhoso)

O chapelhudo, mãe?

Morreu, filho.

Morreu como morreram os papagaios?

Mão filho, os papagaios voam pelo Universo, os papagaios em papel nunca morrem.

Depois de olharmos as estrelas, levava os barcos até à cama, contava-lhes uma estória sobre um menino de calções que se encantou com o sorriso de uma estrela, aos poucos, eles, cerravam os olhinhos, até que adormeciam acreditando que os papagaios em papel ainda hoje voam pelo Universo,

O infinito, mãe!

(ranhoso)

Come a sopa,

O menino dá.

E claro, não dava nada. Escondia-a na boca em pequenos pedaços, e providos de alguns movimentos, como se fossem os trapezistas do circo que na noite anterior tinha observado, lançava-os contra a parede da cozinha onde jaziam alguns rabiscos feitos pelo dito tinhoso,

(doem-me as pernas)

Vês. Não fui e também não foste.

(só umas nalgadas nesse rabo)

Como assim, estrelas suspensas nos teus olhos?

Verdade.

Vi-as quando fui adormecer os barcos.

E das tardes a cortar e a coser farrapos para vestir o chapelhudo, o tinhoso do miúdo também metia pregos nas tomadas da electricidade, até que um dia o avô Domingos resolveu colocar todas as tomadas a um metro do chão,

Em Portugal,

Os fusíveis rebentavam,

E os papagaios ainda voam,

(tinhoso)

Como assim, estrelas suspensas nos teus olhos?

Verdade.

Depois de olharmos as estrelas, levava os barcos até à cama, contava-lhes uma estória sobre um menino de calções que se encantou com o sorriso de uma estrela…

(tinhoso)

 

 

Alijó, 13/10/2022

Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

O crucifixo das lágrimas

 Quando acordavam, o crucifixo suspenso na parede, que tinha como única finalidade, esconder as fendas que abundavam no gesso em ruínas, lacrimejava todas as palavras ouvidas durante a noite.

Esta noite devíamos ter conversado muito, ele não pára de lançar palavras contra os tristes lençóis e cobertores que sobre nós poisaram, lamentava-se ela enquanto ele escondia o olhar no cortinado, velho, que mais parecia um campo de milho quando maduro,

E claro, vinha-me à memória os campos de milho de Carvalhais, da amarela, do velhinho que contava estórias mirabolantes sobre a primeira grande guerra, dos uivos do carro de bois e das manias que eu tinha de andar sempre só; como as cabras em pleno monte.

Descia a noite e quando o Branco ligava o moinho ecléctico, modernices, pois tinham um movido a água, enquanto o cereal dançava, a lâmpada do meu quarto, o quarto do meio, começava a cambalear, até que momentos depois, desmaiava por completo e só depois do tio Branco desligar o dito é que voltava a ter luz para ler os poemas do Pessoa; e quando a noite já levantava voo sobre o sino de Carvalhais é que eu começava a escrever a um remetente inventado, pois quase nunca tive ninguém a quem escrever, a não ser, no serviço militar, a cravar dinheiro à minha mãe. Um dia perguntou-me quantas vezes eu era assaltado por semana, pois a razão de eu pedir dinheiro era sempre a mesma. Mãe, fui assaltado.

Conversamos muito, disse eu. Pois também estava de acordo com ela, à quantidade de palavras que o crucifixo lacrimejava dava para perceber que tinham sido muitas. Ergui-me, procurei um cigarro sobre a mesinha-de-cabeceira, e comecei a vomitar sinais de fumo à janela com fotografia para o mar. Do segundo andar via uma réstia de mar, a sombra de um barco e o uivo de uma gaivota, nada mais, em Carvalhais, já noite dentro, ele escrevia em pequenos papeis que ainda hoje continuam acorrentados aos quatro cantos de cartão, onde poisam, e quase nunca saem para passear no jardim ou descer a calçada com acesso ao rio.

Quando ele olha em direcção ao leito dos lençóis e cobertores poeirentos, ela já dormia novamente, e ele, suspenso entre dois segundos, olhava-a, olhava o crucifixo que não parava de lacrimejar as ditas palavras nocturnas do desejo e a velha espingarda que apenas disparava às terças e quintas, durante a tarde; não ligou e esperou que o cigarro terminasse o seu prazer, isto é, foder um gajo que acaba de acordar. E diga-se, sou fodido por estes gajos há mais de trinta anos.

A noite estava calma. As palavras fluíam nas rasuradas folhas que encontrei numa qualquer gaveta do avô Domingos, naquela noite não me apetecia escrever no caderno, e os sons da noite entravam-me quarto adentro; ouviam-se as lágrimas das sombras que eu sabia que habitavam no campo de milho semeado junto à janela. Deixei de ouvir o avô velhote, um dia finou-se.

Peguei na espingarda, e percebi que ela jamais poderia acordar, depois soube que tinha ido para outro aposento, mais limpo, onde não havia crucifixos a tapar frestas e dos papeis escritos por mim, apenas algumas cinzas restavam junto ao cinzeiro em granito que um grande amigo me tinha oferecido. Nunca mais fui assaltado.

O tio Serafim animava a adega. Artista conceituado por aquelas bandas, brindava-nos com o vinho morangueiro, confesso que nunca o bebi, porque detesto vinho, mas fazia-me acompanhar por umas Cucas, o famoso presunto, a linguiça, e claro, o melhor pão de milho que comi até hoje; o pão de milho da tia clementina.

O Serafim além de cantar o fado, ser barbeiro nas horas vagas, cuidar das terras e do gado na companhia da tia Clementina, ainda na juventude, tinha feito crer a muita gente que tinha regressado do Brasil, sem que nunca tenha saído do Bairro Alto em Lisboa. Um verdadeiro artista. Um homem galante, de fato, bengala e nunca deixava de se acompanhar pelo famoso palhinhas e do respectivo sotaque.

E Carvalhais, aos poucos, começou a ficar sem graça. Uns foram para ali, outros foram para acolá, ela começou a ler umas coisas de AL Berto, e basicamente, todos eles mortos, desaparecidos do combate da vida.

Às vezes, durante a noite, oiço o velho moinho do tio Serafim, vou à janela e chegam a mim as silenciadas sombras que brincam no campo de milho, mesmo por baixo dos meus pés. Quanto à espingarda, também ela, morreu numa manhã de neblina…

Que assim seja.

 

 

 

Alijó, 10/10/2022

Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Flores de amar

 Pego nestes barcos em papel cremado

E lanço-os ao mar da saudade,

Uns voam, outros navegam sobre a cidade,

E ainda outros… parecem um rochedo encalhado,

 

Tal como um coração despedaçado,

Quando o Outono transporta o luar,

E há sempre uma pequena lágrima no mar,

Porque estes barcos em papel cremado

 

São como corpos sepultados,

Riem, choram e dizem que a noite estrelar

Os deixa muito cansados,

 

Como as tuas flores, na madrugada…

São gemidos, são vozes a suplicar,

Porque são as tuas flores; as tuas flores de amar.

 

 

Alijó, 05/10/2022

Francisco Luís Fontinha

sábado, 27 de agosto de 2022

Pedacinho de mar

 Porque te aprisionas

Nas nuvens da madrugada,

Porque te escondes nas palavras

Das noites magoadas,

Porque danças no amanhecer,

Porque habitas nesta estrada…

Porque és poema canção,

Canção de escrever,

Escrever coisa nada.

Porque és pedacinho de mar

Das tardes em revolução,

Porque voas na boca amar

Das palavras em construção,

Porque iluminas as noites sem dormir

E nas noites de luar…

Porque teimas em não sorrir,

Sendo tu um pedacinho de mar.

Porque te aprisionas

Nas nuvens da madrugada,

Quando o teu cabelo é samba,

Nos ventos de nortada.

Porque és pedacinho de mar

Menina das telas adormecidas,

E quando começas a voar…

Voar sobre as horas perdidas,

Sobre as mangueiras de infância…

Porque choras, pedacinho de mar

Nas marés esquecidas.

O traço no teu corpo desejado,

O silenciado beijo na boca do inferno

Em lágrimas mãos do poeta…

Meu pedacinho de mar ancorado,

Nas tristes rochas lunares,

Meu pedacinho de mar

Te peço para não chorares,

E te peço para voar…

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 27/08/2022